De quando em quando existe um vídeo protagonizado por JAY-Z que volta à baila: a caminho da última noite da sua residência esgotada de oito datas no Barclays Center, em Brooklyn, em 2012, o rapper teve uma pequena conversa com Ellen Grossman, na altura com 67 anos, na viagem de metro até lá. Sem o reconhecer, a senhora pergunta-lhe se é famoso, ao que Jigga responde: “Sim. Mas não sou muito famoso, tu não me conheces. Mas hei-de lá chegar um dia”. Há nove anos, Shawn Carter já era uma super-estrela com dimensão mundial, extravasando o seu carisma muito para lá dos limites do rap — era uma autoridade da esfera pop em todas as suas dimensões possíveis. É difícil imaginar que alguém no mundo não o reconheça à primeira vista, mas é aí que entra a comummente chamada generation gap: o que para uns é óbvio, para outros é imperceptível, ilegível, incompreensível.
Lançado em 2018, Avida Dollars é, certamente, um trabalho inalcançável para alguém como Grossman. Não tem a ver com qualquer tipo de preconceito relacionado com idade ou algo do género: a linguagem e os códigos do trap são direccionados para um grupo mais jovem de pessoas que cresceram mergulhadas num ecossistema onde o rap e o seus derivados são dominantes. Há três anos, C. Tangana seria um desconhecido para alguém fora dessa faixa etária que não tivesse verdadeiro interesse por descobrir as novas e excitantes correntes musicais que vão surgindo — o ouvinte comum que não procura, mas que se deixa encontrar.
Milhões de streams, milhões de visualizações e milhões de gostos soam a domínio total para um público mais jovem, mas a realidade é outra: podes ter essa grande audiência e nunca teres tocado na rádio mais ouvida, nunca teres sido entrevistado (ou mencionado até) no canal de televisão mais visto e nunca teres pisado o palco da maior sala do teu país. O artista espanhol encaixa-se neste tipo de caso — se o Musicbox podia parecer suficiente para o acolher em 2019, e talvez até o seu estatuto já exigisse uma sala maior nessa data, seria displicente pensar em menos do que um Coliseu de Lisboa para receber agora este El Madrileño, um blockbuster musical que cumpre com a promessa de grandeza a que se propõe — e a bater um recorde que pertencia a Rosalía pelo caminho.
Por norma, “inovação” é uma palavra que se associa a outras como “novo” e “jovem”, mas Antón Álvarez Alfaro reverteu basicamente o sistema com o seu novo álbum: em vez de se rodear das mais recentes estrelas do reggaeton e do trap (e sons aproximados), o músico percebeu que queria ir para lá desses imaginários, mas integrando-os numa visão mais expansiva e, num certo sentido, adulta — com uma maior atenção aos arranjos e à poesia a suportar esta ideia. A audácia de, em 2021, alguém apresentar-se mais fresco do que nunca com um trabalho que conta com participações de nomes como Gipsy Kings, Toquinho, Jorge Drexler, José Feliciano, Eliades Ochoa, Kiko Veneno, Andrés Calamaro, Niño de Elche e La Húngara faz, afinal de contas, pleno sentido…
O trapero deu, definitivamente, lugar a um arquitecto de grandes obras, bem ao jeito de Kanye West na ambiciosa maneira de olhar para os recursos ao seu dispor, mas não deixou de se aproximar cada vez mais da sua melhor versão de Certified Lover Boy, e aí é Drake quem se tem de cuidar, simplificando — sem estragar — a sua escrita para servir a entrega quase sempre contida; a força da expressividade deixa-a para os seus convidados — e bem. Há que saber os limites da sua desafinação e perceber como aplicar o seu veneno. E o seu veneno é uma mistura de bragadoccio em que fala sobre mulheres, dinheiro e fama, mas sempre de uma perspectiva vulnerável, projectando-nos imagens próprias de quem vive nos limites. Um dramatismo evocado nas letras, nos instrumentais e nos vídeos (excelentes, por sinal) criados pelo colectivo Little Spain — e aí há vislumbres da Espanha de Pedro Almodóvar e da Hong Kong de Wong Kar-Wai. Nostalgia, grão e cores quentes que se infiltram no tecido musical e visual.
De uma certa maneira, e colocando em perspectiva o cenário português, C. Tangana (e sem esquecer outros seus semelhantes como a já mencionada Rosalía, Rodrigo Cuevas ou DELLAFUENTE) faz com a música latina e espanhola aquilo que Ana Moura, Pedro Mafama, David Bruno, Conan Osiris e Chico da Tina têm feito por cá (e o “latino” é substituído pelo “lusófono”, neste caso), entrelaçar os conceitos de alta cultura e baixa cultura, unindo-os através de ângulos diferentes mas com propósitos semelhantes — abordar, também, aquilo que é considerado “popularucho” e incluí-lo em perspectivas que afinal só enobrecem esse designativo. Extrair o “ouro” de forma informada e metê-lo dentro de novas fórmulas que irão certamente criar raízes fortes e longas.
Este madrileno parte da ideia de que a sua cidade é a capital da música global e liga a bossa nova e a rumba, o flamenco e o funk carioca (chamou-lhe “a dance music mais sofisticada do mundo”), o bolero e o r&b, o corrido e o folclore espanhol, o rock e o reggaeton, tudo isto com a ajuda de Víctor Martinez e Alizzz (juntos formam um trio de produção que torna tudo uniforme — e conseguir isso só por si já merecia congratulações à parte). Ser-se vanguardista é compreender o passado e imaginar o futuro e ter estado envolvido em grande parte das faixas de El Mal Querer pode ter ajudado Tangana à formação desta sua visão particular, mas, tal como a sua ex-companheira, também ganha — em termos de exposição — com o momento de grande popularidade que o universo musical latino conquistou através de Luis Fonsi, J Balvin ou Bad Bunny. Em relação a esses seus contemporâneos, a sua grande vitória é fazê-lo de uma forma subversiva e sem ceder às tendências — ser número 1 há várias semanas seguidas em Espanha confirma o sucesso da aposta.
Porém, só existe uma maneira de conquistar ou tentar encontrar a imortalidade: fazendo grandes canções. Nesse campo, o homem espanhol do momento não falhou: “Demasiadas Mujeres” é uma mistura de música tradicional espanhola com filigrana electrónica a puxar-nos para um momento em que parecemos estar prestes a entrar na maior aventura das nossas vidas; em “Tú Me Dejaste De Querer”, as interpretações emotivas de Ñino de Elche e La Húngara são o complemento ideal para o viciante riff de guitarra que faz ferver o sangue de qualquer um — façam o teste para perceberem se são realmente humanos; “Comerte Entera” é de um nível de minimalismo e sofisticação tal que quase nos esquecemos da tensão sexual aplicada pelas palavras de Tangana; “Párteme La Cara” é o Bon Iver de Yeezy a passar pelo filtro espanhol — e se escrevesse “cosas buenas de algunas chicas malas” talvez se tornasse menos matéria de bocejo; “Ingobernable”, “Los Tontos” e “Muriendo De Envidia” dão vontade de vestir uma camisa e ir para o bailarico mais próximo; “Te Olvidaste” e “Cuandó Olvidaré” servem para fazer o luto de uma relação — se não tiverem numa, vão ter vontade de inventá-la para ouvi-las com outro tipo de intensidade; “Un Veneno”, a faixa que brotou este El Madrileño, leva uma mistura diferente para a versão final do álbum, mas as suas propriedades ficam ainda mais apuradas com a contribuição do septuagenário José Feliciano. Elegante, cinematográfico e venenoso.
Nas palavras do próprio artista, este disco é “uma homenagem à canção popular” (neste caso a cantada em espanhol) e à sua capacidade de unir e de tornar sentimentos pessoais em verdades universais. Quando clicamos no play no Tiny Desk de Tangana, essa ideia concretiza-se de imediato perante os nossos olhos: sentados à mesa, com comida e bebida, estamos todos de igual para igual, a pensar na comunidade. De nós para nós. De copo cheio. De barriga cheia a cantar em uníssono.
Em 14 canções, Pucho passou de altifalante de uma juventude irreverente a voz do povo e tema de conversa do boteco mais recôndito à discoteca mais concorrida. Para o neto e para a avó. Num mundo cada vez mais fracturado, este é um feito digno de todas as chamadas de capa (pelas melhores razões).