Digital

Luca Argel

Samba de Guerrilha

Edição de Autor / 2021

Texto de Luís Carvalho

Publicado a: 24/03/2021

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Definir algo nem sempre é tarefa fácil, sobretudo quando o que se procura definir não é claro nas suas formas e nos seus limites. É nessa complexidade que podemos encontrar a música, algo que parece facilmente explicável, mas que, contudo, tem limites muito maleáveis. Na sua forma mais simplista podemos reduzi-la a um conjunto de ondas sonoras devidamente organizadas e com um fim explícito, mas por muito teóricos e académicos que queiramos ser, observar a música assim é só olhar para uma parte limitada da sua forma. Arrogantemente podemos definir um som como música ou como simplesmente ruído. Podemos também teorizar se a palavra é música, se os sons do ambiente o são e, no meio disto tudo, podemos também ver esta linha de pensamento no sentido oposto. No caso do álbum que aqui merece a nossa atenção, música é também palavra, é também ambiente, é história, é política.

Luca Argel, artista brasileiro há muito radicado em Portugal, perverteu o samba (o da cuíca, do pandeiro, do cavaquinho, aquele mais reconhecível pelos ouvintes, que o próprio muitas vezes toca nos seus grupos — Samba Sem Fronteiras, Orquestra Bamba Social), para nos mostrar que não lhe chega uma simples caracterização de música alegre, festiva, empolgante e carnavalesca. Em Samba de Guerrilha, o seu novo trabalho, o artista visita uma série de clássicos para com eles nos ensinar que samba é também sobrevivência, resiliência, coragem e, por vezes, política. Esses ensinamentos acabam mesmo por ser a maior vitória deste álbum; mais do que toda a questão musical, o valor histórico presente em todas as linhas cantadas e narradas é especial, emocional e chega até a ser gratificante. É incrível o que se aprende nestas cantigas, as vidas que se homenageiam, as histórias que não se deixam esquecer. Samba de Guerrilha acaba assim por ser muito mais que uma simples reunião de famosos sambas políticos e de intervenção. É uma autêntica aula de História que toca não só no Brasil e no passado, como também resvala no presente e até em Portugal, ou não começasse o álbum com um português. Alfredo Português, um compositor de fado que, para fugir as garras da ditadura, migrou para o Brasil, abraçando posteriormente os ritmos do samba, sendo até responsável pela criação da Mangueira, uma das mais famosas escolas de samba de todo o mundo. É com o seu “Samba do Operário”, um tema de puro marxismo, uma canção directa e sem papas na língua na referência à precariedade dos trabalhadores, que começa toda a música, toda a história, todo o Samba de Guerrilha.



Composto por três actos recortados pelos únicos silêncios de todo o álbum, Luca Argel aborda sonicamente os limites do samba, oferecendo novas versões do mesmo, destruídos e reconstruídos sonoramente de modo que o seu material original seja convertido em novas abordagens, novos instrumentos, com a introdução de outras linguagens estéticas que vão desde o pop, a MPB, à electrónica e até hip hop. O que sobra são as palavras, as mensagens, as batalhas que o músico quer sublinhar e dar a conhecer, contextualizando os temas com belíssimas narrações, em forma de complexos interlúdios, entrelaçando música e história, realçando assim tudo o que está por trás daqueles sambas, o porquê de eles existirem, o que eles querem dizer e o que simbolizam. São sambas políticos, de intervenção, que nos cantam, faixa a faixa, a história da cultura afro-brasileira, do samba, mas também da escravatura e todas as dificuldades pós-abolição da mesma, criando um arco evolutivo que vai desde esse período até ao presente porque, infelizmente, ainda há consequências desse passado, assim como lições que ainda não foram aprendidas, traumas que não foram curados. São ilações que retiramos das poderosas palavras de Telma Tvon — escritora angolana, outrora rapper e responsável neste álbum por dar a voz às narrações redigidas pelo próprio Luca. É nesses interlúdios brilhantemente narrados, e que por vezes são mais interessantes, emocionais e fulcrais que as próprias músicas, que encontramos o Almirante Negro, o Dragão do Mar, a Tereza de Benguela e tantas outras personagens fundamentais para a luta, para a causa e para a história da cultura brasileira. É nesses interlúdios que encontramos a maior vitória deste álbum. É neles que encontramos os momentos reflexivos em que pensamos sobre o que aconteceu e aquilo que realmente aprendemos. Através da voz encorpada, cheia de emoção, perseverança, mas também pragmática de Telma Tvon, criamos uma espécie de necessidade visual de imaginar estas pessoas. Sentimos empatia com elas, com as histórias e, de certa forma, acreditamos no que fazem e sentimos a urgência dos seus actos.

Isso é algo incrível e que realça não só o quão importante esta obra é, como também o quão extraordinária é. Aliás, a alusão à componente visual é bastante interessante em todo Samba de Guerrilha, não só pelo facto de o jornal — suporte utilizado para a edição do álbum — ter um design visual intrigante e apelativo, mas também pela capacidade das narrações embebidas pelo teor das histórias, e pela riquíssima sonoplastia. Transformar esta música (e esta aula de história) em algo próximo de um viciante teatro auditivo, onde Telma se isola na frente do palco para dar corpo a todos aqueles que lutaram, onde, atrás dela, actores reconstroem todos os momentos que imaginamos e ouvimos, onde todos os sons acontecem, inclusive as músicas tocadas, dançadas, sentidas por todos aqueles que fizeram parte deste arco. Samba de Guerrilha acaba por ser um palco para tudo isto. É um álbum ímpar, é música que é muito mais do que isso, é história fora dos livros mais comuns, é também uma reflexão, um desejo, uma apresentação, e são pessoas, momentos e, sobretudo, é uma importante e necessária partilha de que o samba é muito mais que apenas gingar a anca.


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