pub

Fotografia: Augusto Brázio
Publicado a: 23/04/2024

Um som cabo-verdiano, mas sem fronteiras.

Nancy Vieira: “A música nunca pertence a uma só pessoa, é da gente, é nossa”

Fotografia: Augusto Brázio
Publicado a: 23/04/2024

Nancy Vieira gosta de ter gente por perto e aposta tudo no maravilhamento dos encontros. São eles que nutrem a vida que corre na música, incitando novas viagens e descobertas, imaginando outros mundos possíveis. Em Gente, o seu sexto álbum, a cantora continua investida em tornar o seu arquipélago numa brilhante constelação, rodeando-se de gente de várias geografias, e que partilha o desejo de trocar o deserto da intolerância pelo gesto sensível de encanto com os outros. 

Desses encontros surgiu um álbum onde de raízes cuidadas e nutridas florescem novas flores, cores e frutos, que tanto cruzam países e tradições, como abraçam diferentes géneros, línguas e gerações. Um mar imenso de possibilidades que a voz elegante de Nancy unifica, sustentada por arranjos cuidados e que evitam qualquer risco de dispersão. Afinal, este é um disco de música cabo-verdiana, mesmo que, como aqui refere a cantora, insista em manter as fronteiras abertas. 

De horizontes abertos ao mundo, Gente navega as águas da memória e da esperança, do amor e do calor, da serenidade e do fogo, ou melhor dizendo, do “Fogo Fogo”, que nunca como aqui se viu um funaná soar tão delicadamente suave e fervoroso. Reivindicando a música como um lugar de criação partilhada, este é um disco que multiplica possibilidades, mas que nunca deixa de procurar uma rota comum, numa prazerosa viagem em busca da vida e do futuro. Seguindo as sapientes palavras de Amélia Muge, coprodutora do disco, é também isso que significa ser contemporâneo: “Criar o que que nos falta, independentemente dos procedimentos e tecnologias empregues (…); ter uma alma sensível no mundo difícil da procura do eu e do outro naquilo que somos, como gente”. 

De toda esta viagem falámos na cidade na Praia, mais propriamente no Quintal da Música, espaço icónico da música cabo-verdiana, bem perto do local onde a cantora cresceu, depois de uma tocatina de apresentação do álbum.



Queria começar pelo local onde estamos, o Quintal da Música, na cidade da Praia, que é muito perto do sítio onde cresceste. Este disco homenageia uma certa forma de estar na música, que dizes ser muito característica de Cabo Verde, e que assenta numa partilha muito orgânica e natural. Foi também isso que aconteceu na tocatina a que assistimos? Os músicos que te acompanharam não foram os músicos do álbum, mas estavam ali num bailado como se tivessem sido eles a compor e gravar.

Sim. Grande parte dos nossos músicos pegam numa música e apropriam-se dela naturalmente. A música nunca pertence a uma só pessoa, é da gente, é nossa. O álbum tem também esse espírito. É interessante porque isso aconteceu com os músicos cabo-verdianos que participam no disco, mas também com os músicos de outras nacionalidades e que também têm esta forma de estar. Talvez seja a própria música que contagia essa atitude. Os músicos brasileiros podem ter uma forma de estar parecida com a nossa, mas no disco tens também um músico ucraniano ou músicos portugueses, como a Amélia Muge e o António José Martins, que são uma geração diferente, mas que se encantam também com a nossa forma de estar.

É a música e não a geografia que cria essa ligação natural? 

Sim, é mesmo a música que contagia. Apesar do álbum ter gente muito distinta e de nacionalidades diferentes, o que fizemos foi música de Cabo Verde. É claro que todos eles trouxeram os seus sotaques e os seus sentires à nossa música. Isso permite-te viajar, mas não deixa de ser música de Cabo Verde. 

Há uma identidade. 

Há identidade sim, mas não existem fronteiras que a limitem. Há elementos identitários da música tradicional, mas não há uma nenhuma fronteira a fechar as possibilidades do disco. E há o crioulo, claro, que é a língua maioritária do disco. Há uma música cantada em português, a “Fado Crioulo”, cantada com o António Zambujo e o Chullage, a “Singa”, cantada em crioulo da Guiné pelo Remna, a “Rosa Sábi”, em dueto com a Amélia Muge, metade em português, metade em crioulo. Tirando essas, todas as outras músicas são cantadas em crioulo de Cabo Verde e isso também ajuda a identificar a música. 

Neste disco tens músicas originais e versões de músicas mais antigas do cancioneiro cabo-verdiano. Sendo esse cancioneiro tão rico, como é que escolheste as músicas para fazer novas versões?

Ui… [risos]

Posso dar como exemplo a “Ta Cundum Cundum”, que é uma composição do Ano Nobo, eternizada pelos Tubarões, e que aqui é reinterpretada por ti e pelos Fogo Fogo

Essa é das mais fáceis. Eu não estabeleço quotas nos discos, mas tenho sempre temas inéditos e faço também questão de gravar clássicos. Neste disco tens, por exemplo, o tema “Amor”, um clássico do B. Leza, o “Dona Morna”, do Teófilo Chantre, ou esse funaná clássico cantado pelos Tubarões e que é uma música da minha infância. Eu ria-me muito com esse refrão, “ta cundum cundum”, achava uma coisa super cómica, uma brincadeira. Ouvia muito essa música em casa, tinha uma fixação por ela e sempre pensei que um dia tinha que a gravar. Foi agora o dia. Só que eu não queria fazê-lo sozinha. Não que sentisse algum tipo de insegurança em cantar um funaná a solo, mas já que este é um álbum de encontros pensei em chamar os Fogo Fogo. Eu acho muito giro ver uns tugas e um rapaz de São Vicente a fazerem funaná em Lisboa daquela maneira [risos]. Eles fizeram uns arranjos de que eu gostei mesmo muito. Acabou por ser a minha homenagem aos Tubarões, a essa música da minha infância, e também ao Ano Nobo, que compôs a música original. 

Também acho muito bonito que o Ano Nobo, que compôs cerca de 400 músicas, mas que só tem uma gravação comercial registada, veja agora as suas composições regravadas por outras gerações e com uma nova roupagem. 

Eu pensei muito nisso porque a única versão gravada dessa música é esse clássico dos Tubarões. O mesmo aconteceu com a morna “Amor”, do B. Leza, que só tinha sido gravada pelo Bana. Mas decidi arriscar, não ter medo, e estou muito orgulhosa por ter tido essa ousadia. Acho que a receção das pessoas tem sido muito generosa. As pessoas têm percebido essa minha homenagem ao Ano Nobo, aos Tubarões, ao Bana e ao B.Leza. 

A tua música sempre teve um lado mais suave e tranquilo, mas neste disco também vemos um outro lado mais intenso, com mais sangue e calor. 

Tem mais sangue sim, mas na minha opinião não deixa de ser suave. É quase impossível imaginar um funaná suave [risos], mas eu disse sempre ao Márcio [Edu Mundo] que a bateria tinha de ser tocada com cuidado e de forma suave [risos]. Mas concordo que tem um pouco mais de sangue. 

Foi algo que querias trazer à tua música ou foi uma consequência desses encontros? 

Não foi voluntário, foi a consequência dos encontros e, na realidade, foi tudo muito espontâneo. Eu, a Amélia Muge e o António José Martins, que produzimos o disco, tínhamos ideias para arranjos para algumas músicas e fomos delegando. Por exemplo, deleguei ao Henrique Silva, de Acácia Maior, os arranjos de “Nôve Kretxêu”, ou aos Fogo Fogo os arranjos da “Ta Cundum Cundum”. Mas as músicas foram-se criando naturalmente, não houve uma decisão de mudança. 

Falando de encontros, um outro aspeto importante neste disco é o cruzamento de gerações. Colaboras com músicos de referência como o Vaiss, mas também tens convidados mais jovens, como os Acácia Maior, que sempre falaram de ti como uma inspiração. Esse cruzamento de gerações é importante para ti? 

Sim. E é verdade, quando eu gravei o meu primeiro disco, o Luís Firmino, de Acácia Maior, era uma criança [risos]. No disco tens uma geração mais velha de músicos como o Vaiss, e gente mais nova, como Acácia Maior. Mais uma vez, nada disso foi muito calculado. Eu conheci os rapazes de Acácia e encantei-me com a música deles desde o single “Cata Borrê”, em que participava o Lula’s [Cachupa Psicadélica], e que saiu muito antes de lançarem o álbum. Percebi que eles tinham muitas composições e encontrámo-nos em diversas ocasiões de tocatina em casa de amigos e noutros espaços. Quando estava a pedir músicas para o álbum pedi-lhes também e aconteceu esse “Nôve Kretxêu” 

Estavas à espera que saísse uma cumbia criola? 

Não. Inicialmente era uma morna quase galope, daquelas que não são tão lentas. Fui ter com eles várias vezes para tocar a música e para ver se surgiam ideias. A um dado momento sentimos chegar um balanço de cumbia e decidimos assumir.

Que também foi um estilo muito ouvido em Cabo Verde. 

Certo. Se fores ouvir os discos de A Voz de Cabo Verde, um dos coletivos principais de veteranos da música de Cabo Verde, estão cheios de cumbia. Eu quando era pequenina não sabia o que era a cumbia, não sabia onde era a América Latina, mas ouvia essa música e, para mim, essas cumbias eram também a nossa música, eram a música de todos. Não é nada que não me seja muito familiar e é um estilo muito próximo à coladeira. Há algumas especificidades, claro, mas para nós é algo muito familiar.



Este álbum é também um encontro de diversas geografias. É um disco de música cabo-verdiana, gravado em Portugal, e que tem dentro a Guiné, o Brasil, Angola e muitos outros lugares. Num tempo em que vemos tanta gente a expressar discursos de divisão, ódio e xenofobia, achas que a música pode assumir um papel particularmente importante no contrariar dessas narrativas?

Pois, não consigo mesmo perceber esses discursos… A união que a música proporciona não é de hoje. Mas esses discursos que procuram separar pessoas por raça, cor de ele, religião, etc., também não são de hoje. Não é fácil pensar nestes assuntos porque, não querendo ser pessimista, não consigo ver um fim à vista. Mas eu vivo como eu sinto e felizmente encontro pessoas, gente de todos sítios, de todos os lugares, com quem posso conviver e que também não vêem essas diferenças. Em relação a Portugal, a situação é muito grave. Não vamos entrar em política, em resultados eleitorais…

Mas há um problema. 

Claro que há um problema. Falando em Portugal, essa ideia da “Lisboa Criola”, ou dessa “Nova Lisboa”, não é de hoje, existe há muito tempo. O Dany Silva, para dar um exemplo, foi muito jovem para Lisboa estudar agronomia, entrou na música há uns 50 anos e conheceu e trabalhou com veteranos da música portuguesa, tocaram juntos e conviviam. E não só o Dany, também o Luís Morais, o Paulino Vieira, o Tito Paris, e muitos, muitos outros, que trabalharam sempre com músicos portugueses. Esse convívio comum sempre existiu. O que é novo agora talvez sejam os sons, mas essa “Lisboa Criola” do convívio, do intercâmbio cultural, existe há muitos anos. 

Pensado em intercâmbios, o álbum também proporciona um encontro de diferentes géneros musicais. Tens aqui a morna, claro, mas também o funaná, o semba, a cumbia ou uma ideia de “fado crioulo”. Há aqui muitas heranças musicais, mas ao mesmo tempo é um álbum que tem uma identidade, não é um objeto disperso. Como é que se encontra esse equilíbrio?

Exatamente. Tentei sempre que não perdesse identidade. O álbum tem Cabo Verde, Portugal, Espanha, Brasil; tem várias línguas, especialmente o crioulo. Mas ao ouvir o disco eu acredito não se sente dispersão. Ainda estou curiosa com as reações, mas mesmo as pessoas, se quiseres, mais apreciadoras de morna, ou mais perto do que poderiam ser considerados os “puristas”, gostaram do álbum. É claro que não podemos agradar a todos, mas as reações têm sido muito boas. 

Mas como é que se encontra essa unidade quando se trabalha com patrimónios, com histórias e identidades tão particulares? É no trabalho de produção?

Acho que é sobretudo nos arranjos. Voltando a esse funaná, “Ta Cundum Cundum”, que é o único tema que tem bateria, tivemos a preocupação que ela não destoasse do todo. 

O resto das percussões são do Iúri Oliveira?

Exatamente. E do Miroca Paris, que é o percussionista convidado no tema “Dia Funçon”. O álbum é feito de canções suaves. São canções que estão presentes, que têm personalidade, mas são suaves. 

Neste álbum, um dos estilos com que a tua morna se encontra é o semba, que também está em processo de patrimonialização pela UNESCO, e que abordas com a companhia do Paulo Flores, um dos maiores nomes da música angolana e não só. Como é que se deu este encontro?

É muito gira essa história. Eu gravei o tema “Meditá” quando tinha 18 anos, no meu primeiro disco que saiu em 1995. Há poucos anos recebi uma chamada de um amigo angolano a dizer: “Olha lá, és tu aqui a cantar nesta música?”

A tua voz era bastante diferente. 

Claro. Era diferente a voz, mas até a própria música, porque muitas pessoas habituaram-se a ouvir-me nas mornas e essa música tinha uma sonoridade diferente. Eu respondi-lhe que era eu, que tinha gravado essa música com uns 18 anos, e ele perguntou-me se eu tinha noção do que era essa música em Angola nas festas e nas discotecas. Eu não sabia e ele mostrou-me várias páginas de DJs, de discotecas, vídeos de festas com as pessoas a cantar a música porque é uma música dançante e parece que puxa ao semba. Sem saber, a música acabou por ficar assim um hit nas pistas de dança. Alguns angolanos até ficavam um pouco dececionados quando iam aos concertos e não cantava essa música [risos]. Comecei a receber mensagens e seguidores por causa da música, então decidi fazer uma nova versão, para lhes tentar chegar ao coração como me tocaram também a mim com todo esse carinho. Decidi tocar de novo a música, mas agora acompanhada de um dos maiores cantores angolanos, o Paulo Flores, que felizmente me disse logo que sim. Fiquei muito feliz. 

Como vês o atual momento da música cabo-verdiana? A morna foi classificada como Património Imaterial pela UNESCO, mas a música de Cabo Verde tem muitos outros estilos e géneros com uma importante história social e política, além de questão estética, claro. Como é que vês este momento e o que é que projetas que pode ser o futuro? 

Sim. O bakuku já Património Nacional, como foi a morna antes de ser considerada património imaterial. Acho que já se pensa numa possível candidatura à UNESCO. Eu acho que os géneros principais estão bem representados, não só a morna e coladeira, que andam juntos, mas os outros também. Depois há novos géneros que surgem, que não são tão tradicionais, mas que são música cabo-verdiana nova, ainda não sei que nome atribuir, mas que é mais moderna e globalizada. 

Olhando para o teu disco, colocarias Acácia Maior nessa sonoridade?

Queria chegar precisamente aí. Acácia Maior conjuga na perfeição essas duas realidades. O Luís Firmino, que viste agora tocar, aprendeu com os mestres e inspira-se nessa tradição. Eles fazem a conjugação perfeita dessa tradição, que respeitam muito, com a música urbana global. 

Sentes, então, que se vive um bom momento para música de Cabo Verde?

Penso que sim. Há muitos artistas aqui esta semana e o Atlantic Music Expo incentiva muito os jovens músicos. É claro que há o talento, aquele “fator X”, mas depois há também o trabalho. E certames como este ajudam os jovens a trabalhar, a investir e a mostrar o seu talento.


pub

Últimos da categoria: Entrevistas

RBTV

Últimos artigos