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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 15/10/2020

Em Junho, a Heavenly Sweetness editou um dos discos de música africana mais prementes de 2020, Horizonte, dos Bandé-Gamboa, uma banda que, por causa da pandemia, não pode consumar o seu potencial em concerto.

Bandé-Gamboa: “Em vez de resgatar mais música, é altura de criar algo novo”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 15/10/2020

Algures no mês de Julho, o meu dealer de discos diz-me que tem algo para mim, “que [gosto] dos trópicos”. Das muitas nomenclaturas que usadas para descrever a dita música do mundo, esta talvez seja das menos problemáticas — as questões que destas categorias advêm passam, impreterivelmente, por uma separação “nós vs. eles”. Dos dois lados desta barricada imaginada há prejudicados: tanto quem faz e produz a música, sujeito a subjugar-se criativamente às regras de um mercado de souvenir e fetichizado, como quem a ouve, que na busca pelo autêntico ignora, invariavelmente, o que de facto o é em detrimento do que foi. O João, por obra de um perfil bem traçado, sabia que me estava a mostrar um projecto que nasce e existe na fronteira que separa o mercado da realidade periférica; porém, talvez não soubesse que me iria despoletar uma crise identitária induzida na rota dos Bandé-Gamboa.

A problemática das categorizações, e generalizações em queda, é uma presença constante na cabeça do produtor-executivo dos Bandé-Gamboa, Francisco “Fininho” Sousa. Se o era antes, intensificou-se perante o convite que a editora Heavenly Sweetness lhe dirigiu para criar um compêndio de canções a celebrar a cultura crioula de Cabo Verde e Guiné-Bissau, ambas nações filhas do humanista Amílcar Cabral — à memória do qual é dedicado Horizonte, o registo que acabaria por sair em Junho deste ano com o selo da discográfica francesa. Como acrescentar valor, seja de que lado da barricada for, passou a ser a questão que conduziria todo o processo que viria a resultar em Bandé-Gamboa, uma banda criada para se apresentar ao vivo, para viver além da prensagem de um disco e para devolver aos crioulos o que deles é: um funaná de amanhã, um gumbé de hoje e tudo o que entre estes termos possa existir, ser criado e organicamente moldado por oito talentosos e criativos músicos.

“A ideia é formar uma banda de agora e criar algo novo, em vez de resgatar mais música”, conta o produtor em entrevista ao Rimas e Batidas. “Acho que as compilações têm um efeito positivo. E isso nota-se não só em quem compra discos, mas também em quem faz música. Nota-se que as pessoas têm uma nova abertura. Por outro lado, também tem efeitos negativos, porque se apenas houver compilações, cria-se uma fetichização com música distante, de tempos distantes”. A tal fronteira, não física mas temporal e, consequentemente, cultural. Uma barreira que levanta interesse pelas “afros e calças à boca de sino”, por certas texturas, de sons quentes, rugosos e que, dadas as condições, apelam à psicadelia sem porventura o ter desejado, acabando as músicas reapropriadas e descontextualizadas em escaparates e tops. Ou, como Fininho explica, “cria-se uma certa estética que deixa muitas bandas novas na gaveta, porque não têm certos códigos para entrar no circuito, de tocar em salas de espectáculos médias,” e que acaba por deixar a dita “cena tropical” sem “diversidade nenhuma”, com “pessoas que acabam por ser muito iguais.”

Esta não é, na verdade, uma crítica de altivez moral. Nesta conversa não houve inocentes: quem a conduziu e agora a transcreve é transeunte do circuito e consumidor dos produtos; quem a deu é um dos primeiros agitadores da actual vaga da dita cena tropical (na condição de ex-CelesteMariposa) e contribuinte do que mais se consome (tendo engendrado a belíssima compilação da Analog Africa, Space Echo). Contudo, nunca Bandé-Gamboa foi, como já se viu, sobre encontrar culpados, ou apontar carrascos, mas antes encontrar soluções e apontar novos caminhos. Será esse, idealmente e também, a tentativa de contributo para este texto, como foi para a conversa de onde partiu.

Há um propósito claro, talvez megalómano, de reconciliação entre nós e eles, mas também entre o ontem e o amanhã, de criar um “equilíbrio entre o que trazes do passado e o que trazes do futuro, e fazer uma boa mistura”. Horizonte é uma seleção de músicas perdidas nos arquivos de diggers, mas revitalizadas por uma banda que é, na verdade, duas, encontrando uma nova vida e desenhando novas direções para o que as tradições dos dois países podem ser e serão. Há, ainda, um motivo maior — o de descolonizar estas sonoridades: “Se fazes só coisas do futuro, não estás a honrar o passado, estás sem chão, não sabes onde estás. Se só te preocupas com o passado, os africanos também não querem saber. Eles olham para a frente. Querem o seu país melhor, mais próspero. Se viverem na diáspora, querem melhores condições, mais igualdade. Eles olham para as próximas gerações com esperança e com felicidade.”

Foi assim que as canções do disco cresceram para ser algo apreciado pelo “mercado africano,” que não se olha ao espelho com os olhos ocidentalizados. “Este disco tem o objectivo declarado de chegar às pessoas da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Quando estive na Guiné, praticamente ninguém de lá tinha paciência para os Super Mama Djombo. Era como perguntar a um londrino se ele ouve Pink Floyd todos os dias. Eu tinha a ingenuidade de pensar que se ouvia a mesma música e só mudava a qualidade das gravações, mas isto simplesmente não é verdade”, conta-nos o produtor do projecto. Também as reacções ao disco acusam esta ideia desfasada do que é o lado de lá. “Mostras este disco a um africano, e ele muito provavelmente vai sentir que está muito mais perto do gosto dele. É um disco mais sofisticado, mais bem feito, que honra muito melhor a tradição africana e a mostra a um nível elevado, preparado para representar a cultura a um nível internacional. O gosto dos países de origem entrosou muito nas escolhas que eu acabei por fazer no disco.”

Bem feitas as contas, isto não deveria ser uma surpresa. Não é por acaso que países como Quénia, Uganda, África do Sul e Angola têm encontrado uma renovada atenção; não é pela tradição e lógica do souvenir que eventos como o Nyege Nyege Festival têm entrado no circuito da experimentação sonora ao longo dos últimos anos; e também não é pela sonoridade retro, ou vintage, que artistas como Don Zilla, Nkisi, Ozkharp, ou Nazar rompem crítica adentro. É, sim, pelos corações a desejar e fazer futuro que nos chegam, e é nesses esforços que o continente africano tem surgido a par com o que de mais vanguardista se faz no resto do mundo, sem nunca esquecer de onde partem. Nkisi não evita a cosmologia bantu na sua música, nem Don Zilla esconde os ritmos intempestivos do Quénia; Nazar também cunhou o seu kuduro como algo novo, mas que pulsa na mesma pelas suas veias mwangolé e ovimbundu.

Há, ainda assim, um trabalho de anos pela frente, de resolução de preconceitos e de reconciliação de culturas. Ou de, como se vai ecoando nas palavras de Dino D’Santiago, crioulização. A prova ressoa na recepção mista mas positiva que Horizonte vai encontrando: “Os europeus dizem que a parte da Guiné é mais interessante, e os africanos dizem que a parte de Cabo Verde é mais interessante”, algo fruto da direcção que o projecto seguiu, em que “a parte de Cabo Verde é mais desapegada e olha mais para o futuro do que a parte da Guiné”, partilha Francisco Sousa.



[O legado de Amílcar Cabral]

Em Bandé-Gamboa, a preparação do disco não se ficou pela selecção das músicas e pelo recrutamento dos músicos. A necessidade de exploração e de uma abordagem cuidada ao reportório de cada uma das suas duas partes, uma liderada por Juvenal Cabral (baixista, sobrinho de Amílcar Cabral e músico desde tenra idade, tendo crescido a ouvir ensaios de Super Mama Djombo e fundado um dos grupos maiores da Guiné-Bissau, os Tabanka Djaz) e focada no gumbé, e outra liderada por Lúcio Vieira (baixista que passou pelas bandas de Cesária Évora, Bana e Tito Paris, e cujas contribuições foram até General D, Melo D ou Paulo Flores), que neste projecto conduz as incursões funaná, foi sempre endereçada.

 “Neste projecto, era mais importante perceber o que vai na cabeça dos artistas. O meu papel enquanto produtor-executivo é um pouco diferente.”. Ou seja, não foi o de alguém que tome decisões estéticas no lugar do artista. “O trabalho do produtor não pode ser impor o seu pouco conhecimento aos músicos”, adianta Francisco Sousa, admitindo muito claramente que não havia muito que ele pudesse ensinar a este rol de músicos sobre os seus países, as suas culturas, as suas tradições musicais, ou especificamente sobre funaná e gumbé. O seu trabalho foi, por isso, contrário ao que normalmente acontece no circuito da dita “música do mundo”, permitindo à banda um distanciamento consciente e coerente das expectativas dos mercados, sem, claro, ignorar a necessidade de vender discos: “Os discos têm de vender, deixemo-nos de merdas. Mas como é que conseguimos fazer isto sem tirar o tapete ao artista?”

“O disco da Guiné é muito diferente do de Cabo Verde”, elabora, explicando que a diferença vai além dos géneros. “Em Cabo Verde, o funaná está consolidado. As cartas estão na mesa. O gumbé não está consolidado [no Ocidente], nem se sabe bem o que é”. Isto libertou a banda de Cabo Verde, liderada por Lúcio Vieira de uma forma que não foi possível para o ensemble de Juvenal Cabral. “Do funaná que está no disco, há muito pouco. Nós quisemos quebrar as barreiras do género”. O gumbé que aqui se ouve, pelo seu lado, passa por uma revitalização do género e uma devolução das suas contribuições aos guineenses de hoje, tratando-se de “tentar utilizar o material primário cultural da Guiné-Bissau com melhores infraestruturas.”

É, de resto, um trabalho necessário perante a incapacidade portuguesa de mapear as culturas africanas — um facto que não cai bem com o argumentário de que o português se misturava com os locais, e outras desculpas tangenciais para amenizar a influência colonial nestas regiões. “Foram feitas algumas coisas em Angola e Moçambique, mas não na Guiné e em São Tomé, por exemplo. Algumas pessoas que gostavam de estudar mais aprofundadamente este tipo de coisas de um ponto de vista académico já me contactaram para perceber por onde começar. A resposta é sempre um bocadinho triste: tens de começar do zero”. Horizonte conta como um passo, assim como a homenagem nele prestada a Amílcar Cabral.

“É altura de o Amílcar Cabral deixar de ser um terrorista africano para ser um humanista”, diz peremptoriamente o produtor dos Bandé-Gamboa. Este trabalho de homenagem, mas também de reposição de valores e realidades atravessa todo o disco, desde as músicas, na forma como foram retrabalhadas e desenvolvidas, até ao próprio nome da banda. Bandé é um bairro emblemático na Guiné-Bissau, onde sempre aconteceu uma grande mistura de diferentes culturas e expressões, e Gamboa é a praia da cidade da Praia, na ilha de Santiago, em Cabo Verde. Estes dois pontos eram, também, a denominação de uma rota de escravos, uma das muitas utilizadas por esclavagistas na África Ocidental. A tónica fica, claro, no tempo verbal de “eram”, na intenção de repor a discussão sobre o impacto colonial nestas terras, assim como de adicionar ao significado desta conjugação novos, mais esperançosos motivos.

O mesmo está a ser feito com Amílcar Cabral, ainda que a pensar mais em países lusófonos e no legado que nunca chegou a Portugal: “É um homem homenageado em Stanford, em Harvard é citado e referenciado como a pessoa que melhor conseguiu retratar a revolução como um acto cultural, de conseguir que os africanos fossem eles mesmos. Isto é uma ideia importantíssima. Já é altura de sermos mais adultos e de percebermos como ele defendeu direitos humanos, coisa que ainda não aconteceu em Portugal”. Um facto.

É, também, um legado partilhado pelos crioulos e que acrescenta valor à mensagem dos Bandé-Gamboa: “É o pai das nacionalidades da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Através dele também houve muito entusiasmo em torno do projeto, porque é, de facto, uma homenagem merecida” e que, acrescente-se, apela ao orgulho de quem carrega o fruto das suas lutas e deseja, como Cabral desejou, ver as suas nações mais prósperas.



[Condição de ser africano]

A missão dos Bandé-Gamboa, enquanto projecto e banda, vive não só na edição do disco e na necessária e adiada ida para os palcos, mas nos próprios circuitos onde esta se poderia afirmar. Não se fala, apenas, de uma cena circunspecta e relativamente restrita como a de música tropical, mas de uma disfasia difícil de explicar entre periferia e centralidade, entre eventos mais brancos, outros mais negros. Foi um tópico inevitável durante a conversa com Francisco Sousa: “Não é normal, em 2020, termos festivais para brancos e para negros”, disse, referindo-se em especifico ao Afro Nation, no Algarve. “Isto só quer dizer que os afrodescendentes não se sentem representados nos festivais grandes, ou com ‘boa música’, como o Primavera Sound. Há um problema muito complexo por resolver e a única maneira é misturando. É os programadores verem que aqueles artistas trazem gente e são, de facto, uma oportunidade de negócio.”

É difícil explicar que artistas com Elji Beatzkilla ou Deejay Telio se fiquem nos subúrbios, apesar do impacto geral largamente superior ao dos nomes bem sedimentados das grandes discográficas e que acabam por pautar os cartazes dos ditos grandes eventos de música nacionais. Também não é fácil processar a peculiar recepção que Freddie Gibbs teve em Paredes de Coura, aquando da sua actuação com Madlib, por proferir palavras que, numa era pós-George Floyd, seriam da mesma importância para quem o criticou que outras proferidas por Patty Smith no mesmo certame. E os exemplos sucedem-se.

Estas são, todas e em boa verdade, oportunidades perdidas. Não apenas de um ponto-de-vista financeiro, de negócio, mas também de tirar proveito de um capital cultural que brota na periferia, algo que está por fazer: “O que a Príncipe faz, por exemplo, acontece por puro talento e trabalho das pessoas envolvidas. É muito diferente do que acontece nas grandes capitais”. Exemplos como o de Londres, do Arts Institute e das escolas de jazz, que apoiam de forma continuada o surgimento e a formação de novos artistas, algo que em Portugal se queda nos programadores e na sua capacidade de trabalhar mercados e públicos. “A Príncipe tem extra valor porque não há nenhuma escola por detrás daquilo. Ninguém os ensinou a tocar teclado, ou a usar software de produção.”

Pesa ainda, e na sua opinião, outra factor: “a condição de ser africano é muito mais forte do que a condição de se ter uma ascendência cultural específica”, como se sente na tendência para a criação de novas estirpes de kuduro, tarraxo e funaná, que são prevalentes. Por outro lado, são estas valências que acabam por tornar a miopia das salas de média e grande capacidade, assim como os grandes eventos, mais difíceis de explicar. “No Alive ainda tocaram os De La Soul e os Jurassic 5. É preciso serem muito grandes e, claro, americanos…”

Sobre Bandé-Gamboa, o futuro é tão incerto quanto dos demais projectos que viverão da comunhão de palco e de concertos. A pandemia adiou todos os planos de um projecto que foi pensado, de raiz, para crescer nesse sentido. Contudo, as coisas boas sucedem-se em Horizonte, com um remix de “Pé di bissilon” com cunho da dupla holandesa Detroit Swindle acabado de lançar. Há, ainda, mais duas remisturas a caminho, uma de “Citi Ku Liti” assinada pelo produtor canadiano Poirier, e outra de “Nós tabanka” por Pedro Coquenão aka Batida, com  datas de edição respectivamente apontadas para 11 de Novembro e 9 de Dezembro.

Os olhos ficam postos no Horizonte: “criando este ambiente artisticamente livre e plural aos músicos, conseguimos criar uma espécie de um oásis para conseguir competir a um nível mundial. Nós queremos que esta banda esteja no topo, e que tenha a mesma rodagem que as maiores. Não vale a pena poupar na ambição”, admite Francisco Sousa. Não podíamos concordar mais.


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