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Texto: ReB Team
Fotografia: Pedro Jafuno
Publicado a: 11/07/2023

Um diálogo entre o som e o espaço que o circunda.

Faixa-a-faixa: Vandoma de Ricardo Nogueira Fernandes explicado pelo próprio

Texto: ReB Team
Fotografia: Pedro Jafuno
Publicado a: 11/07/2023

Já foi possível lê-lo por estes lados através da rubrica Diálogos entre som e espaço, bem como também já tínhamos escutado a sua música em projectos como PURGA ou BLU▪BLAU▪BLEU▪AZUL. Em Março deste ano, apresentou-nos o seu mais recente Vandoma, um conjunto de 14 trilhas que mereceu a atenção do Colectivo Casa Amarela, que ficou responsável pela edição do mesmo. Após uma primeira e breve entrevista sobre esse trabalho, o autor volta às páginas do ReB para o dissecar ainda mais a fundo, e começa por fazer um apanhado geral do disco:

Vandoma é uma viagem através de espaços da cidade do Porto, mas também é uma viagem através do tempo. Da minha história pessoal na cidade, da história da cidade e uma reflexão acerca da minha história nesta cidade. Foram essencialmente compostas nos regressos a casa após os chamados passeios higiénicos, onde me confrontei com os mesmos espaços que conhecia tão bem e que estavam irreconhecíveis nas suas vivências ou até nas suas dimensões. Não são sons que evocam determinado espaço, mas os sons que para mim caracterizam esses espaços, que podem ou não ser coincidentes com a percepção do outro.”

Prestes a protagonizar uma apresentação ao vivo na Socorro — o concerto na loja portuense está marcado para amanhã, 12 de Julho, pelas 19 horas —, Ricardo Nogueira Fernandes aborda agora cada uma das 14 faixas que integram o seu novo projecto a solo.


O Modernismo de 24 de Agosto inicia a viagem na escola primária. É um nascimento. Lento, com tempo para respirar. Rodeei a escola à procura do som do recreio. Estive para desistir, mas uma manhã tive o privilégio de apanhar a hora certa. Passam duas pessoas. Devo estar a monitorizar o barulho da escola, dizem.


Palácio vaporoso é êxtase adolescente. São rajadas de euforia cortadas por silêncios, hesitações e interrupções, culminando em crescendo. Os jardins do Palácio de Cristal trazem-me à memória tardes de chuva. Não chovia. Fui à gruta, cheia de simbolismo. Lá cai água de forma ininterrupta. Demasiado próxima do parque infantil, acabando o som da água misturado com o das crianças? Talvez, mas ajuda a trazer reminiscências da música anterior.


Nevoeiro de Gólgota apela ao cerrado nevoeiro que encontrava pelas manhãs, quando chegava à faculdade. É heterogénea, tal como a minha vivência naquele espaço. A faculdade serve de muralha à estrada, a Norte, e abre-se a tudo o que vem de Sul. Apesar do rumor da estrada, há aves nas árvores, há rio. Há um baixo grave e cheio para trazer a matéria atmosférica à terra. A neblina dissolve-se para mostrar a vista até ao mar.


Velha Ponte Nova é um rasgo na pele. A consequência da vivência nesta rua, não por culpa da rua em si, ou do contexto dela. É uma ferida mal cauterizada que ainda perdura. É um som árido que procura um espaço árido. A rua é estreita. É essencialmente em granito e traz rudeza ao som. A passagem dos carros sobre os paralelos agride ainda mais. Quero desconforto. E, pela primeira vez nessa rua, sinto-me inseguro. “Olhe, amigo!”. Guardo calmamente o material na mochila e desço à Mouzinho da Silveira.


As gingko das Galerias apelam à Rua das Galerias de Paris, onde brincava muito em criança quando a minha mãe tinha lá o café. Volto na adolescência para beber copos no mesmo café. Há rotinas, repetição e quebras. Conversas de gozo, despiques, cães a ladrar. O som, em loop descoordenado, corta e é recortado pelos sons na rua. Tentei levar ao extremo a plasticidade que queria no som exterior.

O ácer do Vitória em Ácer cobria o logradouro do café de verde, de amarelo, de vermelho, de sombra, de luz. Local de festa, de encontros e de despedidas. É uma despedida do Café Vitória. Não há espaço. Só silêncio. Há luto.


Catedral de Arca D’Água é um presságio de melancolia. Espaço de romarias, de passeios, correrias e de desencontros. Aqui a voz ocupou mais espaço. Em jeito de lamento, liberta-se um pouco e sobe um estrato. O trânsito rodeia o jardim/praça. As ogivas das árvores recebem o som pousado sobre o asfalto. O som procura atingir uma dimensão sacra para fazer jus a esta nave em quadrado. A cidade funciona. Há recolha de lixo.


À sombra de Sá da Bandeira dilui o tempo. Numa coincidência beatífica, há gotas de água que caem de uma varanda e, descompassadas, dialogam com a percussão digital igualmente descompassada que sai da JBL. O som enche para preencher, para tomar lugar e espaço. Há pessoas sem tecto, mas com lugar que é seu. O som esvazia e dá lugar às cordas que se tentam entender entre si, sem efeito. As rodas sobre o paralelo ecoam no átrio do Edifício DKW.


O spleen de Rodrigues de Freitas é tentativa de evocação baudelairiana ao sobrevoar esta avenida num voo opiáceo interrompido por francófonos a saltar e a dançar. A música cala-se para dar lugar, a tempo, a uma ponte para a voz. Uma curta intervenção antes do som composto voltar a baixar para deixar ouvir mais o som não composto.


Os melros do Campo Lindo existem ao longo da faixa. Existem no confinamento. Um estado mental a degradar-se progressivamente. O som varia consoante as alterações de humor. Culmina no som em saturação máxima, sem escapatória, libertando-se no 600 a subir a Rua da Lapa, rumo a casa.


Gaveto e neblina são duas realidades de uma vida nova. Trompete solitário da avenida. Um sonho. Paixão. Sensação de esvoaçar etéreo. Uma noite que se torna numa manhã. Uma parede que é uma grande janela. O compasso toma o lugar do descompassado. Os graves tomam o assento desconcertado do compassado.


Da Fontinha vê-se o mar e os sinos da Lapa, constatei num passeio. No título vêem-se. Na música ouvem-se. Na música ouve-se um fim de tarde. Nas ruas vêem-se gatos no muro. Para lá do muro vê-se a cidade. Do alto. Uma música que é um novo olhar sobre uma música acaba num prenúncio de melodias mais limpas. Há cordas, clarinete e gaivotas. Dizem-me que à noite lá há muitos morcegos. Perguntam-me se os morcegos fazem barulho.


Requiem na Rua da Estação é tristeza, perda, lamento. É despojada. São violinos levados à condição de violoncelos. As cordas ressoam na betonilha do passeio, no chassis dos carros e no granito das cantarias. A rua surge em trechos entrecortados, mal cortados. A melodia atropela-se com a voz. As lágrimas não me deixam ouvir, sentado na soleira fria.


Ode a Iemanjá (Nortada) é um espaço imaterial. É inconstante e em contínuo movimento. É inspirar água. É Porto além Porto.

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