LP / CD / Digital

Bruno Pernadas

Private Reasons

Edição Independente / 2021

Texto de Rui Miguel Abreu

Publicado a: 13/05/2021

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Bruno Pernadas é um polímata: compositor de amplos recursos capaz de se expressar em diferentes linguagens estéticas, ele é igualmente um seguríssimo multi-instrumentista, inteligente produtor, arranjador carregado de imaginação, letrista capaz de surpreender, tem ideias muito definidas no campo visual, é um atento ouvinte e investigador da história da música e é, ainda, um estudioso aplicado das dinâmicas desta coisa fluída e sempre misteriosa que à falta de melhor termo descrevemos com as palavras “mercado da música”. Não é coisa pouca. O extraordinário, no entanto, é que Pernadas seja capaz de manifestar toda essa multiplicidade no seu novo álbum, Private Reasons, trabalho que sucede à dupla investida de 2016 que se traduziu na edição simultânea de Worst Summer Ever e Those Who Throw Objects at the Crocodiles Will be Asked to Retrieve Them.

A irrequieta criatividade de Bruno Pernadas continua a manifestar-se da melhor forma no novo álbum que recusa repousar num único território ou região estética, mesmo que mais ampla, preferindo antes deambular livremente por um atlas musical tão vasto que é capaz de se estender da solarenga Califórnia onde se inventou o “sunshine pop” de recorte psicadélico pela mão dos Beach Boys ou Free Design à Nova Iorque fusionista onde os Steely Dan testavam os limites da sofisticação e depois regressar à Los Angeles em que a soul e algum jazz souberam vestir-se com a seda de um estilista como David Axelrod. E passa ainda pela Lagos urbana e moderna que Fela Kuti consagrava na sua Kalakuta Republic, pela Inglaterra da pop laboratorial dos Stereolab ou Boards of Canada, pela Itália cinemática e orquestral dos senhores Nicolai e Morricone e até ousa uma espreitadela aos quarto-mundismos asiáticos e à pop-citadina de Sakamoto ou Hosono. Tanto mundo aqui que já não há mais espaço para carimbos no passaporte musical deste inventivo nómada.

Para pintar este dilatado mural, e tal como bem expresso na capa, Pernadas recorreu a uma palete de várias cores: os azuis dos sopros, os amarelos das cordas, o mais carregado recorte negro do baixo ladeado pelo grená das percussões, o laranja das guitarras eléctricas (esta é fácil…), o vermelho das vozes, o verde dos teclados. Combinadas todas as cores, obtém-se uma sucessão de painéis – 13, que Pernadas, tal como os Heróis do Mar, também não é supersticioso – de bom gosto inexcedível, de plena elegância cromática, de vincada imaginação.

Há um “truque” a que Pernadas recorre desde o início: uma minúcia a toda a prova que se expressa nos detalhes dos arranjos. Tome-se como exemplo o tema “Fuzzy Soul”: harmonias de vozes masculinas subtilmente tintadas com auto-tune, guitarra dedilhada gentilmente… Bastava, não? Talvez a outro artista, mas Pernadas convoca a luz que se entrevê na voz de Minji Kim, adiciona secção rítmica, uma voz samplada de uma emissão de rádio da Europa de Leste, um sintetizador que sonhava ser clarinete, depois baralha tudo e põe o resultado a flutuar numa nuvem de algodão doce melódico, brincando com a disposição harmónica dos diferentes sons, como um maestro. Logo depois oferece uma “Theme Vision” à memória do Brian Wilson de Smile. E isto não pára, com uma sucessão de pequenas surpresas que nos prende irremediavelmente à sua “narrativa”: “Jory” e “Jory II” são oásis de lúdica liberdade, em que Bruno Pernadas brinca com conceitos, ideias e marcas de identidade estética, num leve bailado que faz piruetas entre a Ásia e o Brasil, entre a electrónica yellowmágica e a acústica pernambucana. E tudo faz absurdo sentido, até o solo (guitarra?) em reverse e as vozes “exóticas” à Les Baxter. E “Brio 81”, a “tour de force” do álbum nos seus quase nove minutos de duração, tem harpa e sintetizadores, percussões de orquestra clássica, drones que soam a sitar, vozes processadas, múltiplos samples, flauta, mais harmonias vocais, piano eléctrico, guitarra, sintetizadores variados, como se Pernadas tivesse decidido usar tudo aquilo a que conseguiu deitar mãos no estúdio em determinado dia, só porque sim, e fazer um psicadélico “filme” de sons tão vívido como se tivesse antes usado imagens. Que dizer a isto? “Obrigado” é bem capaz de servir.

De facto, há em Private Reasons temas em que se investem mais ideias do que as que se conseguem contar ao longo de discografias inteiras de outros artistas. Que Pernadas faça tudo isso com uma insustentável leveza é que é absolutamente admirável. A música que vai assinando na sua cada vez mais incontornável discografia é, sublinhe-se só para que fique bem claro, um absoluto triunfo artístico.  


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