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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 18/10/2022

Em defesa da riqueza e do intercâmbio cultural.

Tito Paris: “Os cabo-verdianos falam crioulo em qualquer parte do mundo e nasce daí uma ligação forte com a música”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 18/10/2022

Tito Paris ouviu a sua primeira morna aos seis anos de idade, tocada pela irmã, e foi amor à primeira escuta. Nascido numa família de músicos, chegou a Lisboa a 12 de julho de 1982, para se juntar ao histórico grupo Voz de Cabo Verde, mas foi em nome próprio, sempre rodeado de amigos, que acabou por construir a sua caminhada. Com 40 anos de carreira, é hoje um dos mais relevantes embaixadores da música de Cabo Verde no mundo e uma figura de referência na afirmação do crioulo na música e sociedade portuguesas. 

A poucos dias de tocar no Womex, onde promete um concerto com muitas surpresas, o músico falou-nos sobre as suas raízes, história e futuro. Apesar de ser um preservador da memória, não está preocupado com a evolução musical, desde que seja feita com raízes sólidas. Olha para o futuro com otimismo, mesmo que não se coíba de afirmar que o património musical de Cabo Verde devia ser melhor tratado pelos poderes públicos e que a circulação de músicos entre os PALOP não devia ser bloqueada por uma política de vistos que é contrária à valorização da cultura entre povos irmãos. “Críticas construtivas”, garante o músico, que é também Embaixador da Cultura de Cabo Verde no Mundo e Comendador da Ordem de Mérito, em Portugal. 

Quanto ao sucessor de Mi Ê Bo, ainda vamos ter de esperar algum tempo, mas promete dois novos temas para breve. Promessa selada! Cheio de história passadas e planos para o futuro, eis Tito Paris em discurso direto, a partir do Mindelo, na ilha de São Vicente, cidade onde nasceu, e onde atendeu o Rimas e Batidas. 



Antes de mais, como é que devo tratá-lo? Por senhor Comendador ou por senhor Embaixador? 

[risos] Não, não! Deixa lá o Comendador… Eu sou o Tito Paris! [risos]

Este ano assinalam-se 35 anos da edição do seu primeiro álbum, o Fidjo Maguado, mas já é músico profissional há 40 anos, certo? 

Exatamente. Vou fazer 40 anos de carreira e de músicas. 

Olhando para estes 40 anos, queria que começássemos lá atrás. Quais são as suas primeiras memórias musicais? Lembra-se do momento em que ouviu uma morna pela primeira vez?

Em Cabo Verde, em Cabo Verde… A primeira morna que eu ouvi foi tocada pela minha irmã.

Que idade tinha? 

Seis ou sete anos. 

E foi amor à primeira vista? 

Sim, sim, sim… E os primeiros acordes na guitarra que aprendi também foi ela que me ensinou. 

Começou a tocar os primeiros acordes na guitarra nessa altura, mas quando veio para Lisboa, em 1982, começou por tocar bateria no grupo Voz de Cabo Verde.

Sim, e nem sabia que ia tocar bateria. Tive de aprender [risos]. Depois passei a baixista e só depois, mais tarde, é que passei a tocar guitarra. 

Por convite do Dany Silva? 

Com o Dany Silva, exatamente. 

O Dany Silva desafiou-o para a guitarra, o Paulino Vieira para cantar e foi o Luís Morais que o trouxe para Lisboa. Que importância têm essas três pessoas na sua vida? Acha que sem elas teria sido cantor profissional? 

O Luís Morais tem muita importância na minha vida. Eu considero-o o meu pai musical. E também o Dany Silva e o Paulino Vieira são muito importantes. O Paulino pôs-me a cantar, descobriu-me. O Dany pôs-me a tocar guitarra e também me mostrou grandes palcos. Tenho muito respeito pelos três. Se não fossem eles, eu não teria chegado onde cheguei. 

Acha que a morna tem sido bem tratada pelos responsáveis pelas políticas culturais e pelas instituições? E considera que há um reconhecimento do património musical das diferentes ilhas de Cabo Verde?

A morna é reconhecida como Património Imaterial da Unesco, mas podia ser mais bem tratada em Cabo Verde. Infelizmente, devo dizer que a morna não está a ser tratada como deveria ser. Devia-se falar de morna nas escolas, implementar educação musical nas escolas com histórias e músicas de Cabo Verde, com autores cabo-verdianos. É uma crítica construtiva. Acho que os professores e os pais têm uma responsabilidade sobre isso. Há jovens que não gostam de falar de morna, parece que é falar do diabo [risos].

Mas porque é que acha que isso é assim? A morna está ligada à história e à identidade do país. 

Sim. Está ligada à história do país, mas os culpados não são os jovens. Os culpados são os responsáveis pela cultura. Quando se fala de cultura fala-se também das câmaras que têm um responsável pela cultura, um vereador da cultura. Estes vereadores da área da cultura deveriam preocupar-se mais com a morna. Tu olhas os festivais de Cabo Verde e praticamente não vês uma morna, o que é uma vergonha. Faz-me lembrar quando cheguei a Portugal o que acontecia com fado. Hoje Portugal fez um grande trabalho e quem canta fado são os jovens, o que é muito bonito. O fado está no mundo inteiro porque fizeram um trabalho fantástico. 

Em relação ao restante património musical de Cabo Verde, que é muito rico, acha que tem sido bem cuidado? 

Nós precisamos de fazer uma boa campanha em torno das músicas que fizeram Cabo Verde ser conhecido, nomeadamente a morna, a koladera, o funaná e talaia baxu. Tem de se falar desses ritmos nas escolas e em casa. Eu não sou contra a evolução da música pelos jovens, com os instrumentos eletrónicos. A música pode e deve evoluir, mas com as raízes cabo-verdianas impecáveis. 

Há muitos músicos filhos de pais cabo-verdianos, que já nasceram em Portugal, mas que têm vindo a construir a sua identidade procurando as histórias, os sons e os símbolos que os ligam a essas suas raízes. Estou a pensar, por exemplo, em pessoas de diferentes gerações como o Dino D’Santiago ou a Nenny. Porque é que é tão forte a ligação da diáspora a Cabo Verde? O que há de tão especial nessas ilhas?

O cabo-verdiano pode nascer na China ou em Singapura, pode nascer e ficar lá até adulto, mas fala crioulo. É daí que vem a ligação. Os cabo-verdianos falam crioulo em qualquer parte do mundo e nasce daí uma ligação forte com a música, com as mornas, etc. É uma ligação forte porque os pais falam crioulo em casa. Dificilmente vê um cabo-verdiano que não sabe falar crioulo [risos]. Fala crioulo e faz a cachupa! Sabe da gastronomia cabo-verdiana, sabe da música de Cabo Verde. Há cantores que nascem na diáspora, mas por causa do crioulo ouvem o Tito Paris, o Ildo Lobo, o Bana, a Cesária. 

Na verdade, temos hoje em Portugal muitos jovens músicos que cantam em crioulo e que estão a tocar em grandes festivais, nas maiores salas do país e são ouvidos por milhões de pessoas. Acha que o facto de desde os anos 80 sempre ter cantado em crioulo ajudou a criar as condições para que o crioulo seja hoje tão expressivo e relevante na música que se faz em Portugal?

Por acaso é verdade. Sempre cantei em crioulo. Praticamente só canto em português quando faço parcerias. Sempre valorizei a minha língua-mãe, o crioulo, no meu caso o crioulo de barlavento. Sempre cantei em crioulo mesmo com essa intenção. Há muitos meus amigos portugueses que entendem crioulo, falam crioulo, porque me ouviam cantar e falar. Há pessoas que cantam as minhas músicas e fico feliz porque cantam quase sem sotaque nenhum [risos]. 

Que nomes destaca da nova geração de músicos cabo-verdianos e portugueses de origem cabo-verdiana?

Gosto muito e de muitos! Gosto da Elida Almeida, da Sandra Horta, do Dino D’Santiago. Gosto muito do Tcheka, que tem um trabalho fantástico! E de muitos outros. As novas gerações estão a representar Cabo Verde muito bem. 



Outra componente do seu trabalho como músico foi na área do cinema. Gravou a banda sonora de O Testamento do Senhor Napumoceno, de Francisco Manso, a partir da obra do Germano de Almeida. Como foi essa experiência? Gostava de trabalhar mais com cinema ou com outras artes? 

Claro que sim. Antes de vir para Portugal fiz teatro várias vezes. Eu gosto muito de teatro, de cinema… Essa foi uma experiência muito agradável. Inicialmente eu não quis fazer, comecei com medo, o Sérgio Godinho é que me encorajou.

O Sérgio Godinho? 

Sim. Ele disse: “Vais fazer essa merda!” E eu disse: “Vou!” [risos]

Não se pode dizer que não ao Sérgio Godinho [risos]

Não, nunca! [risos] É um mestre, um grande amigo meu e um mestre. A partir daí é que consegui fazer a banda sonora do filme. 

E como é que conheceu tantos músicos portugueses? Trabalhou com o Vitorino, Sérgio Godinho, Rui Veloso, Agir, Mariza, Boss AC, Paulo de Carvalho e muitos outros. Como é que se conheceram? 

Eu conheci-os através do Dany Silva e do Paulo Pulido Valente. O Paulo Carvalho, o Sérgio Godinho ou o Vitorino conheço há trinta e tal anos. São pessoas amigas. Aprendi muito com eles todos. São pessoas que me abraçaram, passaram-me a sua experiência e estou a servir-me dela com muito orgulho. 

Chegou a Lisboa no início dos anos 80, ainda não tinha passado uma década da independência de Cabo Verde. Como era a Lisboa para um jovem cabo-verdiano de 19 anos? 

Eu quando cheguei a Lisboa, Cabo Verde tinha cinco ou seis anos de independência. Encontrei uma cidade maior, com pessoas diferentes. Quis voltar para Cabo Verde seis meses depois, o Paulino [Vieira] é que não me deixou voltar e ainda bem [risos]. De há 40 anos para cá vi Portugal e Lisboa a dar um salto fantástico em termos de desenvolvimento. A Lisboa dos anos 80 não é a de hoje, mas eu encontrei uma Lisboa bonita para a época. 

E sente que os músicos cabo-verdianos têm hoje mais espaços para tocar e mais público do que tinham nos anos 80, 90 ou 2000? Hoje temos mais músicos, mas nessa altura tínhamos espaços como a Lontra, o Noites Longas ou o Monte Cara, que já não existem. No caso da música ao vivo, temos ainda o B.Leza, mas pouco mais. Como é que olha para essas mudanças? 

Pois, o B.Leza e o Djairsound que também tem música ao vivo, com muitos músicos cabo-verdianos. As pessoas de hoje são mais agarradas à televisão, a novelas, filmes, séries e saem menos. Antigamente como havia muito pouca televisão, quando a televisão fechava à meia-noite toda a gente saía, havia mais comunicação. As pessoas iam para o Lontra, para o Monte Cara, para o Noites Longas. Queriam estar juntas, falar e ouvir música ao vivo. Hoje já não acontece muito disso. Hoje dificilmente vais a um bar ouvir um cantor com uma guitarra ou um trio a tocar. As pessoas também querem outras músicas [risos].

De que forma é que a música que atravessa países e gerações pode contribuir para fortalecer as relações entre Portugal, Cabo Verde e os PALOP? 

A troca de experiência é muito importante. A cultura tem de ser bem tratada dentro dos PALOP. É por isso que nunca gostei de vistos para os artistas irem fazer concertos e viajar nos PALOP. O visto trava a cultura. Não devia ser preciso vistos para viajarmos entre Portugal, Cabo Verde, Angola, e outros sítios. Há muitos músicos que sofrem com isso. As pessoas da embaixada não têm culpa, porque são leis dos Estados. A cultura de um povo só traz riqueza para o povo irmão. 

No próximo dia 21 de outubro vai tocar no Womex. Considerando os seus 40 anos de carreira, o que é que tem preparado para nós? 

Vai ser um concerto com uma sonoridade diferente, o que não é muito habitual. Mas vai ser uma surpresa. Estou a preparar músicas com nova sonoridade e nova roupagem. Acho que as pessoas vão gostar desse concerto e da formação que escolhi para levar. 

Estou muito curioso… Não pode antecipar nada? 

Acho que não, acho que não. Vai ser uma surpresa [risos]. 

É um dos artistas em Portugal com um percurso internacional mais consolidado. Sente que a música portuguesa e dos PALOP tem tido um reconhecimento crescente nos circuitos internacionais? 

Eu acho que sim porque os músicos portugueses e dos PALOP estão a trabalhar para internacionalizar a sua música. A lusofonia tem muito para dar ao mundo, muito! Temos grandes cantores, como o Paulo Flores, e muitos outros. Eu ainda agora fiz uma tournée pela Polónia e pela Roménia. Isso é importante porque traz curiosidade pelos povos, traz gente para conhecer os países e faz os empresários conhecerem outros artistas. 

E em relação ao seu público, sente que tem havido uma renovação das gerações a ouvir a sua música? 

Devo dizer que na Europa de leste e central eu tenho público de todas as idades, que vai desde crianças de 10 a pessoas de 80 anos. Isso faz bem, fico muito contente por isso. Em Portugal também. Eu recebo muitas mensagens pelo Facebook de jovens que gostam da minha música. Fico muito contente e orgulhoso de ter jovens que gostam de me ouvir e que gostam do meu trabalho. 

E agora uma pergunta muito importante. Quando é que vamos poder escutar o sucessor do Mi Ê Bô

Já estou a trabalhar, já estou a trabalhar [risos]. Depois dos concertos vou entrar no estúdio para gravar dois temas. 

Não há previsão para o lançamento?

Talvez este ano se possam ouvir essas duas músicas nas plataformas, mas para o álbum ainda não. 

Já colaborou com muita gente. Ainda falta alguém?

Em Portugal gostava de fazer parceria com mais pessoas, sim, mas internacionalmente eu estou atrás… Também é um segredo profissional [risos]. Estou atrás de um grande cantor internacional para gravar um tema. Se acontecer, vou ficar feliz para o resto da vida. 


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