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Fotografia: BOAVENTURA
Publicado a: 27/03/2023

Enraizados na tradison.

Acácia Maior sobre Cimbron Celeste: “Este álbum é uma viagem pelas ilhas e pelo tempo”

Fotografia: BOAVENTURA
Publicado a: 27/03/2023

As raízes são sólidas, extensas, profundíssimas. Tão vivas e tão férteis que delas germinam mil cheiros, flores e frutos. Luís Firmino e Henrique Silva vivem com os pés assentes na terra e com a imaginação em busca dos cosmos. Juntos levantaram a sua Acácia Maior – não um dueto, não uma banda, mas um coletivo livre, celestial e aberto a quem se encontrar na viagem. 

Nascidos em São Vicente, conheceram-se em Portugal, em 2018, no lançamento da Tabanka Records. Foi amizade à primeira vista, ao som do violão e do cavaquinho. Sem nenhum plano arquitetado, começaram a experimentar, a criar em conjunto e decidiram não ignorar o que estavam a viver e a sentir. Dos encontros que essa Acácia fez nascer surgiu, então, o barro em que se moldou este Cimbron Celeste, um álbum luminoso, inventivo e construído com quem deles se fez cúmplice.

Respeitando o tempo próprio das criações, Cimbron Celeste é uma viagem pelas diferentes ilhas de Cabo Verde e pelos diferentes tempos em que se ergueu a sua ampla e fértil diversidade poética, rítmica, sonora e musical. Mas é também um diálogo com o tempo presente, onde a música se renova e regenera nos encontros que precipitam o futuro. Ao longo de três anos, nutriam o solo, plantaram paixões e regaram muitas ideias. O que agora colhem é um rico e delicado ecossistema sonoro, povoado de muita experimentação, ética e comoção. Um coletivo resistente à indústria do individualismo e que aposta tudo no espanto. O mundo terá perdido dois engenheiros, mas em contrapartida, ganhou dois criadores radicalmente livres. Que seja longa a sua jornada e que esta Acácia floresça por todos os caminhos que falta imaginar.



Percebemos desde a vossa estreia que vocês são pessoas com influências musicais ecléticas e muito variadas. Queria começar mesmo pelo princípio. Quais são as vossas primeiras memórias musicais? Quais foram as primeiras músicas que se lembram de ter escutado? 

[Henrique Silva] As minhas primeiras memórias musicais talvez tenham sido Os Tubarões e a Cesária Évora. Eu nasci em 1991 e o álbum Miss Perfumado foi lançado em 1994. Esse álbum foi das minhas primeiras memórias musicais. E depois Os Tubarões lembro-me de ver os videoclips. Tinha uns cinco anos talvez. A minha família ouvia muita música. As minhas primeiras memórias são essas, mas o meu pai ouvia muito jazz, muita música brasileira, Djavan, Milton Nascimento

[Luís Firmino] No meu caso, a minha primeira memória musical é o Dudu Araújo. Em 2000 ou 2001, com seis anos ou sete anos, eu cantava todas as músicas do álbum Pidrinha. E depois, logo a seguir, o Ildo Lobo, com o álbum Intelectual, em que aconteceu a mesma coisa. Antes disso, lembro-me de uma cassete que o meu pai ouvia de Tito Paris, mas o álbum do Dudu Araújo foi o que mais prestei atenção.

E quando foi a primeira vez que pegaram num instrumento? Estiveram em escolas de música, foi a ver outros a tocar em casa e a tentar imitar?

[Henrique Silva] Nós temos essa coisa parecida, começámos a tocar ali pelos 16 anos. Eu comecei a tocar violão numa altura em que descobri os Red Hot Chili Peppers, nada a ver [risos]. Também ouvíamos isso tudo, Nirvana, Red Hot. Aquela banda bateu-me muito no final da adolescência, então eu queria descobrir aqueles rocks clássicos [risos]. O meu pai tinha-me comprado uma guitarra para aí aos 10 ou 12 anos, só que nunca liguei. Um gajo queria era jogar à bola [risos]. Depois quando comecei a ouvir e a apreciar mais música é que avancei.  

Mas tiveste formação? 

[Henrique Silva] Não, nunca tive. Só que depois dessa fase do rock comecei a mergulhar muito na cena do jazz e da música brasileira. O meu “professor” de guitarra foi o Djavan. Aprender aquelas músicas dá-te um repertório e um dicionário de acordes e harmonias gigante! Djavan é quase música popular cabo-verdiana, toda a gente ouve, é um deus lá [risos]. 

[Luís Firmino] A minha relação com os instrumentos também começou aos 16 anos. O meu irmão já fazia alguns acordes, pedi que ele me ensinasse o que ele sabia. Lá em casa sempre teve um violão encostado, mas nunca me atrevia a tocar, aquilo assusta [risos]. O violão é uma coisa… 

[Henrique Silva] Depois de ver os prós que iam lá a casa tocar [risos]…

[Luís Firmino] Pois, ficas com muito medo [risos]. Mas eu sempre dizia: “Um dia, antes de partir deste planeta, tenho de fazer alguma coisa com a música”. E então aconteceu esse feliz acontecimento com o meu irmão. Lembro-me dele a mostrar-me o lá menor e o mi menor, que são os acordes mais fáceis [risos]. Gostei imenso e nunca mais parei, fui sempre procurando, porque no bairro de onde sou [Bairo do Alto Solarino, no Mindelo] há muito pessoal que toca música. 

Porque é que decidiram vir para Portugal e como é que se conheceram? 

[Henrique Silva] Depois do liceu eu vim para o Técnico para estudar para Engenharia Informática [em 2009]. Depois mudei para Eletrotécnica, também não deu, e fui fazer uma Licenciatura em Ciência e Tecnologia do Som, na Lusófona. Fui à procura de um curso de som, onde desse para juntar a cena artística e a cena técnica, um pouco para enganar os meus pais [risos].

[Luís Firmino] [Risos]

[Henrique Silva] Como estava a fazer uma licenciatura era ok, eles estavam mais seguros, mais tranquilos. Mas aquilo que sou hoje como produtor musical veio muito dessa escola. Entrei a tocar guitarra e sai de lá a pensar a música, aprendi as bases todas de produção. 

[Luís Firmino] Eu também vim para estudar na Universidade do Algarve, Engenharia Civil [em 2012]. Acabei, mas nunca mais exerci. 

Vocês começaram a tocar, a melhorar a técnica do instrumento, a conhecer pessoas. Há um momento concreto em que pensaram “ok, não é a engenharia, eu quero mesmo fazer música”? 

[Henrique Silva] Eu lembro-me que a mim esse momento deu-se quando ouvi o álbum Os Afro-Sambas, do Baden Powell e Vinicius de Moraes. Aquele álbum tocou-me de uma forma assim… [Hesitação] Pensei: “Não, espera aí, calma…” [risos]. Bateu-me muito. Percebi que tinha de fazer alguma coisa. Na altura comecei a tocar muito, passava o dia todo focado na guitarra, a aprender técnicas. Apesar de nunca ter tido essa cena de “quero ser músico”. Eu gostava, sonhava fazer algo ligado à música, mas nunca imaginei que chegasse a este ponto de estar a fazer um álbum, a tocar com vários grupos e em palcos no mundo inteiro. Nunca me passou pela cabeça. [risos]

[Luís Firmino] Eu tinha começado a tocar aqui em Lisboa com um grupo chamado Nôs Raiz, que tocavam na rua. Mas depois voltei para o Algarve. Quando acabei o curso senti: “Ok, já terminei o curso, agora posso ver o que faço com a minha vida”. No Algarve desenvolvi uma cena em que gravava os acompanhamentos e tocava um solo de cavaquinho em cima. Comecei a fazer isso na rua e vi como as pessoas reagiam imediatamente. Foi aí que descobri o meu talento. Então pensei: “Porque não?” Dei essa chance a mim mesmo e as pessoas começaram a conhecer o rapaz do cavaquinho. E foi assim que depois vim a conhecer o Henrique. Uns amigos chamaram-me para vir tocar aqui, o Henrique foi convidado a esse evento e a gente conheceu-se.

Em que evento foi? 

[Henrique Silva] Esse evento foi muito importante, foi o lançamento da Tabanka Records, do nosso brother River Ramos. Ele é um grande colecionar de vinis, quis abrir essa loja Tabanka Records e, depois, teve a ideia de começar a fazer produções com o mesmo selo. A festa foi num sítio chamado Rubera, ali na Amadora, num sítio dos nossos amigos, os Rubera Roots Band. Eu apareci lá com o Lula’s, o Cachupa Psicadélica, estávamos a gravar o Pomba Pardal e procurávamos um cavaquinho para um tema. Quando a gente vê o Firmino a tocar, foi logo: “Eish, quem é este gajo?! Granda cena, parece o Bau a tocar!” [risos] 

E porque é que decidem formar o projeto Acácia Maior? Vocês já estavam a tocar sozinhos ou com várias pessoas. Como é que perceberam que tinham de construir um projeto juntos e que havia alguma coisa nova que era preciso criar?

[Luís Firmino] Não foi por uma necessidade, simplesmente aconteceu. A gente não pensa muito, não foi nada arquitetado. Foi muito espontâneo. Nós estávamos atentos ao que estava a acontecer e ainda bem que não ignorámos aquilo. Começámos a criar umas cenas, demos valor ao que estávamos a criar, apostámos no que estávamos a fazer. Fomos nutrindo a nossa amizade e foram aparecendo as músicas. 

E qual a história do nome Acácia Maior? Sei que tem a ver com as acácias, uma planta/árvore muito presente em Cabo Verde, super resistente à seca, de raízes fundas e muitas ramificações. Mas também tem a ver com uma discussão sobre a música do Vasco Martins, certo?

[Henrique Silva] [Risos] Estávamos num dia num ensaio com o Lula’s, e com ele eu uso muitos sintetizadores e teclados, uma cena assim muito espacial, que remete um pouco à sonoridade do Vasco Martins. 

Muito cósmico

[Henrique Silva] Muito cósmico. E o Firmino foi ao teclado, fez uma cena, um acorde, e disse “Acácia Maior”. 

[Luís Firmino] Eu fiz o acorde e lembrava o Vasco Martins, então nesse ambiente criado eu disse esse nome para tentar descrever esse universo, esse sentimento. Disse “Acácia Maior” porque sabia que eles iam entender. Acácia, Cabo Verde. Maior, como a Úrsula Maior. Algo espacial e cósmico. A gente até brincava: “Já criámos uma escala nova!”. Só depois é que importamos o nome para este projeto. Mas não foi nada muito pensado, estávamos só a criar. 

Se nos remetêssemos aos termos mais anglo-saxónicos da indústria musical vocês seriam classificados como uma “banda” ou como um “dueto”. Mas vocês insistem muito na palavra “coletivo”. Como as palavras são importantes, gostava que falassem sobre o que significa para vocês essa ideia de coletivo.

[Henrique Silva] Nós inspiramo-nos muito em grupos como o Voz de Cabo Verde. Acho que foi o primeiro coletivo, não é? Tinhas várias individualidades, várias pessoas talentosíssimas, que fizeram vários projetos, mas durante muitos anos mantiveram o coletivo. Durante para aí 30 anos? 

[Luís Firmino] Houve umas três gerações na Voz de Cabo Verde. O Bana esteve quase sempre lá com eles. No início era com o Luís Morais, o Morgadinho, Frank Cavaquim, o Jean da Lomba. Depois o Paulo Vieira, na segunda geração, o Tito Paris vem numa terceira fase. Enfim, é incrível ver como alguns dos maiores músicos de Cabo Verde passaram todos por este coletivo. Nós usamos Acácia Maior como uma plataforma. Costumamos dizer que cada um de nós é uma estrela, o céu tem tantas estrelas, e podem todas brilhar sem ninguém ofuscar ninguém. Eu mostro as minhas qualidades como compositor, o Henrique como compositor, produtor e instrumentista, a Eliana Rosa mostra a sua voz, o Lula ‘ s a sua voz e o seu projeto. Se a gente fechasse isto num “grupo” íamos limitar esta beleza toda. 

E abre bastante as possibilidades para o futuro, não é? O que será um segundo álbum? Será sequer um álbum? 

[Luís Firmino] Será um filme, um livro? [Risos]

[Henrique Silva] Será que somos ainda nós? Podem ser também outras pessoas. 

Acácia Maior é hipótese em aberto? 

[Henrique Silva] Exatamente. Deixamos tudo em aberto.

Vamos então ao álbum e queria começar pelo título: Cimbron Celeste. Como nasceu esta conjugação de palavras?

[Luís Firmino] Como eu já tinha pensado em “Acácia Maior”, tentei criar mais. Peguei no Cimbron, que é uma árvore de Santiago, endémica, que dá um fruto redondinho, e acrescentei essa ideia celeste. Fiz o mesmo processo.  

Terra e cosmos, mais uma vez.

[Luís Firmino] Exato.

O álbum é um ecossistema sonoro, rítmico e melódico muito diverso. Está repleto de referências a ritmos tradicionais cabo-verdianos, o batuque, o cola san jon, a morna, a coladeira, o funaná, mas também aos universos do reggae, zouk, rap, rock psicadélico, blues… Qual é a vossa relação com este reportório tradicional da música cabo-verdiana e porque é que decidiram misturá-lo com tantas referências? Como é que nasceu este gesto? 

[Luís Firmino] Brincadeira, não é? [Risos] A gente está a brincar com as coisas e vamos experimentando e fazendo. O “Catá Bórre, por exemplo, estávamos a fazer uma morna e pensámos: “Porque não meter um groove de reggae?” Erámos duas crianças a brincar, tudo muito genuíno e sem esperar nada.

[Henrique Silva] A escolha desses sons não foi premedita, nem planeada, não queríamos mostrar que sabíamos tocar isto ou aquilo. 

[Luís Firmino] A gente confia sempre nas músicas. Deixamos sempre a música dizer o que tem a dizer. Deixamos a música falar. 

[Henrique Silva] Em termos de sonoridade, o álbum é uma viagem pelas ilhas e uma viagem pelo tempo. Em termos de mistura, na pós-produção, tentei homenagear a música dos anos 70, 80, 90, 2000, 2010 e 2020. Temos baterias mais pesadas, umas mais à frente, outras mais atrás, sons mais sujos e outros mais limpinhos. Em termos técnicos houve essa intenção de querer chegar a essas sonoridades que nós gostamos muito. Nós ouvimos muita coisa, os vinis antigos, gosto muito daquela sujidade das gravações, não ser uma coisa completamente clean, isso é fixe. 

Pode parecer muito natural para quem ouve, mas como é que se respeita estruturas de composição tradicionais e ao mesmo tempo se abre e amplia essas mesmas estruturas? Como é que se regressa às raízes e se constrói um som de matriz universal?

[Henrique Silva] Há uma matriz e uma pulsação para respeitar, acima de tudo, a cena poética. A poesia é muito específica em Cabo Verde. Depois nos arranjos é que está um mundo novo onde, respeitando a matriz, a tradição e o folclore, podemos ter um leque muito vasto de opções. As pessoas ficam muitas vezes presas naquele tipo de arranjo, dos timbres da guitarra e do cavaquinho, mas a gente tem liberdade para escolher e fazer muitas outras coisas. Porque não usar uma guitarra com distorção?

Em relação ao processo de composição, como é que nasceram as canções? Começam primeiro com os textos, com as melodias? Um escreve e o outro compõe? A gravação foi em casa ou foram a estúdio? 

[Henrique Silva] Tudo em casa, só fomos a estúdio gravar baterias. Em várias casas, aliás, no Algarve, na Damaia, na Cova da Mora — nos sítios onde fomos morando fomos gravando. As canções nasceram sempre do violão e voz. A estrutura de base era essa. Às vezes vinha a melodia ou o Firmino já tinha umas ideias de letra e íamos construindo.

[Luís Firmino] Eu escrevi a maioria das letras, algumas já tinha, outras fomos construímos juntos, quase sempre com ele com o violão na mão e eu mais livre a começar a inventar as melodias com as letras. 

Quando pegam no violão ainda não conhecem qual será o texto poético? 

[Luís Firmino] Nem estamos com intenção que alguma coisa apareça. É sempre uma surpresa: “Uau, uma música!” [Risos]

[Henrique Silva] Nós somos bastante observadores dos nossos dias, daquilo que a gente passa. Estar contigo ou estar com outras pessoas, vamos sempre ouvindo coisas e inventando histórias entre nós. Depois, às vezes, no momento, dizemos: “Lembras-te daquilo?” E vamos por aí. 

Queria ir agora a alguns temas. Começando com “Grandeza”, a abertura do disco. Como é que definem esta música? É uma morna psicadélica? 

[Luís Firmino] [Risos] A gente nem sabe…

Como é que nasceu a música? É uma música importante e que abre o álbum de forma grandiosa.

[Henrique Silva] [Risos] O “Grandeza” foi a primeira música que fiz quando recebi o meu primeiro cavaquinho. Era para ser uma música instrumental. Gravei o cavaquinho, mandei ao Firmino e ele começou a fazer a letra [risos]. 

[Luís Firmino] Eu comecei logo a ouvir a letra [risos].

É uma música que determina logo uma certa aura do álbum, uma cerca ideia esperançosa e luminosa. 

[Luís Firmino] Eu lembro-me de estar no meu quarto, pôr essa música e adorei. Era cavaquinho e melodia, e ao ouvir a música, ouvi logo a letra: “Grandeza nesse mundo…”. 

[Henrique Silva] Mas era para ser uma morna super clássica [risos].

Então como é que depois entra a guitarra elétrica, o piano, a percussão eletrónica?

[Henrique Silva] Foi num ensaio em que a gente estava a tocar para uma primeira atuação que íamos fazer. Pensámos: “Como é que vamos fazer isto?” Então peguei na guitarra elétrica e comecei a fazer o riff do início. Ele foi no pad e começou a experimentar o ritmo. Na primeira fase ficou este ritmo, e a partir daí foi o processo todo de construção. A música foi ganhando camadas atrás de camadas. De repente: “Porque não pôr aqui um órgão?” Falei ao João Gomes: “Podes-me pôr uma cena assim tipo Orelha Negra aqui?” [Risos] Depois veio guitarra, fomos gravar a bateria, enfim, foram mesmo muitas camadas…

E a decisão do solo? 

[Henrique Silva] [Risos] Eu lembro-me um dia estar em casa à procura de arranjos e começou a vir uma ideia de um solo à cabeça e gravei logo. Lembro-me de não ter ficado muito contente, podia ser demais, podia estar-me a esticar. Mas depois fui ouvindo e decidimos avançar. Esse solo foi numa madrugada, tinha sido pai há pouco tempo…

A sério? Curioso, até porque a letra fala do sorriso de uma criança [Risos].

[Luís Firmino] [Risos] Se calhar…

[Henrique Silva] [Risos] Pois é! Enfim, é por tudo isto que o álbum demorou tanto para o sair. Se calhar é uma pergunta que tens…

Acho que se percebe pela descrição do processo porque é que as coisas levaram o seu tempo.

[Henrique Silva] Pois, mas as pessoas estavam sempre: “Então o álbum?”; “Já deviam ter lançado o álbum!” [Risos] 

[Luís Firmino] Nós temos o nosso tempo. 

[Henrique Silva] As músicas têm de ter o seu tempo. 

Vamos então a outra, “Ólt Martim”, com dois convidados de luxo, o Paulino Vieira e o Danilo Lopes. Como é que surgiu essa música?

[Luís Firmino] [Risos] A música tem origem na minha infância. A história vem de um dia em que fui a lugar chamado Ólt Martim. 

Ah, é um lugar… Andei a pesquisar e não encontrava nada… [Risos]

[Luís Firmino] [Risos] Pois, mesmo assim não se chamava Ólt Martim, é um nome que foi criolizado. Então fui lá um dia com o meu pai, a minha mãe, os meus irmãos e, como diz a letra, fomos à procura de umas pedras lajes. São pedras compridas e largas, o meu pai ia buscá-las para pôr numa casa, para forrar as paredes. Só que nós temos um Land Rover daquelas muito antigos, que tem problemas de travões. O carro estava parado numa descida e houve uma altura em que o meu pai e as minhas duas irmãs minhas trouxeram uma daquelas pedras grandes. Eram três pessoas a agarrar naquela pedra! Quando puseram a pedra dentro do carro, o carro desengatou, e eu estava dentro do carro com a minha mãe, tinha uns cinco ou seis anos. A música vai contando a história até esse momento meio de pânico. 

Mas depois corre tudo bem [risos].

[Luís Firmino] Exatamente, porque o meu pai vem a correr, abre a porta rápido, vem e consegue travar o carro. É uma história de família que a gente sempre conta. 

[Henrique Silva] E a sonoridade da música também vai buscar essa história, quase como se fosse um filme. Essa tensão da história. E depois aquela parte final com o solo do Paulino Vieira, que eu só imagino a imagem do carro em câmara lenta, com aquilo tudo a acontecer [risos].

Dava um excelente videoclipe [risos]. E como é que a música acontece? Aquele solo no final é muito pouco expectável. Foi o Paulino que se sentou ao teclado e a coisa deu-se?

[Henrique Silva] Isso foi muito interessante. A gente começou a construir essa música porque queríamos fazer uma mazurka. E de repente conhecemos o Paulino Vieira. 

Como é que o conheceram? 

[Henrique Silva] Eu cruzei-me com ele um dia quando estava ia apanhar o comboio no Rossio. Hesitei se ia lá ter com ele, mas como ele estava com o Chalo Correia a almoçar, e eu já o conhecia, já tinha uma boa desculpa [risos]. Conheci o Paulino, começamos a falar e trocámos números. Entretanto mandei-lhe o “Catá Bórre” e ele adorou… 

Foi uma aprovação para o projeto [risos]

[Henrique Silva] Sim! Lembro-me quando ele manda um texto enorme a falar da música, de tudo o que sentiu… Ele ficou curioso, queria conhecer o nosso processo e um dia liguei-lhe. Estávamos lá na Damaia a trabalhar este tema e ele foi lá ter connosco. Fizemos uma jantarada, falámos muito e de repente fomos gravar. Eu estava a trabalhar, e de repente o Paulinho sentou-se no teclado, sem nós lhe pedirmos nada, foi super espontâneo: “Posso só experimentar uma coisa aqui?”. Começou a fazer um solo enorme e incrível. E eu pensei: “E agora como é que vamos enquadrar um solo aqui?” [Risos] Foi um desafio muito interessante.



Falem-me agora do “Afronta”. É o tema em que decidiram também meter o hip hop ao barulho.

[Henrique Silva] Foi muito interessante. Já tínhamos a parte da Débora Paris, tínhamos a música toda, mas tínhamos um gap… Sempre imaginámos que gostávamos de alguém a fazer um rap a falar da ideia de afronta. Não encontrámos ninguém assim óbvio, até um dia nos termos cruzado com um amigo nosso que disse que tinha um amigo, o Mindz, que era um grande rapper. A gente encontrou-se, mostramos-lhe a música e o gajo começou logo a improvisar: “Mano, é isso!” Era exatamente aquilo que tínhamos em mente. É uma música que é um pouco uma homenagem aos anos 90, a um ambiente eletrónico, e com uma vibe do disco muito inspirada nas músicas de discoteca de Cabo Verde na década de 90, que nós também curtíamos muito. 

E por último, o fecho do disco: “Amor Astral”.  Porque decidiram acabar com um instrumental? 

[Henrique Silva] É uma música interessante porque, ao inverso do “Grandeza”, essa nasceu com letra e depois decidimos fazer apenas o instrumental. É uma homenagem à nossa origem, à forma como nos conhecemos, só com a cena da guitarra e do cavaquinho. Nós somos isso. E é um pouco uma homenagem a discos que a gente sempre ouviu, mas com uma outra roupagem.  

As músicas do álbum são muito diferentes e remetem para diferentes sonoridades, pessoas e histórias. Como é que, no final do processo, deram uma coerência narrativa ao álbum? 

[Henrique Silva] Tivemos ali uns dias a ver como é se conta esta história. Inicialmente pensámos em reproduzir a forma como tocamos ao vivo, mas em disco é completamente diferente. 

[Luís Firmino] Mas também foi muito instintivo. Fomos apanhando as dinâmicas das sonoridades e tentámos também não ter os mesmos cantores seguidos. Mas a ideia foi brincar com a dinâmica, como um jogo. 

O álbum tem muitas referências à materialidade, à terra, às raízes, mas também um lado muito espiritual, emocional e cósmico. Como é que se voa para o cosmos com os pés assentes na terra?

[Luís Firmino] É com a poesia, com seguires a própria música. 

[Henrique Silva] É deixarmo-nos levar também pelos momentos que passamos, pelas pessoas, pelos sentimentos. 

[Luís Firmino] As coisas tocam-nos de tal forma que a gente se transforma, não é? A gente sente muito os momentos, aquilo que vivemos, e acho que é isso que dá origem às músicas. 

E por falar em terra e cosmos, temos de falar da capa incrível do Nuno Boaventura Miranda. Tem movimento, tem a terra, o mar, o cosmos… 

[Luís Firmino] O Nuno é igual a nós. As cenas que ele curte, ele mete mesmo muita emoção. Ele é mesmo Acácia Maior! 

[Henrique Silva] Ele é, ele é! [Risos] Ele traz a cena visual. Sentimos que faltava alguém que entendesse a nossa música, os nossos pensamentos e os transforasse numa cena visual. E o Nuno é um super realizador! 

Ele ouviu o disco antes de fazer a capa? 

[Henrique Silva] Mais uma vez, tem tudo muito a ver com a nossa vida. Conhecemos o Nuno há pouco tempo e de repente propusemos-lhe gravar videoclipe do “Speransa. De repente, eu tive de mudar de casa e fui viver com ele. Os últimos toques que estive a dar nas misturas foi com ele sempre ao lado e ia-lhe explicando as músicas. A cena da capa foi através de uma foto dele. É uma foto desse miúdo que vai dar um mergulho no mar, numa praia do Mindelo. Nós sempre pensámos numa capa que tivesse movimento, alguma coisa a acontecer e que ligasse muito a terra e o cosmos, a música da terra e das viagens para onde a gente vai. Vimos essa foto, ele fez as experiências dele e de repente chegou àquilo. E nós: “É isso mesmo!” O trabalho dele é incrível. 

Há palavras importante no disco como “grandeza”, “esperança”, “sorriso”, “voo”. O álbum reflete um momento esperançoso na vossa vida? 

[Henrique Silva] Sem dúvida. Eu cresci muito desde que lançámos Acácia Maior. A Acácia abriu-nos muitos mundos, muitas realidades, contacto com outros artistas. Este projeto abriu-nos muitos universos, sentimos muito essa esperança. Até muitas sonoridades que estão no álbum no início de Acácia nunca imaginei que iria dar isto. Nunca imaginei acabar tocar com o Scúru Fitchádu, com o Prétu, com tantas pessoas que hoje nos atravessam a vida. 

Muitos projetos artísticos atualmente são super pensados, trabalhados e gizados para garantirem sucesso comercial imediato. Tudo é racionalizado, da gestão das redes às parcerias, dos convidados à comunicação. O vosso processo é muito diferente, nasceu muito espontaneamente nos encontros destes três anos. Pegando até na “Catá Bórre”, este projeto é também um statment sobre o papel da cultura nas nossas sociedades? 

[Henrique Silva] Hoje em dia eu vivo daquilo que gosto, da música. Claro que isso é um objetivo, podermos viver da nossa arte, do nosso terreno. Mas o que nós queremos realmente é viver as coisas que estamos a fazer, viver delas tem de ser a consequência. Antes de tudo, é viver o que estamos a criar, aproveitar o caminho. Por isso é que deixámos a coisa ir acontecendo naturalmente. Não nos preocupamos muito com estratégias sobre com quem é que “devemos” fazer parcerias, como é que chegamos àquela rádio… Nós estamos a viver o processo. 

Em termos de edição e distribuição do disco, vão editar com a Tabanka Records. 

[Henrique Silva] Sim. O Rivier é nosso grande amigo, quase nosso guru, irmão mais velho que nos tem mostrado muita música, muitas formas de pensar e de estar na vida. Quando surgiu Acácia Maior era óbvio que era um projeto Tanbanka. Queremos fazer a cena o mais independente possível, queremos ser donos dos nossos masters. Sabemos que é um caminho e vai demorar mais tempo a chegar a uma grande quantidade de pessoas, mas as coisas têm o seu tempo. O importante é a música chegar às pessoas a que tem de chegar, no tempo que tiver de chegar. Este álbum é uma prova do que a gente consegue fazer com aquilo que que temos. 

Vai haver edição física?

[Henrique Silva] Vamos fazer agora CDs e depois vamos fazer vinis também. 

Voltando ao início da entrevista, falam muito da importância das vossas referências e dos vossos heróis. Já vos ouvi mencionar o nome do Paulino Vieira, Vasco Martins, Jon Luz, Cachupa Psicadélica, Danilo Lopes, Tubarões, Bilan… Que outros artistas vos inspiraram particularmente no caminho deste disco? 

[Luís Firmino] Da música de Cabo Verde, tudo o que é música tradicional para mim é sempre uma inspiração. Estávamos a falar disso hoje, muitos nomes podem não ser tão conhecidos, mas pelo que fizeram pela cultura de Cabo Verde devem ser lembrados sempre. O Luís Morais, toda a Voz de Cabo Verde, o Bau, o Armando Tito, o Travadinha e tantos outros músicos que não gravaram nada, anónimos, que a gente conhece e que nos ensinaram muito.

[Henrique Silva] Senhor Pomba! Ele era amigo do meu pai, grande amigo também da família do Firmino, e para mim foi uma referência incrível. Ele ia muito lá casa, era um grande guitarrista, trompetista, tocava tudo e sempre foi uma grande inspiração. Gravou com o grupo Kóla. É um senhor que me inspirou muito. Ele faleceu no ano passado. 

[Luís Firmino] Eu aprendi solfejo com ele, na casa dele. Aprendi muito com ele, foi um professor para mim.

Para acabar, não resisto a perguntar-vos sobre as declarações do Paulo Vieira sobre a gestão da carreira da Cesária Évora. Não são declarações novas, mas reacenderam o debate. Partilham da ideia de que o foco de luz que a indústria colocou sobre a figura da Cesária Évora terá contribuído para manter na sombra muitas obras, projetos e artistas da história musical de Cabo Verde? Sendo advogado do diabo, será que, ao mesmo tempo, a afirmação internacional da carreira dela não terá também aberto muitas portas a novos artistas cabo-verdianos pelo mundo? 

[Henrique Silva] Ainda hoje falámos disso. Isso que aconteceu com a Cesária, aconteceu um pouco por todo o mundo. É o music business a encontrar a forma de fazer dinheiro mais fácil usando uma pessoa. É muito mais fácil vender um selo, um “produto” que é uma pessoa, que representa ali uma coisa e que é super bem feita. Nos anos 90, quando criaram esse rótulo da “world music”, precisavam de criar essas divas. Muita gente viu as declarações do Paulino Vieira como uma espécie de “guerra do Paulino com a Cesária”. Não tem nada a ver. Ele está a falar da indústria, do business, não tem a ver com ela. A nós cabe-nos falar desses outros nomes que também nos inspiram e que são muito importantes na cultura de Cabo Verde. E com os nossos atos, como artistas, tentar criar esta ideia de coletivo. Hoje em dia está tudo individualizado, é “aquela pessoa”, “aquela estrela”, está tudo focado aí. Nós estamos a tentar remar um pouco contra isso. 

[Luís Firmino] Estamos a tentar tirar as lições dessa história. Estive a ver essa entrevista mais antiga do Paulino Vieira e entendi mais sobre qual é reivindicação dele, o projeto que ele tinha para levar para cima a música de Cabo Verde como um todo. Vejo genuinamente o sonho que ele tinha, mas que não foi possível, porque o mundo é outro. Então o que é que a gente tira disso? Tiramos a lição e tentamos fazer a nossa parte que é lembrar a Dona Tutuka, o Travadinha, o Luís Morais, o Ildo Lobo, todos eles. E termos este coletivo que realmente faz isso, que tenta empurrar toda a gente. 

[Henrique Silva] O importante são mesmo os nossos atos.


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