LP / CD / Cassete / Digital

DJ Muggs & Rome Streetz

Death & The Magician

Soul Assassins Records / 2021

Texto de Paulo Pena

Publicado a: 10/03/2021

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O que acontece quando se junta um dinossauro do hip hop e um lobo do rap underground? Morte e magia, em simultâneo. Death & The Magician é o resultado do encontro entre DJ Muggs e Rome Streetz. O histórico produtor convocou o MC de Nova Iorque para juntos assinarem um disco com sangue dos Soul Assassins na pena, uma assinatura sangrenta que é vincada principalmente pelo membro dos Cypress Hill

Ao lado de Muggs, Streetz pode parecer um novato no hip hop que viu a oportunidade da carreira cair-lhe aos pés com este convite do estabelecido DJ e produtor. Algo semelhante ao apadrinhamento de MF DOOMBishop Nehru – em NEHRUVIANDOOM –, com quem partilha uma linha bem definida do rap nova-iorquino (basta ouvir “The Manuscript” para fazer esta ponte na Big Apple). Mas ao contrário do prodígio da Mass Appeal, de tenra idade, Rome já vai na casa dos trinta e conta com uma discografia assinalável, se tivermos em conta todos os seus projectos até à data: começou a ser construída nos seus tempos de liceu, durante o seu “exílio” forçado em Londres, devido aos caminhos que estava a tomar em Nova Iorque. Aliás, como valor cada vez mais reconhecido do rap dito underground, Streetz não se poupa na hora de produzir trabalho: “I had the studio equipment in my house before the lockdown and I would probably do one or two songs a day. But now that I can’t go anywhere, I can knock out four or five.”, revela num artigo publicado no Bandcamp. Mais, o diploma que o certifica como um dos privilegiados a ter um disco inteiramente produzido por DJ Muggs não é a primeira distinção no percurso de Rome que recentemente tem vindo a ser requisitado por nomes respeitados: aconteceu com Statik Selektah no seu último trabalho, The Balancing Act, que reuniu uma série de MCs de primeira linha; com Ransom num dos melhores álbuns de rap do ano passado —Director’s Cut Scene 3; com Westside Gunn no segundo volume de FLYGOD is an Awesome God, também de 2020; ou com Big Ghost LTD e com Conway The Machine no seguimento de No One Mourns The Wicked, em If It Bleeds It Can Be Killed, já em 2021. 



Ter exclusivamente um produtor a dirigir um projecto de um MC – porque a quota de DJ Muggs vai muito além da produção per se – é realmente um privilégio, seja para o artista em questão, seja para o ouvinte, que, regra geral, é surpreendido com uma obra com tanto de originalidade como de personalidade. De Illmatic To Pimp A Butterfly sempre se fizeram grandes – os melhores, neste caso – álbuns de hip hop com uma vasta comparticipação na área da produção, mas há qualquer coisa de especial nos discos divididos por duas cabeças, nesse casamento celebrado entre rapper e produtor. A viagem é outra; a identidade é mais forte; a intimidade artística sobressai. São duas visões que se juntam numa só: os instrumentais dão vida às linhas; os versos deixam de ser exclusivamente frases confessadas num plano bidimensional e encriptadas pela mente de quem as redigiu, e assumem um grau realístico, palpável, mesmo que num universo ficcionado (o que nem é o caso aqui). A parte instrumental dá a mão à voz para uma dança no centro da pista, com os nossos olhos fixados em cada movimento de ambas as partes. Um ouvido nas rimas, outro nas batidas, igualmente focados e embebidos em cada dimensão. Há duas entidades a comunicar entre si, a complementarem os pensamentos uma da outra, a criar uma história comum. 

Death & The Magician é um desses casos em que as tais rimas e batidas competem pela nossa atenção. Oiça-se “High Explosive”, que começa com samples jornalísticos (como acontece noutras faixas), arranca posteriormente com umas primeiras notas gloriosas e convida Rome Streetz, cheio de gana e tecnicismo lírico, a encarnar um Ab-Soul (talvez um dos melhores liricistas contemporâneos a figurar nas páginas amarelas do rap…), terminando com uma melodia melosa (no melhor dos sentidos, a aliteração) e uma voz emprestada pela biblioteca musical de Muggs, que volta a converter à composição que nos conquistou no início. “Fuck You Know About Me” idem, apenas para destacar os melhores exemplos de um fenómeno constante neste longa-duração. E este é um casamento sem divórcio porque se Rome mostra confiança e mestria nos versos que canta (o “homem” da casa, numa visão mais antiquada, mas que serve para ilustrar o papel dominante que o rapper tem sobre o produtor face ao consumidor), estes atingem outro patamar que de outra forma não seria alcançado, pelo menos com tanto impacto. Rimar nestes beats é fazer rap em anabolizantes: o trabalho e a qualidade estão lá, indiscutivelmente, mas os resultados são exponenciados com a mão do feiticeiro Muggs e pelas agulhas deste DJ. Assim, da mesma forma que DJ Muggs faz de Rome um MC ainda melhor do que este já era, também os instrumentais concebidos para este projecto ganham uma outra textura com as barras de Streetz; tornam-se mais vívidos e isto serve também para os versos — há uma banda sonora por trás que lhes cria o devido ambiente para essas palavras respirarem em cenários compostos à letra (literalmente, como se costuma dizer). 

Assim, mais do que os retratos explícitos das ruas, que são a tónica deste álbum, o que realmente fica na retina e no ouvido é uma prestação exímia de parte a parte, que consegue surpreender tanto os que seguem ao pormenor o legado do consagrado DJ Muggs como os que vêm ao baile só para a desgarrada de Rome Streetz. Juntou-se um carniceiro das rimas a um mágico das batidas e o resultado não podia ser mais fascinante. O todo é a mais-valia deste disco cujos elementos isoladamente considerados já são de si impressionantes, mas que formam uma bigger picture que só tem expressão completa na simbiose que os une, num dos melhores projectos de rap dos substratos de Nova Iorque deste ano que ainda tem longos meses pela frente – sem truques mágicos fatais nesta premonição.  


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