Começa a ser evidente que se está aqui a erguer um sério case study que talvez (ou talvez não…) só o futuro possa resolver: os SAULT parecem ter lido com toda a atenção o Grande Livro de Princípios Universais da Pop (ou algo que o valha…) apenas para se dedicarem com afinco a ignorar cada uma das suas “lições”.
Em primeiro lugar, a lição da identidade: como já se tinha por aqui explicado quando se deu atenção crítica ao registo anterior, Untitled (Black is), há muitas suspeitas, mas poucas certezas no que à composição do grupo diz respeito. As prensagens físicas dos três álbuns já disponibilizados para venda (as cópias em vinil do novo só começarão a ser enviadas em meados de Novembro a quem já efectuou a pré-compra) creditam a produção a Inflo, nome artístico de Dean Josiah, artista londrino que tem coleccionado aplausos (e prémios como o Ivor Novello) graças a trabalho com gente da estirpe de Little Simz ou Michael Kiwanuka. Mas nada mais se sabe e há certamente vocalistas e instrumentistas ao lado de Inflo em estúdio. Ora, numa era em que a identidade é valor acrescentado e amplificado pelas plataformas sociais, tal gesto, ainda por cima reiterado e ferozmente defendido desde a estreia em Maio de 2019 com 5, adquire contornos de manifesto de resistência.
Logo depois, há que considerar a tão importante lição relativa à imagem: vivemos na era das selfies, dos visuais virais propagados no Tik Tok, de álbuns inteiros lançados em vídeo, de rostos de super-estrelas transfigurados em pixéis para adornarem os ecrãs gigantes de Times Square, de avatares que convocam milhões para aplausos virtuais em plataformas de online gaming. A imagem, ensina-se desde cedo na escola, sempre valeu mais do que mil palavras, mas os SAULT parecem acreditar precisamente no contrário, com o negro das quatro capas lançadas até agora a traduzir de forma dramática o mistério, mas também a privacidade, o anonimato. E nessas quatro capas, outros tantos símbolos: meramente gráficos, no caso dos dois primeiros álbuns (7 foi lançado em Setembro de 2019), mais humanos no caso de ambos os Untitled – um punho cerrado para o anterior (Black Is), as icónicas praying hands (que serão também um dos mais populares emojis de sempre) no caso de (Rise). E nada mais. Num tempo em que optar pela invisibilidade parece nem sequer ser opção, este é mais um gesto absolutamente radical.
Segue-se a crucial lição sobre a gestão da obra: é mais do que claro, como tão bem demonstrou Lil Nas X, que um tema basta para alcançar o topo e, talvez por isso mesmo, o “single solto” (ou liberto do “lastro” por vezes pesado de um álbum) tornou-se prática comum, com os artistas a optarem pela gestão a conta-gotas do seu output de forma a tentarem maximizar a presença nas plataformas de streaming em tempos em que, como todos sabem, o défice de atenção parece ser uma incontornável realidade. Em perfeita contra-corrente, os SAULT editaram quatro álbuns em apenas dezasseis meses, dois deles duplos. São cinquenta e nove (59!) faixas ao todo! Sem singles, sem build–ups, sem avisos, sem antecipações, sem nada. Tirando, claro, a música…
Há igualmente lições que procuram explicar como se promove toda essa música. Bem, os SAULT, na verdade, não a promovem: deram exactamente zero entrevistas, fizeram acompanhar os quatro álbuns de (já adivinharam…) zero press–releases e nas plataformas sociais nem uma palavra, nem uma declaração. Silêncio absoluto, ou seja, o oposto do incessante ruído que, sobretudo no Twitter, as maiores estrelas vão criando. Também não há registo de anúncios na versão livre do Spotify, de outdoors nas grandes cidades, de conteúdos pagos no Instagram ou em qualquer outra rede social, nem sequer de algum trend coreográfico a varrer o Tik Tok. Zero promoção, portanto.
No final, sobra a música. E aí são os SAULT que se mostram capazes de dar lições, embora, como se vai tornando cada vez mais óbvio, não escondam em momento algum que também estudaram eles mesmo, de forma bastante concentrada sublinhe-se, as grandes lições musicais do passado: as da soul, do funk, do disco e do house, as do hip hop; as da harmonia, do ritmo e do contraponto; as do silêncio e do espaço na mistura dub, da compressão na produção electrónica, do sampling no hip hop; as lições do rigor vocal ensinadas pela Motown e as da procura de um distinto carácter sónico tão bem professadas pela Stax; as lições do investimento emocional que de Aretha Franklin e Marvin Gaye a Bill Withers e Curtis Mayfield sempre marcaram a música popular negra; as lições do minimalismo e da repetição que as ESG ou Arthur Russell ensaiaram na Nova Iorque pós-disco; as lições do potencial da tensão orquestral que atravessaram a música desde que Isaac Hayes levou uma orquestra consigo para estúdio, desde que Charles Stepney criou uma sonoridade distinta para os Rotary Connection de Minnie Ripperton e daí até ao momento em que os Massive Attack samplaram cordas em “Unfinished Sympathy” criando uma canção para o futuro. De todas essas lições, os SAULT retiraram importante matéria que agora aplicam, com imaginação e com rigor, na música que criam.
E que música incrível é a dos SAULT. É importante perceber que mesmo não procurando minimizar as referências no passado, a música produzida por Inflo pertence claramente a este presente e isso percebe-se tanto no subtexto técnico (mistura, sound design, efeitos) como nas evidentes opções estéticas. Nesse sentido, o tema de abertura de Untitled (Rise), “Strong”, funciona como um claro manifesto: tem dentro soul psicadélica e disco angular, dub e hip hop, punk-funk e uma moderníssima arquitectura sónica carregada de detalhes, embora feita de esparsos elementos. Escutam-se baixo e bateria, guitarra, cordas e um break criado a partir de um sample de batucada brasileira, uma espécie de prenúncio para o tom celebratório que atravessa todo o álbum, e há até espaço no arranjo para um assomo afrobeat sugerido pela guitarra stacatto.
De facto, se Untitled (Black Is) era um claro e urgente comentário ao sucedido com George Floyd, um grito de revolta na cara do racismo sistémico, este novo trabalho é a forma encontrada pelos SAULT de recusarem a condição de eternas vítimas para os negros, sejam eles afro-americanos ou quaisquer filhos da diáspora global. É, portanto, um disco de celebração, de exaltação, de afirmação: “we shall reclaim our joy”, proclama-se a dada altura em jeito de discurso proferido durante uma manifestação. Este é um disco em que os SAULT abdicam do tom marcial que marcava o plano rítmico de alguns dos temas do registo anterior, substituindo-o por um claro apelo à dança. “I Just Want to Dance” é um óptimo exemplo, ainda que possa ser a raiva o motor da procura de abandono na pista de dança: “I just wanna dance/ Dance, dance, dance / Makes me feel alive/ I get kinda mad/ Mad, mad, mad / We lost another life”, canta a voz feminina que logo depois garante: “You won’t see me cry / No, no, no”. Dançar também é resistir. Dançar perante a adversidade também é vencer. E é por isso que logo no tema seguinte, “Street Fighter”, se exclama: “They can’t stop us/ Nothing like us/ It’s not over/ Till they hear us now”. E a suportar essa afirmação de força, uma espécie de mistura entre as polirritmias do afrobeat e um épico arranjo de cordas que planta o tema em território inédito.
O que é incrível nos SAULT – e tal já acontecia em Untitled (Black Is) – é que mesmo num álbum que soma 15 faixas nunca se sente o baixar de uma elevada fasquia, não há propriamente material descartável, usado para encher o espaço disponível no alinhamento, colocado ali simplesmente para adornar o óbvio e proverbial single. E isso resulta num disco que se escuta de um fôlego e que quase 50 minutos depois nos obriga a carregar novamente no play. Uma longa suite, portanto, em que todas as peças encaixam numa visão maior, ideia aliás reforçada pelos títulos dos dois registos lançados durante o ano corrente – como se (Black Is) e (Rise) fossem duas peças de um díptico nomeado Untitled, dois trabalhos pensados para serem encarados como complementares, ainda que eventualmente contrastantes.
E qual foi a última vez que uma banda ou um artista nos deu não um, mas dois álbuns do ano precisando para tal de apenas um trimestre?