CD / Digital

Perigo Público & Sickonce

Porcelana

Kimahera / 2019

Texto de Manuel Rodrigues

Publicado a: 22/11/2019

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Longe vão os tempos do mítico freestyle na discoteca Black Jack, em Vilamoura, ao lado de Sam The Kid. Ou até da participação na mixtape Dream Team que cimentou a sua destreza no campo das palavras improvisadas. Na altura dizia-se que Perigo Público seria incapaz de vingar em álbum e que o seu destino estaria para sempre fadado aos limites do freestyle. O palpite não podia ter sido mais errado. E hoje, à data da edição do segundo episódio do projecto colaborativo com o produtor também ele algarvio Sickonce, Perigo Público não poderá sentir-se mais realizado. Não só pela bofetada de luva branca que vem dando desde Jeans Monroe (2014), a estreia discográfica, mas por este Porcelana arriscar-se a entrar para a lista dos melhores álbuns de hip hop nacional de 2019, dado o cariz conceptual proposto e a qualidade alcançada no produto final (ninguém nos tira da cabeça que a dica para os cépticos que juravam “não vais ser ninguém”, presente em “Último Voo”, tem o seu quê de dedicatória a essa profecia falhada).

Porcelana começa com uma declaração de interesses. Na introdução de “Rosa Parks”, tema de abertura que pede emprestado o nome da activista negra que em 1955 se recusou a ceder o seu lugar num segregado autocarro em Montgomery, no Alabama, ouvem-se frases como “ninguém nasce com nenhuma predisposição genética para ser empregado de shopping ou pedreiro de segunda”, “quem falou que esse lugar no autocarro não é para ti?” e “vai lá e traz a nossa dignidade de volta”. “Rosa Parks” é um claro manifesto em toada Black Panther Party, impulsionado por um preâmbulo que inspira um messias revolucionário. Esse guerreiro chama-se Perigo Público e traz nas suas palavras a mensagem certa para restabelecer a justiça, partilhando ao microfone versos como “das senzalas às barracas, cidades foram tomadas”, “nem pretos nem brancos, nós somos pela mistura” e “a raça de um homem não se vê na cor da pele”, coadjuvado pelo refrão de Edna Oliveira, “eu vim mudar o mundo porque lá no fundo só eu sei, que cada carapinha é uma coroa de rei”. Esta parece ser uma temática transversal a uma boa percentagem do álbum. Em “OTN”, acrónimo para “Outro Tipo de Nigga”, tema onde se sente a mestria de Sickonce na produção, com vários elementos sónicos a serem adicionados ao longo do instrumental, Perigo Público volta a puxar o assunto com as palavras “cuspo balas até que senzalas sejam iluminadas”. Pouco depois, em “O Ano da Morte de Amaru Shakur”, um dos singles revelados ao público antes da edição do disco (o outro foi “Bênção”), o rapper volta à carga com a oração a cappella introdutória, “olhai por nós Pai, rogai por nós, no dia em que os céus escurecerem como a pele dos nossos avós/ e que a água que cai dos céus se abata sobre o inimigo, como as correntes dos escravos que sucumbiram nos campos de algodão e de trigo”, reforçada mais à frente com “faz com que cada negro se transforme num novo 2Pac, e que lute pelo seu povo, pela sua família e pela sua comunidade” e “não deixes que me tornem mais um negro à hora errada no local errado”. Se no álbum anterior Perigo Público centrava as suas energias na realidade que lhe era mais próxima – Algarve, Quarteira, do Bairro dos Pescadores à Abelheira e da Asa Branca à Checul, relatando questões relacionadas com a pobreza, criminalidade e toxicodependência –, em Porcelana o panorama parece ter sido alargado a uma dimensão global, começando na evocação do episódio de Rosa Parks que mudou o mundo (a activista é reconhecida pelo Congresso dos Estados Unidos como a “mãe do movimento de liberdade”), passando pela menção a heróis universais como Nelson Mandela (em “O Ano da Morte de Amaru Shakur” afirma que “desde a morte do Madiba que a raça anda meio à deriva”) e acabando em “1974”, canção que conta a história de Severino, um ex-combatente da Guerra Colonial que aproveitou o ponto final no conflito para realizar um sonho de infância: conhecer Portugal, deparando-se para sua inglória com uma realidade completamente diferente da que idealizara. Porcelana explora toda esta fragilidade humana, procurando fortalecê-la com as rimas coesas de Perigo Público e os instrumentais sólidos de Sickonce.
  Mas não é só de questões raciais e desigualdades sociais que Porcelana trata. Se em temas como “Ícaro” e “Bênção” a família surge em plano principal, do arrepio da dica “eu nunca fui romântico, flores só para a campa do meu pai” ao conforto de “eu nunca quis ser rico, eu só pedi a Deus, cuida bem da minha família e protege os meus”, existe em “GOATS” e “Pratos Limpos” um exercitar de rimas em temática livre. Contudo, é em “Do Fim Do Mundo Com Amor” que nos chega uma das abordagens mais interessantes do disco. A canção, que conta com belíssimos solos de saxofone no refrão e no final, explora uma paixão que prevaleceria mesmo em cenário apocalíptico (“enquanto o Trump tenta acabar com o mundo, eu estou a ver se passamos o resto da nossa vida juntos”), alimentando um invejável egoísmo amoroso (“beija-me como se eu fosse o último homem na Terra, bora fazer amor enquanto eles fazem guerra”), rematado com uma tirada de mestre: “o herói deles usa capa, o nosso usa camisinha”. Uma espécie de “faça amor, não faça guerra” transformado para “fazemos amor mesmo que o mundo esteja a acabar”. Foquemo-nos agora na produção. Sickonce, também conhecido como Gijoe, sempre nos habituou a instrumentais arrojados, quer a bordo dos Tribruto, colectivo que partilha com RealPunch e Kristóman, quer nas produções pré-Porcelana, como servem de exemplo as que assinou em 1991. Todavia, é em Porcelana que alcança o patamar mais alto nesse campo – e tudo graças a pormenores que vão muito além da sequenciação de bombos e tarolas e da construção de melodias. Tome-se como exemplo “Perfeição”, a derradeira música do álbum, que conta com a participação de Sara Espírito Santo (a vocalista já havia marcado presença em 1991). O pitch shift na voz de Perigo Público é sublime e concede ao tema a carga dramática necessária para casar, lá está, na perfeição com os acordes de piano. Mais atrás, em “O Ano da Morte de Amaru Shakur”, Sickonce altera a base instrumental e surpreende com uma recta final meio tribal meio electrónica que se adapta na perfeição ao arranque com batida afro de “Bênção”, que pede emprestadas as vozes de Edna Oliveira e Elísio Pereira. Destaque ainda para o trap de “GOATS”, o percurso irrequieto de “Pratos Limpos”, a inspiração afrohouse do tema-título (onde Perigo Público diz ter vindo “acabar o que o Zeca Afonso começou), o beat gravalhão de “Ícaro”, o baixo sintetizado de “Último Voo” e, por fim, “Trash Gaveto”, música em toada rock que convida os putos a trocarem o calçado da Gucci e da Prada pelos clássicos Dr. Martens e “correr tudo à biqueirada”. Um bom exemplar para arrumar na secção de canções para incendiar concertos. Por fim, “Pretinho da Benetton”, tema que se liga directamente aos ritmos brasileiros e que mostra Perigo Público a rimar num tom mais despreocupado e festivo, trazendo à memória, com as devidas distâncias técnicas e estéticas, um pouco mais pela ideia de ser uma canção com uma textura diferente das restantes do álbum, o single “Bossa 9”, de Gabriel o Pensador. Por entre os metais alegres e os baixos carregados de groove, onde é possível ouvir o rapper quarteirense a querer juntar “betinhas de Cascais com neguinhos das favelas” e a lançar frases como “terceira guerra mundial, só se for de almofadas”, aterra um verso pouco comum no seio hip hop mas importantíssimo para uma definitiva mudança de mentalidades: “homem com homem ou mulher com mulher, a vida é vossa cada um vive como quer”. Nem mais. Belo disco para acabar o ano em grande.

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