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Texto: ReB Team
Fotografia: David Muessig
Publicado a: 13/08/2021

De McKinley Dixon a Shanique Marie.

A primeira metade de 2021 em discos escolhidos pela equipa ReB

Texto: ReB Team
Fotografia: David Muessig
Publicado a: 13/08/2021

Só existia uma única condição para se entrar nesta selecção: o projecto (EP, mixtape ou álbum) ter sido lançado entre o dia 1 de Janeiro de 2021 e o dia 30 de Junho de 2021. A partir daí, não havia regras: do mais popular ao menos conhecido, do jazz à electrónica mais experimental, da palavra ao instrumental, não havia caixas que pudessem impedir uma obra de figurar nesta lista.

10 membros da redacção do Rimas e Batidas escolheram cinco trabalhos cada um, com o conforto de dois meses para amadurecer as suas selecções. O resultado? 50 respostas, com direito a alguns discos repetidos, para descobrir de seguida:



PAULO PENA

[Lord Apex] Smoke Sessions 3

Quem disse que as sessões de fumo são contraproducentes para a produtividade? Lord Apex tem vindo a provar exactamente o contrário através das suas Smoke Sessions — 2021 trouxe o terceiro volume desta saga desenvolvida pelo rapper de West London, ele que se destaca pela consistência qualitativa e quantitativa na hora de lançar projectos.

O Lord deu os primeiros passos no rap longe das terras de Sua Majestade e depressa reuniu um nicho de fãs deslumbrados com o seu toque britânico sobre o registo nova-iorquino. Só mais tarde chegou definitivamente aos seus conterrâneos, mas o seu estilo nunca se fixou, exclusivamente, em nenhum dos dois continentes. Cativou o interesse de respeitados nomes da cena norte-americana, e neste volume contou com a participação de Smoke DZA ou de Wiki para nos trazer a sua melhor forma, vincando o seu registo híbrido e distinto. Escolheu os melhores instrumentais, desprendeu-se nos refrões e, sem grande esforço aparente, lançou um dos seus melhores trabalhos até à data. Com ou sem fumarada, não há como não sentir a cabeça a gravitar ao ouvir este SSV3

[DJ Muggs & Rome Streetz] Death & The Magician

Quando se fala em rap de Nova Iorque, o nome de Rome Streetz não pode, actualmente, ficar de fora. Quando se fala de hip hop, o nome de DJ Muggs não pode, nunca, ficar de fora. Juntem-se estas duas equações num sistema e o resultado é Death & The Magician, com os papéis respectivamente atribuídos: Rome fatalmente infalível nas rimas e Muggs a cozinhar magia negra no caldeirão de batidas dos Soul Assassins. Nem a própria figura encapuzada da morte resistia aos encantos deste rap feito pelos vivos — este é um daqueles discos imortais.

[Kenny Mason] Angelic Hoodrat: Supercut

Kenny Mason é um dos nomes mais promissores a subir a pulso na concorrida cidade de Atlanta. Depois de Angelic Hoodrat — o seu álbum de estreia oficial, de 2020 — ter apresentado Kenny como uma figura refrescante no berço do trap, este novo disco veio a confirmar e acentuar essa identidade diferenciadora, entre o trap mais absorto e o rock alternativo do início deste milénio, no mesmo sentido dos vários singles que tem vindo a lançar nos últimos tempos.

Se no primeiro projecto Mason se apresentou totalmente sozinho, com uma quota significativa também na produção, neste LP viu figuras como Denzel Curry ou Freddie Gibbs a aproximarem-se e a aventurarem-se no seu universo tão obscuro quanto brilhante. E a sua recente participação na terceira temporada de The Cave (e a consequente reacção de Kenny Beats à mesma) é a amostra perfeita do enorme talento deste artista que tem tanto para dar por caminhos que nem sabíamos que se podiam cruzar.

[Lo Village] Lost In America

“I’m so sick
They just shot my baby
Right in front of me”

Primeiros murros no estômago dados. E estas são apenas as primeiras três frases de “Sick”, a faixa que abre o EP Lost In America dos Lo Village, um grupo de Maryland cujas influências musicais vão de encontro ao que se espera ouvir na comunidade afro-americana entre as gerações antecessoras. Mas a música deste pequeno colectivo não se fica pelo binómio rap e r&b — o trio bebe de sonoridades tão diversas que isso reflecte-se, naturalmente, na identidade familiar mas a nada parecida que os caracteriza.

Lost In America, o quarto projecto dos Lo Village, surge na ressaca prolongada do reacender de uma revolta — no seguimento da morte de George Floyd — sobre uma causa que nos EUA nunca chegou a ver-se, verdadeiramente, cumprida. Apesar do encanto deste projecto, a gritante mensagem de Ama, Kane e Charles consegue, ainda assim, falar mais alto. É um disco que tem a capacidade de nos alienar de tudo o que nele se versa e, simultaneamente, de fazer-nos ver uma realidade de forma tão nítida como poucos o conseguem, tudo isto em apenas cinco faixas num total de 15 minutos. Fascinante a todos os níveis. Paragem obrigatória seja em que ano for.

[Wugori & gonsalocomc] MAL PASSADO BEM PENSADO 

Ao contrário do que se tem visto na cena alternativa do rap norte-americano marcada pela estética dita “lo-fi”, apoiada em loops desprendidos com os drums em segundo ou terceiro plano, frutos de mais escavação e menos “partir pedra”, e acompanhada por versos depressivos, monocórdicos, contemplativos, essa corrente pouca expressão tem tido por cá até então; e a que teve estava bem escondida pelos territórios de livre circulação do SoundCloud.

Mal Passado Bem Pensado tem sido uma das mais agradáveis surpresas nesta primeira metade de 2021; uma brisa (descontaminada) a correr no rap português através das rimas de Wugori e das batidas de gonsalocomc. Enquanto o rapper (e também produtor) de Lisboa se emancipou no seu rap, o produtor (e também rapper) de Braga demonstrou uma maturidade na produção que não corresponde à menoridade que por enquanto consta no seu documento de identificação — “puto ‘tá com 16 [agora 17!] mas já ninguém lhe tira o dom”. 

Aquilo que ouvimos neste EP não fica a dever muito a algo cantado por Earl Sweatshirt num instrumental de The Alchemist, com a vantagem de que aqui a rima é escrita em bom português com as voltas alucinantes que Wugori dá nos versos. Os miúdos já fizeram escola e ainda agora se inscreveram nela.



JOÃO MINEIRO

[Criatura] Bem Bonda

Bem Bonda, expressão que dá título ao segundo álbum de originais da Criatura, resume bem a identidade, o posicionamento e o compromisso deste magnífico colectivo artístico. 

Este bando de artistas, como gostam de se auto-definir, revela-se esteticamente a partir da construção de um constante e profícuo diálogo entre a tradição e a modernidade, a oralidade e a palavra escrita, as sonoridades populares e o ecletismo musical, o passado e o futuro. Não há dicotomias insuperáveis ou intransponíveis, mas antes diálogos, conexões e “conflitos” de onde emerge uma música realmente única, poderosa e distinta. Neste álbum presenciamos essa sua vontade impulsiva, incessante e delicada de procurar as raízes profundas dos sons, das imagens, das histórias e das palavras, ao mesmo tempo que lhes conferem novos significados e olhares possíveis, trazendo-os à presença e inscrevendo-os no presente. Uma música que é fruto do apuro técnico, da sensibilidade poética, da pertinência das estórias que narram e que faz da Criatura um dos mais relevantes coletivos artísticos da música portuguesa contemporânea e de Bem Bonda um dos grandes acontecimentos musicais de 2021. 

[Luca Argel] Samba de Guerrilha

Num tempo em que tantas vezes a esperança sucumbe ao pessimismo, em que o ódio bloqueia a solidariedade, em que os muros erguem novas fronteiras, ouvir a música de Luca Argel é uma experiência libertadora e esperançosa. Samba de Guerrilha é um álbum de linguagem universal e comum, transportando a memória do Brasil que é também nossa, que sabemos que nem os oceanos, nem as fronteiras, dividem lutas e patrimónios comuns. O samba de Luca Argel não tem fronteiras, nem geográficas, nem estéticas. É homenagem e reinvenção, tradição e rearranjo. Em Samba de Guerrilha oferece-nos uma música que se faz manifesto e compromisso, nunca perdendo a poesia, a sensibilidade e a comoção que são tão característicos deste poeta e músico que, para nosso privilégio, fez também de Portugal a sua casa. 

[SAULT] Nine

Nine é mais um capítulo daquela que é uma das mais estimulantes histórias da música contemporânea à escala global. Este quinto álbum em dois anos não é exceção no percurso e no posicionamento do grupo. Constitui-se como uma camada adicional que é acrescentada ao universo sonoro que estão empenhados em edificar. A narrativa que atravessa o álbum continua a centrar-se nas desigualdades, no racismo estrutural, na injustiça, na luta e na esperança. Contudo, aqui, os SAULT escavam um pouco mais a sua identidade, revelando que a sua vocação global é, também ela, profundamente ancorada nas raízes dos locais onde cresceram. Em Nine são os mesmos SAULT que conhecíamos dos trabalhos anteriores, mas a falar-nos um pouco mais de si e dos seus, a partilhar um pouco mais a sua casa e a sua história. Mais uma vez, são políticos sem serem dogmáticos, são poéticos sem perder a materialidade, são de denúncia e de esperança. A música permanece fiel à sua identidade: uma bateria cuja centralidade conduz os restantes elementos sonoros; riffs de baixo pujantes e distorcidos; a emoção vocal e os efeitos sonoros sobrepostos; o ecletismo e a versatilidade das transições e variações naturais entre géneros e estilos; a consciência do caldeirão de influências que misturam e às quais acrescentam atualidade. É música de força, denúncia e, como se perceberá, também de esperança e utopia. Uma música que é verdadeira operária do milagre e da mudança.

[Plutónio] Ao Vivo no Coliseu

Ao Vivo no Coliseu, de Plutónio, é um daqueles álbuns que prodigiosamente nos provam que o minucioso trabalho de produção musical em estúdio não está condenado à impossibilidade da sua reprodução ao vivo e com banda com o mesmo impacto e potência. Reprodução rearranjada, claro, mas sem perder a força dos instrumentais de partida, a riqueza dos múltiplos elementos sonoros que fazem brilhar o rapper. Num tempo em que vão escasseando os álbuns gravados ao vivo, por contraposição aos concertos gravados em vídeo, Plutónio propõe-nos que escutemos o som registado na mítica noite em que ocupou o Coliseu de Lisboa. E nunca precisamos de imagens para se captar a magia que ali aconteceu. É um grande feito. Por um lado, este é um disco de celebração onde Plutónio conquista uma sala onde nunca havia sonhado tocar em nome próprio. É um momento cimeiro de uma carreira persistente que do Bairro da Cruz Vermelha conquistou o país e inspirou milhares de pessoas na música e para lá dela. Por outro lado, este álbum é uma demonstração ostensiva de que com rigor, meios e bons músicos é possível traduzir ao vivo o longo e minucioso trabalho digital, agigantando-o ainda mais. É a prova do quão bem uma banda pode ficar a tocar beats produzidos digitalmente. A prova de que continua errado e insustentável o preconceito de que o rap ao vivo será sempre um estilo menor. Na era da ditadura da imagem e do consumo rápido e instantâneo, este é um álbum que marcará 2021, celebrando um dos mais relevantes artistas da nossa música, numa das noites mais importantes e mais felizes da sua carreira. 

[Adrian Younge] The American Negro

The American Negro é um trabalho notável do não menos extraordinário Adrian Younge. O compositor, produtor e multi-instrumentista mobiliza os seus múltiplos e amplos recursos e valências, colocando-os ao serviço de um álbum de pendor profundamente conceptual e político, centrado nas questões da negritude, do racismo estrutural, das desigualdades e da resistência. Nunca cede à exibição bacoca do virtuosismo que facilmente estaria ao seu alcance, optando antes por colocar o seu apuro técnico ao serviço de algo maior e mais profundo que o álbum procura traduzir e representar. Younge é um dotado arranjador sonoro em diálogo e tensão orquestral e, mais uma vez, incorpora elementos da soul orquestrada e da música afro-americana, combinando paradigmas e linguagens sonoras em busca de um sentido de mudança. Ao longo do álbum, toca mais de 20 instrumentos que juntos constroem e edificam o seu gesto filosófico, artístico e político, com estruturas musicais que servem uma narrativa que conta uma das mais importantes histórias do nosso tempo. É uma proposta de empatia e de luta na forma de um grande álbum. Um dos melhores de 2021. 



[LUÍS CARVALHO]

[Black Country, New Road] For the First Time

Não há dúvidas que o “novo rock” britânico marcou de uma forma entusiasmante a primeira metade de 2021. Entre a múltiplas e interessantes edições, a fusão de pós-rock, klezmer, art-rock, jazz e poesia encontrada no pós-punk dos jovens Black Country, New Road pode muito bem ser apontada como o momento mais empolgante deste fenómeno. Fresco, inventivo, sem medo do risco ou de ultrapassar os cânones, For the First Time é uma intensa e majestosa experiência não só sonora como poética. Há um absurdismo latente nas palavras, uma profunda inquietação, uma muito humana busca pela definição do que somos, do que realmente importa, do que é real. Tudo regado por muita neurose, ironia e profunda necessidade de catarse. Uma verdadeira banda sonora dos nossos tempos. 

[Bruno Pernadas] Private Reasons

O mundo de Bruno Pernadas é tão extenso como único. Entre os continentes do jazz, do progressivo, da pop e do tropicalismo, existe todo um mar sonoro onde Bruno Pernadas navega a diferentes velocidades, diferentes acordes e diferentes escalas, sempre na busca da harmonia perfeita. Na nova viagem, o músico, qual homem dos descobrimentos, encontrou novos territórios, como o r&b, experienciou novas ferramentas como o auto-tune e aventurou-se na descoberta de novas linguagens, seja ele o coreano, o alemão ou até uma língua inventada. O resultado é uma triunfante exploração de ritmos, estéticas e dinâmicas que nos dão possivelmente o seu álbum mais aberto, dançante e alegre que já fez. São precisas razões muito particulares para se ficar indiferente a tamanha beleza e criatividade.

[Luca Argel] Samba de Guerrilha

Há álbuns que são mais que música; Samba de Guerrilha é um caso claro disso. Composto por uma série de interessantes “adulterações” de clássicos (e não-clássicos) sambas políticos, a música que se ouve funciona como uma “desculpa” que o brasileiro, há muito radicado em Portugal, usa para nos convidar a conhecer algo maior. Uma autêntica aula sobre a história do Brasil, em especial sobre a sua cultura, sobre a forma como a escravatura, o racismo e perseguição cultural moldaram a terra de Vera Cruz no seu passado e presente. Porque a cultura negra importa, porque há muito a aprender com ela e com o que aconteceu, porque é preciso não cair nos mesmos erros. Luca Argel, com a ajuda de Telma Tvon — na narração dos interlúdios –, oferecem um álbum tão urgente como essencial actualmente. 

[Moullinex] Requiem for Empathy

Dançar a melancolia. É a esse exercício que se propõe Luís Clara Gomes (aka Moullinex) no seu novo longa-duração. Requiem for Empathy é o resultado de um período difícil na vida do músico e da forma como este encontrou, na música para pista de dança, a rampa para ultrapassar essa fase. Mais negro, mais contemplativo, mais musculado e electrónico que os seus anteriores, as extensas e pujantes paredes sonoras que o produtor cria para contrastar os seus sentimentos fazem deste álbum um produto muito mais pessoal e vulnerável (no bom sentido). Um álbum dedicado à partilha, ao outro e à esperança. No escuro também há luz, e aí também se dança. 

[Topaz Jones] Don’t Go Tellin’ Your Momma

Conceito é uma palavra cada vez mais presente no vocabulário do hip hop. Em 2021 encontramos alguns bons casos disso, com especial destaque para o arrojado Don’t Go Tellin’ Your Momma, o segundo álbum do ainda jovem e muito promissor Topaz Jones. Num projeto que se expande da música para entrar nos territórios do cinema, o “miúdo” aventura-se como se fosse gente grande, produzindo o seu good kid, m.A.A.d city. Carregado de soul e funk dos tempos dourados, este é um trabalho que mostra que a nostalgia é algo que brilha sempre através das palavras carregadas de memórias dos seus bons tempos de “malandro”. Vivem-se os sentimentos, os momentos, e sobretudo criam-se metáforas para explicar algo maior: a ideia do que é ser negro na América. 



FILIPE COSTA

[Smerz] Believer 

A mais recente adição ao espectro da pop-feita-arte chega-nos da Noruega. Chamam-se Smerz, são o duo composto por Henriette Motzfeldt e Catharina Stoltenberg e o seu álbum de estreia, Believer, é uma refinada obra aglutinante que cruza clássico e contemporâneo de forma deslumbrante. É música desafiante, entre o sonho e a vertigem, que vê na intersecção de ideias e estéticas aparentemente distantes uma valiosa ferramenta na construção de ambientes.

[Hildegard] Hildegard 

Numa órbita não muito distante das Smerz está Hildegard, projecto que junta a cantora e compositora Helena Deland à produtora Ourielle Auvé, ou seja, Ouri. Este encontro improvável entre um talento emergente da indie e uma das novas embaixadoras mais aventureiras do club chegou em Junho e é já uma das surpresas de 2021, conjugando candura e complexidade rítmica em oito momentos de refrescante sensibilidade pop.

[Sematary] Rainbow Bridge 3 

A nova mixtape de Sematary é um viagem só de ida ao inferno. O último de três volumes centrados no black metal de recorte atmosférico traz novo músculo a uma produção abrasiva e de contornos bem distintos. Já as letras, continuam a explorar os mesmos temas de sempre: as ideias em torno dos massacres e da necromancia, a dicotomia entre o sagrado e o profano ou os contínuos convites para o Inferno, tudo entra na ementa deste tortuoso festim.

[Império Pacífico] Flagship

Um ano volvido de Exílio, a estreia dos Império Pacífico em longa-duração, a dupla Luan Belussi (trash CAN) e Pedro Tavares (funcionário) continua a sua viagem pelos territórios mais exóticos da música eletrónica com Flagship, um regresso às origens que assinala também o início de uma nova jornada: a passagem do exílio para um novo destino com paragens pelas melhores pistas de Manchester, Chicago e Ibiza.

[A lake by the mõõn] Life in Warp 

“Os pássaros não cantam, eles gritam de dor”, dizia o realizador alemão Werner Herzog sobre a vida animal na floresta da Amazónia. Em Life in Warp, a estreia de A lake by the mõõn em longa-duração, estes mesmos clamores foram submetidos a tratamentos digitais e transformados posteriormente em novos elementos musicais. Isto significa que todos os sons presentes em Life in Warp, desde os kicks aos drums e todo o tipo de ruídos que pensámos estar a escutar são, na verdade, criados a partir de sons de animais. É um exercício admirável de produção que combina paisagens electrónicas distópicas com um minucioso desenho sonoro e que faz deste um dos lançamentos mais urgentes do ano.



VASCO COMPLETO

[Pedro & o Lodo] Pedro & o Lodo

A história do Pedro e o Lobo é um cânone que ouvimos desde miúdos, sempre com o intuito de nos ensinar que mentir é muito feio. O que é que isso tem a ver com Pedro & o Lodo? À partida pouca coisa. O que podemos mesmo retirar? Quando repetimos muito um feito, quem nos conhece vai esperar que a tendência se mantenha. Com Pedro & o Lodo não falamos de mentir, mas sim de composição, produção e arranjos singulares. Enfim… música que não devemos perder. É a notificação de Bandcamp que não queremos esquecer. As construções sónicas harmoniosas não são suficientes para aliviar o desconforto melancólico vespertino que habita toda esta música, a tensão melódica e a escrita que encapsula algum lodo emocional que estes artistas transformam em ondas sonoras. Dado o output, já era o esperado, mas continuamos a ouvir. Parar é que é difícil.

[Crate Diggs] Simplesmente Lindo

Não descurando da sua estética suja, inerente à cultura de sampling que o produtor abraça, há certamente uma abordagem menos lo-fi em Simplesmente Lindo. Crate Diggs tem facilidade em criar atmosferas nas quais o ambiente não é necessariamente soalheiro e confortável. Em vez disso, uma electrónica ténue, mas sem dúvida presente, ajuda a aprofundar as dimensões das “29 Primaveras” que carrega. Hits reverberados, samples atordoados (“Lord Knows” que sois grande, eterno Kanye West, obrigado pelo que nos ensinaste), misturados de forma muito redonda para a criação de seis caminhos díspares num EP com um GPS indefinido, embora coeso, um que merecia mais páginas escritas sobre si. Simplesmente Lindo? Ora nem mais.

[Império Pacífico] Flagship

Que não hajam dúvidas quando falarmos de Flagship: esta é electrónica extremamente bem desenhada, com espaço para emotividade e sensações que diferenciam Império Pacífico do que (muitos) outros pares fazem. Dos beats aos sintetizadores, é música que busca influências ao passado da música electrónica e ao house, como os arpejos mais leves de “Comércio & Indústria” ou “Flagship”, por exemplo, mas que não deixa de carregar experimentalismo sampladélico actual e DIY, com uma mentalidade sem limites quando o tema é som e composição. “Steve @ Bacardi Zone”, “Hyrule” e “Singapura” ombreiam facilmente com alguma da mais interessante música electrónica deste mesmo ano, e isso não nos parece pouco. Pegando na grande malha que é “Spirits Highway”: o espírito de Império Pacífico finalmente apanhou a auto-estrada e os travões não parecem estar a funcionar. Deixem passar, por favor, que vão de bandeira em punho.

[Andrea] Sktch

Há pistas de dança que nunca viram a luz do dia. Há pistas de dança que são eternas, há outras que são fugazes e quase imaginadas. Há pistas de dança que são subterrâneas, há pistas de dança que são de paisagem mais fácil aos olhos. Há, ainda, pistas de dança que nunca viram uma pista de dança, que vivem sem ponto geográfico ou sem coordenada fixa. Sktch é um desses clubs sem lugar que habitam numa dimensão cósmica que não nos é (tão) acessível, num limbo entre batidas e baixos possantes, e texturas etéreas que carregam o fardo do efémero para onde quer que vão, com house e techno muito actuais à mistura. Tudo isto num rascunho demasiado bem feito para ainda ser um Sktch, sem nunca perder o ritmo por baixo dos pés. 

[Croatian Amor & Scandinavian Star] Spring Snow

Se Two Autumns era um conjunto de belos temas mas vivia de dois focos que brilhavam particularmente, Spring Snow perde muito sem o seguimento das cinco faixas que constituem o EP. “Compass”, que tem tanto de Burial como de Moderat, inicia uma viagem emocional que não pisa a fundo o acelerador… e ainda bem. O crescimento dinâmico da emoção de cada tema está construído para que seja difícil largar Spring Snow sem chegar ao fim, e tanto se compõe de ambient mais drone e etéreo, como de canções de melodia sedosa e apaixonante. Há rasgos de batida em “Hero” que soltam os produtores, mas a viagem promete emoção e imersão.



GONÇALO OLIVEIRA

[kezia] claire

O refrão orelhudo e um tímido mas atractivo verso em “south!” davam a conhecer kezia por estas bandas. Se prontamente achámos ter à nossa frente uma nova espécie de Megan Thee Stallion, ainda em construção, o sensual banger não passou de mero engodo. E ainda bem que assim o foi. “megan fox” e “SUNSHINE”, os seus dois anteriores singles que a curiosidade nos levou a querer descobrir, mostravam a artista de São Francisco a envergar por outras camadas sónicas, como o grunge ou a dream pop, e deixavam claro que ela era produto de uma geração quase afogada em referências tão distintas, tal é a oferta cultural e os estímulos que estes jovens têm hoje à sua disposição. No final de Maio, tudo isto acabou por desaguar em claire, o EP de estreia da cantora que, dois anos antes, tinha assistido dois pesos pesados do hip hop da costa oeste norte-americana, Blu e Oh No, em “The Lost Angels Anthem”. Uma verdadeira pérola de 2021.

[Pedro & o Lodo] Pedro & o Lodo

Pedro & o Lodo é um disco de (nova) confirmação. Por um lado, torna-se cada vez mais nítido que os talentos de Pedro, o Mau (também conhecido como VULTO.) são demasiado preciosos para ficar eternamente estacionados no cantinho do hip hop; do outro temos Caronte, muitas vezes (mal) rotulado enquanto rapper, agora a mostrar todo o seu engenho na escrita e interpretação de canções, numa esfera algures entre o popular e o alternativo. Editado sem grandes alaridos, o curta-duração vem recheado de incógnitas. Será devaneio? Um novo “olá”? Despedida? Demos que, à partida, nem estavam nos planos para um lançamento? Muitas perguntas e poucas respostas, que só nos levam a querer dissecar com redobrada atenção os versos tingidos de duras realidades e as nuances de ácido que moram neste Pedro & o Lodo, uma armadilha musical que não oferece escapatória assim que nos deixamos seduzir pelo seu embalo.

[Tohji, Loota & Brodinski] KUUGA

Seja jazz, rock, bossa nova, soul ou funk, os japoneses sempre foram mestres em mimicar na perfeição os fenómenos culturais que importam para o seu mercado musical. Em KUUGA, através de Tohji e Loota, fazem bem mais que isso ao dobrar os limites que achávamos que o trap tinha até então. Faltam-nos definições concretas para descrever este conjunto de oito faixas, que têm o francês Brondinski (colaborador de Gesaffelstein, Kanye West ou 21 Savage) enquanto produtor. Tentem imaginar as sombras que se geram após o caos num universo pós-rave em que se invertem os conceitos da pop. Se soa demasiado matemático, é porque é mesmo.

[L-ALI] Raramente Satisfeito

Se há algo de gratificante num artista é saber que este não se dá por contente em dominar apenas uma fórmula. Mas também é importante saber parar para reflectir e perceber quando é que já se têm em mãos um novo lote de temas prontos para mostrar ao mundo. Estávamos mal habituados com os seus primeiros anos de militância no hip hop, recheados de lançamentos, mas a espera por este Raramente Satisfeito compensou. L-ALI é agora, mais do que nunca, um MC super-consistente e de elevado grau técnico, qualidades que se juntam a um trajecto em crescendo enquanto produtor, faceta que já assume neste EP e que promete vir a gerar novos frutos em breve — Playboi Zuka até já foi buscar algum desse sauce para o seu mais recente “Mutante”.

[Tyler, The Creator] Call Me If You Get Lost

Não é o mais dotado dos MCs e Call Me If You Get Lost acaba por surpreender por isso mesmo. O homem que compõe, produz e arranja discos como poucos o fazem meteu na cabeça que iria voltar a um registo exclusivamente de rap e fê-lo em grande nível. Não inventa, rima aquilo que vive, tem noção do que é dar alma a uma faixa, espreme o melhor dos seus convidados e não nos poupa em detalhes. Para os mais puristas, pode até não ser fácil amar o sucessor de IGOR como um todo, tal como será igualmente difícil rodá-lo de uma ponta à outra sem cair na tentação de anexar temas como “RISE!”, “CORSO” ou “LUMBERJACK” a uma playlist. Nunca foi fácil agradar a gregos e troianos, ainda para mais quando se vem de outro planeta.



ALEXANDRE RIBEIRO

[C. Tangana] El Madrileño

Go big or go home era, certamente, a frase que C. Tangana tinha na cabeça quando estava a fazer El Madrileño. O artista ajudou Rosalía no início da reconfiguração da música pop espanhola (e, por consequência, latina) em El Mal Querer e não descansou até contribuir directamente para isso com uma ambiciosa obra dividida em 14 actos, todos eles com propensão para extravasarem a barreira da língua e se tornarem maiores do que o seu próprio autor. E se achavam que ter Toquinho, Gipsy Kings, Omar Apollo, La Húngara, Ed Maverick e Jorge Drexler na mesma lista de créditos só poderia ser sinal de confusão, bem, talvez esteja na altura de reconsiderarem essa ideia.

[Pedro Mafama] Por Este Rio Abaixo

Por falar em reajustes ao panorama: os músicos portugueses estão longe de conseguir alcançar o impacto internacional que os seus camaradas espanhóis têm por estes dias, mas isso não quer dizer que não valha a pena virar a coisa de pernas para o ar e ver o que de lá sai. Ao lado de Pedro da Linha, Pedro Mafama olhou para Lisboa como matéria-prima de valor incomensurável e meteu mais questões do que deu respostas, fazendo, pelo caminho, um disco que é uma gigante provocação ao lado de outros grandes provocadores como ProfJam ou Tristany. Metam-no no mesmo barco que CAOS’A (Rita Vian) e Terra-Mãe (João Não & Lil Noon) e deixem-nos navegar por esse mundo fora.

[Wugori & gonsalocomc] MAL PASSADO BEM PENSADO

“Quantos contam histórias pa’ não contar de si” é uma das muitas quotables de Wugori em MAL PASSADO BEM PENSADO, o engenhoso projecto cozinhado a quatro mãos com gonsalocomc. Nuno Rodrigues não teve de se preocupar com os instrumentais e em boa hora deixou-os nas mãos do jovem beatmaker bracarense que deve andar a rodar incessantemente aquilo que Griselda, The Alchemist, MIKE e os restantes renascentistas (e afiliados) de Nova Iorque andam a fazer. Desprender-se da tarefa de criar beats permitiu ao rapper ser o mais transparente na hora de atacar o microfone; juntem a honestidade à habilidade para metê-la em verso e adicionem-lhe loops irresistíveis e têm um trabalho de comer e chorar por mais.

[SAULT] Nine

O Nine é, na verdade, o quinto álbum dos SAULT em três anos. Pode parecer um início simples e sem grande significado, mas quantas bandas andam por aí sem marketing para além da sua própria música e com algo para dizer em cada pedaço de som que soltam? Mantras envolvidos em funk, soul, rap e derivados compõem o disco, mas é em “Alcohol” que a alma se sobrepõe ao resto, resumindo o que o grupo (?) é: sentimento e elegância acima de tudo.

[Shanique Marie] Gigi’s House

Se alguma vez entraram na casa dos Equiknoxx, de certeza que por lá se revezaram até não aguentarem mais. Para quem nunca olhou para os créditos, Shanique Marie é uma das vozes do colectivo que vai na frente em termos de pensamento musical na Jamaica. Na sua estreia em nome próprio no formato longa-duração, a talentosa cantora exige um lugar junto a contemporâneas como NAO e Rihanna enquanto olha para lendas como Sade e Erykah Badu e ergue a Gigi’s House, um poiso seguro (com pilares feitos de r&b, dancehall e electrónicas) onde se pode respirar livremente. Sabe muito a Verão, mas é bom para rodar em qualquer estação do ano.



RUI CORREIA

[SPELLING] The Turning Wheel

Soa a milagre em plena pandemia: Chrystia Cabral, ou SPELLING, conseguiu no seu terceiro álbum a contribuição de 31 músicos para executar um registo ambicioso, produzido pela própria, e capaz de expressar a sua autenticidade. Canções pop experimentais, entrelaçadas por elementos soul e jazz, docemente orquestradas, que nos levam para uma montanha-russa de emoções. Entre os inevitáveis altos e baixos da vida, SPELLING faz-se melhor dia após dia, sozinha nas suas fantasias místicas, apelando à união humana no constante mundo cruel. 

[McKinley Dixon] For My Mama And Anyone Who Look Like Her

For My Mama And Anyone Who Look Like Her foi uma daquelas sugestões que surgem do contacto com clientes na loja de discos e que perseverou nestes últimos dois meses. É o primeiro álbum do rapper norte-americano McKinley Dixon lançado pela Spacebomb, e é uma entrada fácil para os melhores álbuns de rap em 2021: dinâmico no sentido To Pimp a Butterfly, seja em termos líricos, de interpretação e com uma instrumentação jazzística, McKinley mostra-se observador da sua comunidade e consciente de si. Um claro processo de auto-reflexão passando pela experiência de ser afro-americano. Histórias de trauma são ultrapassadas e McKinley Dixon “agora está vivo”.

[Lost Girls] Menneskekollektivet

Lost Girls é um duo norueguês formado pela artista e escritora Jenny Hval e o multi-instrumentista Håvard Volden. O álbum resulta da simbiose criativa entre ambos, numa procura de explorar o poder do colectivo humano (significado do título Menneskekollektivet). Sem receios, somos guiados pela vulnerabilidade improvisada, palavras soltas que se vão agarrando a ritmos primitivos. A dupla constrói a possibilidade de um novo mundo através de electrónica experimental que encaixa no club dos pensamentos interiores. Um reflexo de libertação, empatia e compaixão.

[Floating Points, Pharoah Sanders and the London Symphony Orchestra] Promises

A perseverança do produtor Sam Shepherd (Floating Points) tornou possível a junção de forças vivas do jazz, da clássica e da electrónica para elevar a sua composição. Pharoah Sanders é o mentor oculto que estabelece as ligações dos movimentos sonoros. Uma celebração autêntica do poder colaborativo e criativo humano, que deve ser experienciada por inteiro e com total disponibilidade.

[Noga Erez] KIDS

Atenção: se estiverem focados unicamente na qualidade da produção e no facto de ouvirem temas pop de influência (t)rap, poderão falhar em se aperceber do conteúdo politizado e pessoal. KIDS é o segundo álbum da artista israelita Noga Erez feito com o seu duplo-parceiro — criativo e da vida — Ori Rousso. Vivem-se aqui os conflitos israelo-palestiniano, de relações geracionais (pais-filhos) e internos (ambição-humildade) com interpretações arrojadas e beats camaleónicos. O trabalho é exímio na concretização musical, visual e ainda na performance ao vivo. Em 2022 repete-se a presença de Noga Erez no Primavera Sound de Barcelona.



PEDRO JOÃO SANTOS

[Mdou Moctar] Afrique Victime

Não há muitas formas de descrever este blockbuster de guitarra, que converte a aridez desértica do Sara em electricidade carnal, que é um missal para quem ainda não se esqueceu de África, por quem o mundo luta — para que mantenha o seu título de continente mais explorado e injustiçado, é claro. Uma torrente de água, fogo, porra, um dos álbuns do ano. Sugestão: fechar o ecrã do computador, convidar umx amigx para ouvir o disco, destinar o papel de Mdou (na guitarra principal) a umx e o de Ahmoudou Madassane (guitarra rítmica) a quem sobrar.

[Jazmine Sullivan] Heaux Tales

A quebrar um hiato de seis anos, Sullivan propõe um projeto mais fragmentado do que o seu último álbum, o triunfante embora ignorado Reality Show — mas capaz de atingir muitos desses pontos de lucidez. É uma antologia de mulheres, empossadas e sem tempo para pés-rapados, sem paciência — vertidas por uma das melhores vozes contemporâneas, em canções que ribombam e lacrimejam sem pudor.

[Sam Gellaitry] IV

Quanto mais Sam Gellaitry esgravata os seus sentimentos, mais se agiganta a canção. IV, o último EP do escocês, é um triunfo paulatino de textura e ambição, em que as exploratórias “A New Dawn” e “Games” abanam a cabeça para que “Duo” e “Assumptions” completem a maior órbita pop-funk desde Starboy.

[R+R=NOW] R+R=NOW Live

Onde o conjunto de Robert Glasper, Terrace Martin, Christian Scott, Taylor McFerrin, Derrick Hodge e Justin Tyson toma proporções galácticas. Fusões jazzísticas e divagações electrónicas, batida ímpar, vozes filtradas por uma talkbox como se Stevie Wonder fosse passear pelo sistema solar. Se for uma desculpa para ouvirem “Been On My Mind”, das canções mais lindamente fraseadas (em todos os sentidos) deste ano, já ganhámos o dia.

[Anansy Cissé] Anoura

Tal como o intérprete na capa, Anoura é um disco de quem se move, de quem balanceia pelo familiar e se banha em areias desconhecidas. Ao contrário de Anansy Cissé, que é visto a atravessar uma estrada fora da passadeira, os ouvintes não estarão a sujeitar-se a multas: só a ponderações que rapidamente se transformam em pés irrequietos.



RUI MIGUEL ABREU

[Damon Locks Black Monument Ensemble] NOW

Como ir gritar teatro para o meio de um fogo, escreveu-se por aqui. Damon Locks é um agitador, um pedagogo, um filósofo e um aglutinador de energias. E todas essas valências são aplicadas na construção do seu Black Monument Ensemble que com este NOWoferece mais uma possível visão do mais estranho presente que as nossas memórias colectivas registam. Numa era em que se debate o derrube de estátuas (e há tantas que mereciam ser destruídas, outras levadas para museus e devidamente contextualizadas, porque o espaço PÚBLICO tem que ser seguro e não pode estar ocupado por fontes de agressão, sejam elas pessoas vivas ou estátuas inertes, porque os gritos de umas e de outras podem mesmo ferir), Damon está concentrado em erguer um Monumento negro, positivo, aberto à esperança, apoiado em sólidos pilares comunitários. É o que aqui se celebra, entre os beats desenhados num sampler portátil e o sopro de vozes e instrumentos que se faz de um respirar que quer ser livre. Admirável.

[Sons Of Kemet] Black To The Future

Black to the Future! Dos SALUT e Kendrick Lamar, a Angel Bat Dawid, Moor Mother, Beyonce ou Tristany, entre tantos outros, há uma vaga de fundo que quer elevar ao futuro a presente luta que ultrapassa o hashtag #BlackLivesMatter, que é global e que tem gerado algum do mais glorioso barulho que os nossos ouvidos têm tido o privilégio de escutar. O saxofonista Shabaka Hutchings mais o tubista Theon Cross e os bateristas Tom Skinner e Eddie Wakili-Hick puxam a histórica Impulse! para o futuro com mais um disco feito de vibração ancestral, de sopros de vitalidade poética e músculo criativo mais do que tonificado, com ritmo capaz de desencadear terramotos de ânimo. Metam uma multidão à frente dos Sons of Kemet e eles oferecerão um eloquente discurso que prova que o jazz está vivo e exige mudanças.

[Armand Hammer & The Alchemist] Haram

Escreveu-se aqui que “com a ultra-cuidada marca de água de Alchemist impressa nos beats, a dupla Armand Hammer demonstra aqui ser justa parte da elite que nos subterrâneos da América hip hop tem vindo a cuidar da arte sem ligar aos parâmetros industriais que embora possam igualmente gerar obras de qualidade assinalável também tendem a normalizar um certo discurso que sabemos ser condizente com as mais populares playlists e tendências que ditam o tom do topo das tabelas de vendas”. Ora, ELUCID e billy woods, os dois MCs que juntos respondem ao nome Armand Hammer (arm and hammer, braço e martelo, perceberam?), querem mesmo usar as palavras como um martelo para destruir preconceitos ou talvez para esculpir novas estátuas. Que o façam com entusiasmante panache é um bónus. E lembrem-se: até no esculpir da mais bela estátua é necessário empregar a violência para desbastar a pedra.

[Floating Points, Pharoah Sanders & The London Symphony Orchestra] Promises

Promises“, defendeu-se por aqui, “o álbum que Floating Points e Pharoah Sanders protagonizam juntamente com a London Symphony Orchestra, é a prova definitiva de que a música é a mais generosa, ampla e verdadeira via de comunicação que existe, capaz de harmonizar diferentes histórias e culturas, linguagens e práticas”. Com a orquestra clássica de permeio, o vibrafone de Pharoah Sanders ressoa com a nobreza que só mais de 8 décadas neste plano de existência pode conferir, e do outro lado do tempo, o bem mais jovem Floating “Sam Shepherd” responde com eloquência, usando o cravo, a celesta, o piano e os sintetizadores como a seda que cuidadosamente se manipula para enredar um corpo no mais subtil dos toques. O resultado final é beleza pura. Nada mais. Nada menos.

[Madlib] Sound Ancestors

Madlib é aqui o artista, o criador impulsivo e torrencial. Poderia verter texto para página ou cor para tela que seria o mesmo. Mas são samples, a matéria que corta, manipula e cola depois, num caos hermético, mas fascinante que se transformou numa das mais incríveis discografias no lado mais canhoto do hip hop. E Kieran Hebden, ou Four Tet como também assina, é o editor literário ou curador de artes plásticas feito aqui produtor, o homem que pegou nas ideias, nos excertos, nos beats semi-acabados que Madlib lhe foi enviando e os estruturou. Não num livro de fluidos capítulos que depois de lido não permite que se pense que alguma vez possa ter tido outra forma e organização; não numa exposição, ordenada e exibida de forma a mostrar a visão de quem atirou as emoções, as ideias, os pensamentos para aquelas telas, não nos deixando imaginar que no fervor criativo do atelier elas pudessem em tempos ter tido outra disposição, perdidas num labirinto de mais ideias e mais telas; mas num disco, com uma narrativa sónica clara, feito de psicadélicas imagens musicais resgatadas a rodelas clássicas de soul e jazz e de géneros mais esotéricos, pequenas selecções que quando combinadas como só Madlib parece saber revelam o seu discreto, mas incontinente génio.

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