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SAULT

Nine

Forever Living Originals / 2021

Texto de João Mineiro

Publicado a: 30/06/2021

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Anunciaram-se ao mundo em 2019, lançando não um, mas dois magníficos álbuns: 5 e 7. Os SAULT ficaram de imediato no radar, mesmo optando por não revelar a identidade dos seus membros, num tempo definido pela exposição total e pela auto-promoção permanente. Propunham, tão simplesmente, que escutássemos a sua música e refletíssemos sobre e com ela. No ano de 2020, marcado globalmente pela pandemia COVID-19 e pelo movimento Black Lives Matter, voltaram à carga, com dois novos e fascinantes lançamentos: primeiro Untitled (Black is), depois Untitled (Rise). As identidades permaneciam ocultas, mas a sua música impôs-se, consolidando uma banda sonora que procurava e conseguia ser um retrato da complexidade e da dureza deste nosso tempo, falando de luta e ansiedade, desigualdade e esperança, preconceito e celebração.

Menos de um ano depois, cá estão elas e eles de novo, com Nine, o quinto álbum oferecido ao mundo durante 99 dias. Fazendo as contas, em apenas dois anos os SAULT lançaram cinco álbuns, num total de 69 temas, sem que em qualquer momento lhes pudéssemos reconhecer despropósito, redundância, excesso ou fadiga. É obra.

Nine é o capítulo seguinte daquela que é uma das mais estimulantes histórias da música contemporânea à escala global. Continuamos sem conhecer a identidade de todos os membros deste colectivo musical, além dos créditos concedidos a Inflo, Kadeem Clarke, Cleo Sol e Kid Sister. Parte dos mistérios em torno da banda permanecem, assim como não se parece ter alterado a sua vocação para romper, baralhar e confundir os sagrados mandamentos da indústria pop. Primeiro, insistindo em romper com o culto da personalidade. Depois, desconstruindo o narcisismo aditivado pelas redes sociais, às quais apenas recorrem para partilhar o lançamento dos seus trabalhos. Em terceiro, baralhando as tácticas de gestão de imagem, às quais basicamente não recorrem. Finalmente, caminhando a contraciclo com a tendência dominante de gestão de carreira, optando por lançar álbuns longos, densos e muito próximos uns dos outros, em vez de fazerem uma gestão meticulosa do seu catálogo, single a single, álbum a álbum, com a respectiva parafernália promocional e como parece ser financeiramente mais rentável.

Com tudo isto, a mensagem parece clara: para conhecer os SAULT “basta” ouvir a sua música. Proposta de difícil compreensão nos dias que correm, onde (quase) toda a gente se parece sentir condenada a competir na tortuosa, mas bem lucrativa, economia da atenção. É preciso dizer que todas estas opções poderiam ser fatais para o projecto. Contudo, a qualidade da música que propõe, e a sua capacidade de entrosamento no tempo social e político em que vivemos, tornou o seu trabalho impossível de ignorar. Os SAULT foram-nos revelando uma música esteticamente ancorada neste tempo, mas profundamente embebida nos trilhos da soul, do funk, da electrónica e do hip hop; nas melhores tradições da ideia do som enquanto espaço cénico, capaz de trabalhar o silêncio e a palavra, a imaginação e o discurso; na importância da voz e dos coros como elementos emocionais e de “partilha do sensível”; nas viagens da energia eléctrica, da repetição e do minimalismo. Ao mesmo tempo, e para além de tudo isto, cada álbum lançado revelava que, por detrás da música, havia razões profundas que davam sentido à sua existência. Uma intenção poética, política e emocional, a que música dá corpo, espessura e transcendência. Técnica, estética e ética, como entre nós dizia o saudoso José Mário Branco.

Nine não é exceção no percurso e no posicionamento dos SAULT. Constitui-se como uma camada adicional que é acrescentada ao universo sonoro que estão empenhados em edificar. A narrativa que atravessa o álbum continua a centrar-se nas desigualdades, no racismo estrutural, na injustiça, na luta e na esperança. Contudo, aqui, os SAULT escavam um pouco mais a sua identidade, revelando que a sua vocação global é, também ela, profundamente ancorada às raízes locais onde cresceram. Em Nine são os mesmos SAULT que conhecíamos dos trabalhos anteriores, mas a falar-nos um pouco mais de si e dos seus, a partilhar um pouco mais a sua casa e a sua história.

Mais uma vez, são políticos sem serem dogmáticos, são poéticos sem perder a materialidade, são de denúncia e de esperança. A música permanece fiel à sua identidade: uma bateria cuja centralidade conduz os restantes elementos sonoros; riffs de baixo pujantes e distorcidos; a emoção vocal e os efeitos sonoros sobrepostos; o ecletismo e a versatilidade das transições e variações naturais entre géneros e estilos; a consciência do caldeirão de influências que misturam e às quais acrescentam atualidade (de Marvin Gaye a Erykah Badu, de Aretha Franklin a D’Angelo, de Otis Redding a Massive Attack, de Curtis Mayfield a Prince, e tantas e tantos outros). A tudo isto acrescentam uma insistência em nunca nos fazerem sentir demasiado confortáveis. Quando se estabelece um groove melódico, logo lhe acrescentam um discurso duro sobre racismo e violência; quando entramos no campo da acomodação, logo nos oferecem uma súbita mudança de direção, que nos recentra a atenção e o foco. Não, não está tudo certo. Não, não está tudo bem. É importante que a música nos lembre disso. Por vezes pode ser frustrante, mas é quase sempre necessário.

A viagem de Nine abre com “Haha”, faixa introdutória com aparência de inocência. Mas é só aparência mesmo, porque mal começamos a escuta, logo nos vem à cabeça: “they did it again!” ou “guess who’s back!”. Mas rapidamente nos passa a descontração quando, antes mesmo dessa introdução acabar, logo se anuncia a poderosa batida de “London Gangs”, onde a bateria dirige ritmicamente essa crueza que nos atinge de imediato. Trata-se de SAULT, não há dúvidas, sem economia de força, nem gestão de intensidade.

A partir daí, o disco continua no trabalho musical e poético em torno da desigualdade estrutural, das discriminações, das histórias de injustiça que são colectivas, mas também individuais, em vidas que aqui são lembradas, homenageadas e celebradas. É música de força, denúncia e, como se perceberá no final, também de esperança e utopia. Antes de lá chegarmos, a dureza da realidade urbana em “Trap life” e em “Fear”, que antecedem “Mike’s Story”, a história da noite em que Michael Ofo e a sua mãe descobrem que o seu pai havia sido assassinado.

“Mike’s Story” assinala, então, uma transição para uma segunda parte do álbum, de pendor mais melódico, confirmando o sentido ecléctico e versátil da música a que se dedicam. Melódico, dizia, mas sem ocultar a amargura. Como cantam, por exemplo, em “Bitter Streets”: “I used to dream/ About the things I want to be/ The life beneath now/ How can I smile?”. Mas a amargura não lhes neutraliza o humor e a ironia que também lhes conhecemos. Tal como no trabalho anterior com “You Know You Ain’t”, neste temos “You From London?”, que, depois das lições de Little Simz, abre espaço a uma hilariante paródia sobre estereótipos e caricaturas de Londres, vista do lado de lá do Atlântico. 

Estamos, assim, a caminho do fim. Primeiro com “9”, faixa homónima do álbum, onde se começa a desenhar uma mensagem de esperança que vai encerrar a jornada: “One day, you’ll make it/ One day, you’ll be free/ Before you lose yourself/ Don’t forget to dream”. Faixa pop, com linha de baixo itinerante, vozes e guitarras faseadas e melódicas que vão conduzindo o final da viagem, prometendo-nos um milagre final.

É, então, na última música que essa ideia de milagre é celebrada, com o mais emocional e luminoso tema do álbum: “Light’s in Your Hands”. Verdadeiro tratado de empatia e utopia, apelo emocional à “emancipação do vivente”, de que fala Mbembe, que faz do amor, no seu sentido pleno, a força de comando para os dias melhores, que vão chegar. “Don’t ever lose yourself/ You could always start again”, ecoa repetidamente, para nunca nos esquecermos de vislumbrar a esperança.

Hannah Arendt, nos seus trabalhos sobre a ideia de política, costumava insistir que a mudança da vida só pode ocorrer através do milagre. Foi através de milagres sucessivos que se constituiu a existência física, a formação da Terra ou da vida humana. A diferença fundamental entre os milagres físicos ou religiosos, e os milagres na arena dos assuntos humanos, é o facto de que, nos assuntos humanos, existem “operários e operárias do milagre”, isto é, gente de carne e osso que, fazendo uso da liberdade, constrói e realiza o improvável e o imprevisível. Em certo sentido é também desse milagre humano que nos falam os SAULT no final desta viagem. Essa hipótese difícil, mas inevitável, de contra todas as probabilidades, continuar a andar, continuar a tentar e nunca perder a esperança. Está tudo na música: o pessoal e o político, a som e a vida, a emoção e a palavra, o mundo ao alcance do gesto colectivo que o procura e que o constrói. Uma música que é verdadeira operária do milagre e da mudança que está a chegar sempre que a construímos.


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