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Dreams To Fill The Vacuum – The Sound Of Sheffield 1978-1988

Cherry Red / 2019

Texto de Rui Miguel Abreu

Publicado a: 05/02/2020

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Nas notas introdutórias de Dreams To Fill The Vacuum – The Sound Of Sheffield 1978-1988, Martin X Russian, que foi membro dos They Must Be Russians e editor da fanzine NMX, argumenta que foi em Sheffield que se inventou o pós-punk, não discordando do irónico cliché que garantia que nessa cidade se passou directamente do glam rock para o momento musical que se seguiu ao que começou por ser definido pelos Sex Pistols e pelos Clash sem nenhum período de transição. Mantendo a sintonia com essa ideia, Simon Reynolds explica, no capítulo de Rip It Up and Start Again que dedica aos Cabaret Voltaire, Human League e à cena de Sheffield, que tal como “o outro motor gémeo da revolução industrial no Reino Unido, Manchester”, também esta cidade se mostrou particularmente receptiva à “sombriamente futurística e electronicamente melhorada” sonoridade dos Pere Ubu e Devo.

Tanto Reynolds como os autores dos documentários Synth Britannia e Made in Sheffield usam a história de Sheffield e sobretudo a sua ligação à indústria metalúrgica como uma espécie de contexto conceptual para explicar a emergência de um particular som electrónico nessa cidade, um som personificado nas experiências iniciais de bandas como os Human League ou Cabaret Voltaire: “À noite escutavam-se barulhos trovejantes, provavelmente vindos das fábricas metalúrgicas, das forjas e martelos industriais. Sabíamos que vivíamos paredes meias com indústria pesada”, explica Richard H. Kirk, dos Cabaret Voltaire, em Synth Britannia enquanto Ian Craig Marsh, dos Human League, reitera poeticamente em Made In Sheffield que a paisagem acústica circundante resultante da presença da indústria funcionava como uma espécie de “batimento de coração, um metrónomo para toda a cidade”. Sheffield é neste último filme documental retratada como uma cidade “dividida entre o passado e o futuro” e terá dado a Martyn Ware, dos Human League e mais tarde dos Heaven 17, vontade de “matar o rock and roll”. Mas a verdade é que, por muito jeito que dê a esse tipo de narrativas mais romanceadas – “o futuro era um punhado de nerds de ficção científica de Sheffield que se reuniu em 1977 e só tocavam sintetizadores”, garante-se ainda em Synth Britannia –, a electrónica não expulsou totalmente as guitarras e o punk teve mesmo uma importante manifestação na cena subterrânea de Sheffield como resulta evidente da audição do trabalho de bandas como The Prams, 2.3, Repulsive Alien, Molody ou, Y e Rapid, quase todas documentadas no fantástico e exaustivo Sheffield Tape Archive que disponibiliza no Bandcamp o obscuro legado de algumas dezenas de bandas locais e que funcionou como uma das fontes para o retrato de uma era que esta compilação da Cherry Red agora propõe. Com reveladoras anotações para cada uma das faixas incluídas (e são 84 ao todo, divididas por quatro CDs), Dreams To Fill The Vacuum organiza o seu material cronologicamente: 1977-1981 para o primeiro CD, 1981-1982 para o segundo, 1982-1984 para o terceiro e 1984-1988 para o último. Claro que há omissões no alinhamento e talvez a mais gritante de todas – certamente uma questão de direitos de licenciamento – seja a dos Cabaret Voltaire, grupo cuja falta por aqui sentida é directamente proporcional à crucial importância que haveria de conquistar no panorama electrónico britânico. E há outras ausências notórias, certamente por idênticas razões, como a dos Comsat Angels ou até dos Vice Versa (colectivo que seria uma das raízes dos ABC e que em 2014 mereceu incrível retrospectiva na Vinyl On Demand). Mas há relevantes entradas para os Human League e Thompson Twins no primeiro capítulo desta história, para os Heaven 17, Clock DVA, British Electric Foundation (projecto paralelo de Martyn Ware e Ian Craig Marsh, dos Heaven 17) ou ABC no segundo, Pulp, The Danse Society e In The Nursery no terceiro e A.C. Temple ou Anti Group no derradeiro, para citar algumas das mais celebradas (embora não todas à mesma escala, pois claro) bandas por aqui representadas.

Claro que o retrato que Dreams To Fill The Vacuum apresenta pretende encaixar-se numa mais vasta narrativa musical e omite que os terrenos mais convencionais do rock por ali geraram, logo em 1977, os Def Leppard, mas essa narrativa tem de facto uma razão de ser porque, como resulta óbvio do cruzamento de diferentes retratos da cidade nessa era que se seguiu à explosão punk, o tédio e a falta de oferta cultural, por um lado, e a ampla disponibilidade de espaços criada pela recessão da indústria, por outro, combinaram-se para alimentar uma cena cuja urgência encontrava na então nascente tecnologia electrónica uma forma de escape quase imediata. Philip Oakey, o carismático líder dos Human Leqgue, admitia, em imagens de arquivo usadas em Synth Britannia, que o seu irmão ainda lhe tentou ensinar a tocar guitarra, mas que a sua descoberta de um dos primeiros Korgs acessíveis em termos de preço lhe ofereceu uma solução muito mais rápida para a sua necessidade de expressão: “bastava carregar num botão e começavam logo a sair sons interessantes”. Na verdade, Sheffield não pode, no que diz respeito ao mais vasto contexto musical ou às ofertas tecnológicas então disponíveis, reclamar uma experiência diferente da de outras cidades que seguiram caminhos diferentes (pense-se em Bristol, por exemplo, cidade com um tecido social muito diverso do da capital do aço inoxidável e que por isso mesmo incorporou a cultura de sound systems e o dub como bases da sua identidade sónica), mas a atmosfera da própria cidade era diferente, com grandes bairros operários de arquitectura brutalista que funcionavam como contraponto visual à já de si distinta paisagem sonora com que a indústria envolvia os seus habitantes: “Era o espírito da época”, explicava Mark White dos Vice Versa à revista Electronic Sound em 2017. “Havia um certo glamour, a sensação de que o futuro era realmente excitante, algo que podíamos ver com os nossos próprios olhos. Há um enorme bairro de arquitectura brutalista em Sheffield chamado Park Hill. Na época era o maior da Europa. E eu costumava passar lá todos os dias. E sempre o achei épico e belo”. Na mesma revista, Adi Newton dos Clock DVA, refere os Broomhall Flats onde ele mesmo e Martyn Ware dos Human League viveram a dada altura, outro exemplo de arquitectura de concreto do pós-guerra que dava a todos estes então jovens agitadores a sensação de estarem a viver dentro do cenário de um dos livros de J.G. Ballard, escritor que assinou romances como The Atrocity Exhibition (1970), Crash (o livro de 1971 que haveria de inspirar o filme de David Cronemberg com o mesmo título ou o single dos The Normal com que Daniel Miller deu início ao catálogo da Mute) ou ainda Concrete Island (1974), obras que funcionaram para esta geração como as de Jack Kerouac ou Aldous Huxley tinham funcionado para as gerações anteriores. A “tempestade perfeita” que desembocou na cena musical de Sheffield resultava portanto de uma cultura industrial particular, de uma moldura arquitectónica muito específica e de um contexto económico desfavorável que deixou a geração filha dos operários da cidade sem nada para fazer e com muitos espaços vazios para preencher: Dreams To Fill The Vacuum (título de uma canção dos I’m So Hollow que cumpre todos os requisitos pós-punk e que é o terceiro tema do alinhamento desta antologia, logo depois dos Human League e They Must Be Russians) é, portanto, a tradução perfeita de um impulso criativo que todos os protagonistas da cena descrevem como “incontornável”. E para lá do que o punk mostrou ser possível fazer com guitarras impôs-se o que caixas de ritmos primitivas, sintetizadores baratos, efeitos e gravadores de fita permitiram a projectos como os Mein Glas Fabrik, Human League, De Tian, Heaven 17, Vision, Surface Mutants, Clock DVA, British Electric Foundation, U.V. Pop, The Danse Society, In The Nursery, Ipso Facto, Scala Timpani ou, entre outros, The Anti Group: experimentarem sem regras com música que cruzou fronteiras entre o mais linear synth pop e a mais desafiante cena industrial, entre um pulsar que a tecnologia ditava ter pontos de contacto com o que outras pessoas faziam do lado de lá do oceano em cidades como Detroit ou o que, um pouco por toda a Europa, se ia disseminando em cassetes com capas fotocopiadas. Foi sobretudo esta corrente mais comprometida com a electrónica que lançou as bases para que, no ano que se seguiu aquele que funciona como última baliza nesta compilação – o subtítulo, relembre-se, é The Sound of Sheffield 1977-1988 –, surgisse em Sheffield uma editora que, mais de 30 anos volvidos, continua a apontar o caminho do futuro: a Warp. Mas essa é uma outra história.

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