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Publicado a: 10/05/2016

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Keso Crítica

[TEXTO] Francisco Noronha

Há tempos, ainda o lançamento de KSX2016 estava distante, fui a casa de Keso por conta de outro projecto que, se as coisas correrem bem, verá a luz do dia num futuro breve. Mal entrámos (eu e a minha colega) no quarto, e ainda com o material às costas, já a mão do anfitrião tinha escorregado para o play e nós começado a ouvir, em decibéis elevadíssimos, um instrumental negro e poderoso, coros operáticos em fundo e o falsete de Keso: “À noite, à noite, à noite…”. Escutei silenciosamente. A faixa terminou e ele, no seu jeito simultaneamente contido e brusco, perguntou-me: “é do álbum, o que achas?”. Respondi que estava impressionado e falei-lhe na “À noite” de Valete. Sorriu: “Ya, também já pensei nisso…”. Um rápido click no rato pôs as colunas novamente a tremer com “RoofTops”. Desta vez não houve direito a pergunta e, assim que a faixa terminou, passei logo a ouvir “Defeito Sério” – “esta é sobre a minha passagem por Londres…”, foi a única coisa que disse, o tom cabisbaixo a denunciar a letra que se ouviria nos segundos seguintes. A mini-sessão de escuta terminou e começámos a trabalhar naquilo que nos tinha levado ali originalmente, eu ainda meio abananado pelo que tinha acabado de ouvir e com a certeza de que algo de extraordinário se preparava para sair daquele quarto.


 


Mas recuemos um pouco. Em 2012, escrevíamos que Keso, pese embora um bom álbum (Raios Te Partam, 2003, editado com apenas 15 anos (!)) e uma obra-prima com entrada directa no top 10 do hip hop português (O Revólver Entre as Flores, 2012), era ainda – muito injustamente – um nome enublado no hip hop português (ele que também lançou um trabalho exclusivamente de instrumentais dedicado aos seus rappers predilectos, Keso’s Epiphanies, em 2012). Cinco anos depois, essa circunstância, infelizmente, não se alterou muito, pese embora os concertos a norte e a sul do país (como é sabido, a centralização de que tanto se fala não é só ao nível político, mas também ao nível jornalístico e, sobretudo, das estruturas de promoção e agenciamento – fossem os Mind da Gap de Lisboa e hoje seriam uma banda presente em tudo o que é festival, não hajam dúvidas) e as colaborações que tem encetado com outros artistas, sobretudo os instrumentais produzidos para gente como Minus ou Nerve (no concerto de apresentação d’O PROCESSO de BWJ e Blasph no Porto, este último cantou um tema inédito do seu próximo disco cujo instrumental revelou ser da autoria de Keso).

Mas bom: se essas nuvens ainda pairam, se ainda cobrem o seu nome, KSX2016 bem pode ser o raio de sol definitivo a rasgar o céu. Não sendo propriamente um artista prolífico, Keso retira daí o seu mérito: ao contrário de artistas que editam e editam sem terem nada original ou especialmente relevante para mostrar ou dizer (mas é preciso pagar contas, claro, e essa é uma esfera que me merece absoluto respeito), ele é esse esteta que, quando aparece, rebenta, questiona, agita, coloca tudo numa nova perspectiva. Isto para dizer, e abreviando, que, depois d’ O Revólver…, KSX2016 é, importa dizê-lo com todas as letras, uma obra-prima que Keso, qual mágico, retira de uma cartola chamada MPC – instrumento, como é sabido, absolutamente fulcral na história e evolução do hip hop e explicitamente homenageado na capa do disco –, a que junta alguns “pozinhos mágicos” mais orgânicos (guitarras de João Vasconcelos e Leonardo Rocha). E Keso faz jus, acima de tudo, ao slogan auto-promocional que há muito escolheu para si, “Original Marginal”. Sim: Keso faz música num campeonato só seu, com uma sonoridade própria e idiossincrática (voltando a trabalhar com a electrónica já tacteada em O Revólver… e desenvolvida no seu álbum de instrumentais) e onde, mais do que rappar e cantar, usa e abusa da voz como elemento de composição absolutamente central na sua música, o que, complementado com uma noção de ritmo anarca, lhe permite rappar, cantar, declamar, fazer spoken word ou simplesmente “espingardar” bitaites. E tudo isto pode acontecer na mesma canção, sem que consigamos por vezes dizer com segurança qual o registo exacto em determinado momento. De resto, a utilizar a voz assim no hip hop português, de modo tão criativo, além do próprio Keso, só nos lembramos mesmo de Nerve, SP Deville, ProfJam ou Slow J.

KSX2016 é um disco urgente. Não só porque quebra um hiato editorial na carreira de Keso, mas também porque é o disco geracional que faltava ao Portugal do período “Troika”, o olhar crítico e reflexivo sobre os nossos últimos anos enquanto comunidade e enquanto indivíduos. A maioria dos artistas portugueses que têm cantado a crise têm-no feito a partir de um ponto de vista essencialmente interno, i.e., falando do país como ele está e de como é difícil nele (sobre)viver (caso paradigmático é, obviamente, “Parva Que Sou” dos Deolinda). Ora, nas primeiras canções de KSX2016, o olhar é de quem esteve (à data dos factos que inspiraram as canções) do “outro lado”, i.e., do português que, deparando-se com esse estado de coisas, se viu forçado a abandonar o barco, é dizer, a emigrar, relatando essa experiência na “terra prometida” que vira, afinal, pesadelo (“Saí de um ghetto para acabar num ghetto…” ouve-se, dolorosamente, em “Defeito Sério”). Como tanta gente que todos nós conhecemos do nosso círculo de familiares, amigos ou simples conhecidos (dos mais aos menos qualificados), Keso emigrou para Londres, sendo a partir dessa diáspora, mais concretamente a partir do exacto dia em que, com mais um colega, se despede da mãe no Aeroporto Sá Carneiro, que o álbum começa a um ritmo simultaneamente poderoso e comovente, furioso e tocante, raivoso e poético (o sample que se ouve a meio de “Defeito Sério” aponta bem o dedo aos culpados pelo estado do país).



Por sua vez, esta ideia de diáspora e da dor que lhe está associada só vai de encontro à identidade pessoal e artística que já conhecíamos a Keso de trabalhos anteriores, artista para quem a sua cidade, o sítio onde nasceu e cresceu, onde deu os primeiros toques na bola, tirou as primeiras passas ou fez os primeiros tags, é absolutamente essencial. Do Sá Carneiro levantamos voo para aterrar em “Bruce Grove”, o mesmo nome de uma das mais frenéticas estações de comboios de Tottenham, Londres, essa cidade de loners permanentemente vigiados pelo grande Big Brother (o “CCTV” ciciado que se ouve é o acrónimo para Closed-circuit television), essa metrópole “apinhada de gente jovem” a dormir “em casas que nem chegam a ser casas” arrendadas por landlords gananciosos para quem um corpo é só mais uma renda, um produto rentável, uma medida de acumulação de capital. É uma das mais belas canções do álbum, daquelas que nos tocam profundamente por nela reconhecermos uma geração inteira, a tal “geração mais qualificada de sempre”, amigos de sempre que partiram e que agora só vemos no Facebook ou, quem sabe, no Natal: “Se me vês a acenar a mano / Diz ao meu pai que eu o amo, diz à minha mãe que eu a amo / Se me vês a acenar a mano / Diz ao Porto que eu o amo, diz ao meu país que eu o amo”. É, também, uma canção intemporal e cujo teor importa reavivar constantemente para não nos esquecermos do que foi o período Troika e um primeiro-ministro que, por mais do que uma vez, recomendou aos seus compatriotas (professores, jovens em geral) a irem viver lá para fora.

Mas como “onde cabem corpos, cabem sonhos”, e como o sonho de voltar ao nosso país, à cidade que nos viu crescer (e onde nós nos vimos a crescer…), às pessoas que amamos, não deixa nunca de estar presente, Keso voltaria mesmo ao Porto (cidade onde hoje vive), regresso que coincide com a alteração da toada do disco. “RoofTops” é malha pesada, hino à autenticidade artística que, para quem já ouviu Keso a passar música, sabe que o que ele diz – “Eu compro discos de rap tuga e sou chato porque eu toco-os / Pista cheia ou vazia? Pagam-me o mesmo” – é absolutamente verdade, noites que podem ir de “Rymeshit Que Abala” (Chullage) a “Outro Nível” (Da Weasel). “I’m a clássico, fodei-vos!”, ouvimos e só nos apetece mesmo bater a cabeça contra a parede como sugere a simpática brasileira do sample lá atrás. Com “Underground” e “Então Paga”, forma-se uma “trilogia da autenticidade” (na senda, claro, do clássico “Eternamente em cena”), simultaneamente militante e comovente, combativa e poética (“Doutor, levo uma vida de merda, levo uma vida de merda, levo uma vida de merda, mas… / Não abdico”). Se, em “Underground”, Keso vai ao psicanalista para lhe contar os pesadelos que o assolam (deliciosamente corrosivo o sample da voz de Anselmo Ralph), em “Então Paga”, o rapper, acompanhado do sempre pesado e sempre inteligente Virtus (versos polissémicos embrulhados em múltiplos trocadilhos), vira o bicho kafkiano d’ A Metamorfose (e como aquele baixo inicial e as modulações electrónicas subsequentes jogam tão bem com o ambiente do livro…) que só conseguem arrancar do quarto pela contrapartida justa e devida (faixa em que, claro, ecoa a não menos reivindicativa “A partir de agora” de Sam The Kid).

Dissemos acima que, ao contrário da maioria dos músicos portugueses, Keso olha para o país a partir “de fora” (Londres, no caso), mas o certo é que há também essa magnífica faixa chamada “Insulto deliberado” em que o rapper, sem cair nos clichês do rap “de intervenção” (aliás, clichês são coisa que simplesmente não lhe “assiste”), ensaia uma visão cáustica do Portugal “diurno” de todos os dias. A faixa tem tudo para ser um clássico, desde logo pelo facto de rimar com a não menos clássica “À noite” de Valete (com Bónus), com a qual estabelece uma relação muito interessante: enquanto Valete e Bónus transmitiam a ideia de que a noite, enquanto tempo-espaço específico, era o palco dos “vampiros e canibais” que de dia estavam ocultos, que, enfim, à noite acontecia o que de dia era encoberto, o que Keso procura fazer crer, muito lucidamente, é que é durante o dia (e não durante a noite) que a corrupção, a hipocrisia e a ganância ocorrem plenamente, “às claras” (precisamente), como parte de um processo “normal” e socialmente aceitável comandado por gente supostamente idónea. Por isso é que Keso, desprezando a luz do dia, reclama a noite para ele e elege-a como período em que prefere viver, precisamente para não ter que se cruzar e se comportar como os visados, a quem insta para que se “Apaguem[-se] ao mundo e acordem cedo!”.



Mas KSX2016 não seria um álbum de quem é se o humor não marcasse presença. Por isso é que, depois do início atormentado e soturno, o disco fecha em toada divertida e bem-disposta, primeiro com “Escritor de interiores” (alusão óbvia a “Pintor de interiores”, clássico do hip hop português), onde Keso, acompanhado de Minus, discorre, com a mordacidade habitual, sobre o Porto transformado em fenómeno híper turístico e vencedor de tudo o quanto é prémio (“Como se trocar jardins por musgo / Na visão cosmopolita / Fosse uma incursão do Kubrick aos Capuchos”); e, depois, com “Gente e Pedra”, canção genial, inteligente e hilariante em doses iguais. Lembram-se de Sam The Kid desejar que “um roteiro coincida com no estrangeiro”? Pois bem, de uma perspectiva oposta, Keso esboça aqui o ponto de vista masculino sobre como as mulheres são iguais em toda a parte, as mesmas virtudes e os mesmos defeitos, os mesmos tiques e preocupações, os mesmos batons e os mesmos perfumes – e só mesmo alguém (homem ou mulher, tanto faz) de vistas muito curtas poderá, de facto, ver neste descomplexado e chavasqueiro comentário um “rasgo desmedido de machismo” (por nós, Keso nem sequer precisava de fazer essa ressalva). O beat é de pedir e chorar por mais, perigosamente viciante, e só nos lamentamos mesmo por Keso não meter mais o bombo e a tarola. O mesmo bombo e tarola que, pelo contrário, não nos importaríamos de ver retirados de “O medo” (faixa bónus só constante da edição física do álbum), momento lindíssimo em que Keso faz o que Slow J fez em “Cristalina”: só com a voz e meia dúzia de palavras, um piano e uma percussão minimalista em fundo, cria uma descomunal canção, misteriosa q.b., dessas que não mais nos abandonam.

Raios Te Partam (2003), O Revólver Entre as Flores (2012), KSX2016 (2016). Três álbuns, três clássicos oferecidos ao hip hop português de um homem que, ora em tom mais azedo, zombeteiro ou sarcástico, ora poético e sensível, convoca em si figuras artísticas tão próximas e tão distantes como Almada Negreiros, Luiz Pacheco, João César Monteiro ou José Saramago, com a particularidade de, ao contrário do que por vezes acontece com personalidades “endiabradas” e desalinhadas, nunca cair em niilismos gratuitos de espécie alguma, antes dizendo sempre exactamente o que pensa. Até à data, este é, a anos luz da concorrência, o disco de hip hop português de 2016.


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