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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 09/04/2021

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #54: Damon Locks & Black Monument Ensemble

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 09/04/2021

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Damon Locks & Black Monument Ensemble] NOW / International Anthem

Quando se escuta o clarinete de Angel Bat Dawid por cima da clave de ressonância tribal, seguindo-se e antecipando-se ao clamor do coro que entoa a espiritualidade da luz, ecoando uma tocante positividade, o que se está a ouvir é o espírito resiliente da comunidade afro-americana, a cadência que impele o presente para o futuro, a crença na justiça. Damon Locks, o afro-punk em tempos enamorado pelo apocalipse, quer ser parte activa na construção desse futuro e por isso usa a música, que provoca numa constante troca de energia entre as suas colagens conjuradas na SP-555 e os músicos com que elege trabalhar, como uma ferramenta para erguer comunidades. E gritar “comunidade” neste tempo de individualismo abertamente celebrado nas redes, tão dramática quanto simbolicamente representado na ideia de “selfie”, é como ir gritar a palavra “teatro” para o meio de um fogo.

No final de “Now (Forever Momentary Space)”, título da faixa de abertura deste álbum e que traduz a ideia das possibilidades infinitas de que se faz o presente, escuta-se Bat Dawid, uma vez mais, eufórica, respondendo ao que sentiu o grupo, a sua comunidade, criar naquele momento da gravação, ao ar livre: “isto foi um espaço momentâneo, isto foi um espaço momentâneo… e espero que não cortes as cigarras que se ouvem… uau… elas soaram mesmo bem”. O disco, gravado o ano passado já em plena pandemia, durante o Verão, precisava de lidar com uma delicada questão: como se grava uma música que vive da respiração colectiva de um coro numa altura em que simplesmente respirar pode ser perigoso? Gravar no jardim foi a opção, tal como explicado no artigo que esta semana se dedicou a este novo trabalho do Black Monument Ensemble no New York Times: “As cigarras”, explica aí Bat Dawid, “estiveram seriamente no tempo umas quantas vezes”. Arte, comunidade e natureza em plena harmonia.

O álbum é entrecortado por diálogos resgatados a velhos filmes, um pouco como os snippets dos filmes de Kung Fu que estabeleciam o tom entre as barras dos Wu-Tang Clan ou então como as imagens que Damon Locks encontra em velhas revistas e que usa nas suas colagens visuais: são uma espécie de sugestão de sentimentos, uma “mood board” sonora que ajuda a impor o tempo rítmico seguido depois por Dana Hall, o baterista, e Arif Smith, o percussionista, dois mestres, como Damon faz questão de os classificar na entrevista que nos concedeu, que oscilam entre o pulso rígido do hip hop, respondendo de forma subtil aos loops atirados para o centro da acção pelo líder, e uma mais polirrítmica e livre tradução de uma vibração comunal que se assume como uma ligação directa entre o que faz agora o Black Monument Ensemble e o que se tentou noutras eras e noutros contextos, dos pojectos ligados ao AACM à Arkestra guiada pelo espaço sideral por Sun Ra ou daí até aos Art Ensemble of Chicago.

“The Body is Electric”, o tema que fecha o álbum, é a peça-chave aqui: por cima da base percussiva de ímpeto celebratório escuta-se um primeiro solo de Angel Bat Dawid e quando as vozes entram sentimo-nos transportados para um ritual de elevada espiritualidade numa África imaginada. Entre a harmonia delicada das vozes e a intrincada filigrana polirrítmica insere-se depois, além do clarinete, o trompete de Ben Lamar Gay e o que se sente, quando o tema dobra os quatro minutos, é o levitar do colectivo, como se a força da música ali criada naquele momento tivesse a capacidade de elevar a comunidade, de a transportar para outro plano, de a proteger. É algo de muito intenso o que ali se alcança, com Angel a brilhar de forma muito intensa, num solo que tem tanto de visceral quanto de poético.

NOW um disco simples, transparente e breve, que não chega sequer aos 30 minutos, mas que por isso mesmo convida à repetida audição, embrenhando-nos de cada vez que regressa ao início num hipnótico e emocional loop feito de luz, cigarras e respiração colectiva, de harmonia e fervor rítmico, de esperança. E discos assim são importantes. AGORA.

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