LP / CD / Digital

Luca Argel

Sabina

Edição de autor / 2023

Texto de João Mineiro

Publicado a: 23/02/2023

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Como se “calam todos os tambores”? Como se movem “sombras de montanhas em silêncio”? Entramos em Sabina, o quarto álbum de Luca Argel, guiados pela intenção poética e com um irresistível desejo de descobrir com que fios se coserá este seu novo enredo. E se em Samba de Guerrilha, a que nos rendemos em 2021, a inauguração se dava com a recriação do clássico “Samba do Operário”, no caso de Sabina a única certeza da abertura é o desafio de uma poesia intrigante e que exige disponibilidade, habitando em composições onde se nota que Luca Argel terá caprichado nos arranjos e na orquestração sonora. O mistério prologa-se, portanto, de “Bandarra” para “Aldeia”, temas absorventes e sem direito a pausas, graças à subtileza do teclado de Pri Azevedo, que dirige transição entre as duas músicas iniciais. 

Aqui chegadas, só à terceira faixa se apresenta Sabina, a personagem principal desta trama, e que Luca Argel conheceu num texto de Luiz Antonio Simas, que ao longo do álbum é lido e interpretado por Nádia Yracema, atriz e cúmplice na digressão de Samba de Guerrilha, e uma das vozes mais relevantes e exigentes do teatro português contemporâneo (veja-se, só a título de exemplo, as suas recentes empreitadas com Aurora Negra, Outra Língua ou Cosmos). É, então, pela voz de Nádia que Sabina se revela personagem intrigante, “imortalizada na cultura das ruas” e que “vive na encruzilhada em que mito e história se encontram”. Que história é esta, a de Sabina? E que “cultura das ruas” é esta, que a imortalizou? 

Sabina era uma quitandeira, vendedora de laranjas, a quem as ruas do Rio de Janeiro garantiam sustento. Até que um dia, de personagem de rua se fez símbolo político, vendo-se envolvida num inusitado episódio histórico, ocorrido nas ruas cidade, em 1889, o ano do derrube da monarquia. Nesse dia, os estudantes de medicina, “republicanos até aos ossos”, alvejaram a carruagem do visconde de Ouro Preto, “figurão do império”, com as laranjas de Sabina. De um lado, a branca elite estudantil e republicana. Do outro, a branca elite monárquica e imperial. Quando chega a polícia, quem pagará a conta do desacato? Sabina, claro, mulher negra que apenas estava a trabalhar e que se viu expulsa do ponto e com as laranjas apreendidas. Perante o absurdo, os clientes de Sabina juntaram-se para um protesto que percorreu o centro, “um Carnaval fora de época nas esquinas cariocas”, ornamentado “com laranjas espetadas em bengalas”, com um estandarte com uma coroa de bananas e leguminosas e uma faixa dirigida ao “exterminador de laranjas”.

Deixemos o desfecho para a escuta, que para se conhecer os contornos da história é preciso que se lhe sigam os rastos, percorrendo um álbum que se faz narrativa não só a partir dos textos que evoca, mas também do profundo sentido imagético que convoca – não é por acaso, aliás, que o álbum vem acompanhado por uma banda desenhada, da autoria de Allan Matias, que também assina a cuidadosa arte da capa do álbum preenchida a cores quentes. Diga-se que este é o trabalho mais solar assinado por Luca Argel, ainda que, paradoxalmente ou não, o cantautor não resista a mobilizar as suas criações para a provocação da nossa história colonial, esclavagista e dos seus reflexos num presente onde ainda parece ser preciso explicar que pedir desculpas não dói. Medo do anacronismo? Calma, que como se vaticina na irresistível “Nada Pessoal”, “quem sai em defesa sem acusação tem o rabo preso ou não prestou atenção”. 

A provação está sempre lá, tem estado sempre lá, como traço definidor de uma obra que se recusa a ser uma cópia de si própria. É por isso que se, em “Samba de Guerrilha”, o convite era dirigido à escuta de uma ampla narrativa histórica, feita exercício de pedagogia cultural em torno das políticas do samba, em “Sabina” o olhar regressa aos enredos da vida quotidiana, um lugar onde Luca Argel também já mostrou que consegue ser muito feliz. E é nesse regresso ao quotidiano que Sabina se faz símbolo de encontros e desencontros, de becos e esquinas, solidariedades e conflitos, imponderáveis vários que baralham as expetativas e o ritmo indizível dos acontecimentos. Sabina torna-se, na voz de Luca Argel, e mais uma vez, personagem principal do que Luiz Antonio Simas chamou de “corpo encantado das ruas”, terreno farto e fértil onde a história se disputa e se constrói, e onde a política pode acontecer não importa onde e ser protagonizada não importa por quem. Como captar, então, os fios das estórias que se tornam invisíveis às “grandes narrativas históricas”? Como observar a invisibilidade do quotidiano que, tal como as sombras das montanhas, se move mesmo quando disso não damos conta? 

Uma das respostas que o disco oferece nasce da própria relação narrativa com o texto. Em vez de lido de início ao fim, em tom demonstrativo, e mimetizando códigos da representação da história – sempre com a sua cronologia sequencial de “princípio”, “meio” e “fim” –, o enredo de Sabina vai-se contando e cantando, a pouco e pouco, a partir de vários ângulos, personagens, perspetivas, ações, temporalidades, avanços, recuos e interrupções. A forma da narração demonstra, por si só, que a vida de uma quitandeira pode ter tanta ou mais complexidade narrativa que a de uma outra qualquer personagem de “relevo histórico” ou de “patente institucional”. Afinal de contas, no dia de uma vendedora injustiçada pode caber todo o passado, presente e futuro do Brasil.

A outra resposta que Sabina ensaia é a de que a visibilidade, para ser transformadora, só pode emergir na sua inescapável forma poética – partilha do sensível que vive tanto do texto, como da matéria sonora. É assim que, por exemplo, a aparente contenção de “Gêmeos”, uma das mais bonitas álbum, ganha forma na dualidade de um sujeito poético que dialoga entre “dois demónios rivais” e de “vozes iguais”, um que “vai para o botequim, outro à casa dos pais”, “um estuda latim, outro só lê jornais”, “um do fundo do mar, outro da beira do cais”, “um que não quer começar, outro que quer dez finais”. 

Há várias vozes que se decompõem, ou que se multiplicam, na poesia de Luca Argel, e talvez seja isso que lhe permite olhar para cima – onde “o chumbo que fura o tijolo nasceu de uma estrela” (em “A Bala e a Estrela”) e em que a “chuva não molha quem vive sob as nuvens” (em “Sabina”) – como a mesma imaginação de quem olha para baixo – onde “o ferro das jaulas pertence ao centro terra” (em “Bala e Estrela”); em que o “corpo que treme” vai “manso, fundo, frio, rumo aos altíssimos corais” (em “Lampedusa”). Olhares múltiplos, por vezes mais contidos, onde a sensibilidade de Pri Azevedo hipnotiza as mãos que partilham o mesmo calor e aquecem o sangue todo da mesma cor (em “Sangue e Pão”); outras vezes mais expansivos, desafiados pelo irresistível groove da bateria e percussões de Cláudio César Ribeiro, que precipita a dança enquanto se tenta alcançar as laranjas que voam nos ares e as outras que caem no chão (em “Sabina”). Olhar para cima, olhar para baixo, pisar matéria terrena, imaginar o porvir. Afinal de contas, e citando novamente Simas: “As ruas também podem brincar com os céus”. 

Muitos motivos, muitas possibilidades, num disco detalhadamente conceptual, onde se conjugam diferentes sonoridades afro-brasileiras eletrificadas, cuja herança é colocada em diálogo com tonalidades rock, com um funk de sabor sambista, por vezes de travos psicadélicos, e onde algumas composições também lembram outras Áfricas (ninguém se espantaria, por exemplo, se Bonga cantasse em “Lampedusa”). E o samba, claro, que Luca homenageia sempre que o reinventa e rearranja. Só a olhar para o futuro se constrói uma história de amor.

No caminho das histórias, nos enredos do quotidiano, na disputa das invisibilidades, tudo se encaixa, articula e dialoga na narrativa de Luca Argel, um dos músicos mais comoventes, desafiantes e inventivos com quem temos o privilégio de partilhar este tempo que pode ser nosso e os desafios desta música que, por entre demasiados desalentos, nos vai restituindo o direito à esperança. E quão dela precisamos.


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