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Texto: ReB Team
Fotografia: Morgana de Castro
Publicado a: 17/03/2023

Um mapeamento sónico da cidade do Porto.

Ricardo Nogueira Fernandes: “Vandoma surgiu como um cliché que pode definir a minha relação com a cidade do Porto”

Texto: ReB Team
Fotografia: Morgana de Castro
Publicado a: 17/03/2023

“Vandoma é nevoeiro, é chuva, é luz branca, é granito. Vandoma é Portugal, é França, é Inglaterra. Vandoma é praias de Gaia, é Serra de Valongo, é Cabo do Mundo. Vandoma é santa padroeira.”

Foi assim que Ricardo Nogueira Fernandes nos apresentou o seu mais recente projecto através de uma missiva que aterrou há dias na nossa caixa de correio digital. Com edição prevista para o dia 31 de Março (a pré-venda já decorre no Bandcamp), Vandoma evoca o genius loci de 13 diferentes locais da cidade do Porto ao longo de 14 faixas tocadas e imortalizadas nos respectivos espaços, dos quais absorve, também, as suas paisagens sónicas.

Em 2019, o músico e produtor arrancou com o projecto ∩ e estreou-o com o EP PURGA, já depois de ter colaborado com a nossa publicação na rubrica Diálogos entre som e espaço. Nos anos que se seguiram, participou nas recolhas sonoras para o projecto AcustiCidade: (Re)Fazer histórias nas Parretas, esteve ao lado de Benjamim Gomes no cine-concerto BLU▪BLAU▪BLEU▪AZUL e contribuiu para a banda sonora de Raticida, de João Niza Ribeiro, peça visual que conquistou o Grande Prémio no Cork International Film Festival’22, na Irlanda.

Antes de subir ao palco da Rua das Gaivotas 6, amanhã em Lisboa, para apresentar este seu novo Vandoma (num duplo evento que conta também com uma actuação de Louis Wilkinson), respondeu a cinco perguntas lançadas pela nossa redacção e ajudou-nos a descodificar este mapa de uma cidade que também se escuta.



A que se deve concretamente a escolha de Vandoma enquanto título deste mapeamento sónico pessoal da cidade do Porto?

Vandoma surgiu como um cliché que pode definir a minha relação com a cidade do Porto. Nossa Senhora da Vandoma, nome de origem francesa, é uma figura feminina, santa padroeira da cidade, apesar do S. João ser mais conhecido por causa das festas. Não posso negar que é também uma provocação à mudança da Feira da Vandoma do centro para uma zona limítrofe da cidade, com menos condições e proximidade. A mudança da Feira da Vandoma – ainda que já tenha sido organizada em outros locais da cidade -, surge na senda de uma constante perseguição às heterotopias, espaços em que permitem uma indefinição, uma simultaneidade de funções e convivência heterogénea. Vandoma é um termo que agrega esta tentativa de dar voz a certos espaços da cidade com que tenho uma relação bastante emocional.

Uma das peculiaridades deste registo é a imperceptibilidade de algumas das suas fontes auditivas: embora a presença de recolhas sonoras do quotidiano seja bastante evidente, existem certas evocações urbanas e industriais que nos questionam até que ponto são autênticas ou simplesmente replicadas por sintetizadores. O recurso a field recordings é mais alusivo que predominante?

Em certos momentos, a música desaparece para dar lugar ao espaço, quando se justifica, como durante a gravação de “O Spleen de Rodrigues de Freitas”, em que um grupo de turistas francófonos passou a saltar e a cantar. A música teve que se calar e deixar ouvir o espaço. Ser humilde perante o contexto que lhe deu fruto.

A única música que não tem espaço é o “Ácer do Vitória”, porque o Café Vitória fechou antes de ter tido a oportunidade de fazer as gravações. Cheguei a pensar em retirar a faixa. Mas há música e não há espaço, em jeito de luto pelo espaço. Isto para dizer que abordei os field recordings como um elemento plástico, com cortes abruptos, paragens e hesitações. Um bocado como a linguagem da própria música, confundindo-se intencionalmente um elemento com o outro.

A base do álbum é processamento de um violino emprestado (que também serviu de base ao “SCHULD”), um clarinete barroco e um pequeno sintetizador analógico. Depois andei pelos sítios respectivos com uma coluna bluetooth a tocar e a gravar cada música, que acabou contaminada pelo que se estava a passar a essa hora, nesse espaço, o que deu lugar a algumas coincidências bastante inesperadas. Quando estava a gravar perto da minha antiga escola primária, houve pessoas que pensavam que eu estava a monitorizar o barulho; ou, na Fontinha, fui interpelado por uma senhora a perguntar se os morcegos se ouviam, que eu devia voltar lá mais tarde, que havia muitos morcegos; ou na Rua Ponte Nova, onde vivi uns anos na adolescência, tive que interromper a gravação por me sentir inseguro. Alguns desses momentos ficaram registados e fazem parte das músicas.

Na tua perspectiva, “Vandoma é ambient ruidoso, como o Porto.” Porém, é possível experienciar passagens mais serenas em certos momentos do disco. Por entre o frenesim típico da vivência numa metrópole, que pontos contemplativos conseguirias destacar na cidade do Porto? 

Não é algo taxativo. Em 2020 mudei-me para a baixa e, durante um dos confinamentos, ao percorrer a Rua Formosa, uma das artérias mais fustigadas pelo trânsito rodoviário e difícil de fazer em percurso pedonável, tornou-se surpreendentemente agradável. Até cheguei a ouvir galos a cantar. Estando longe de romantizar esse período, que foi terrível para mim e para todos, foi uma demonstração do quão volátil é a definição de um espaço sereno numa cidade em constante mudança, como de resto deve ser uma cidade. Algumas das composições foram iniciadas após esses passeios, numa cidade que parecia um espaço pós-apocalítico, distópico, em locais que me eram bastante familiares e que pareciam completamente diferentes, até nas duas dimensões. E nem é preciso ir a esse extremo. Há locais que, dependendo da altura do ano, ou mesmo da hora, são quase antagónicos. O tempo também tem efeito, como é natural. E quanto melhor a qualidade dos espaços, mais flexíveis eles são. Lembro-me de, na infância, brincar na Rua da Galerias de Paris, onde a minha mãe tinha um café, e de voltar na adolescência, no início da movida da baixa.

O termo “ambient ruidoso” é em jeito de piada, visto que o género consegue abarcar sonoridades que vão muito para além da música de fundo.

Em 2021, o projecto AcustiCidade: (Re)Fazer histórias nas Parretas, que procurou fazer uma caminhada sonora na urbanização das Parretas (Braga), contou com a tua participação na respectiva oficina de captação sonora, cuja sonoplastia fora assumida por Pedro Augusto, que masterizou Vandoma. De alguma forma este disco foi influenciado pelo projecto em causa?

Diria que essa oficina foi o culminar de um processo iniciado com uma outra oficina no Mosteiro de Tibães, com o Lawrence English, onde foram discutidos os conceitos de audição activa, ou radical listening, cuja reflexão política me entusiasmou bastante. O som tanto pode ser um auxílio ao descanso como ser utilizado como arma. Esse contexto motivou-me a refletir sobre o assunto de forma mais sistematizada, o que levou a ter feito a proposta ao Rimas e Batidas para escrever os Diálogos entre som e espaço. O Pedro Augusto foi um dos visados num dos ensaios. A forma como ele aborda as gravações de campo, sob um ponto de vista sociológico, agrada-me bastante. Nenhuma expressão artística é neutra e este caso não é excepção. Além de que sou grande admirador do trabalho dele como músico. 

A apresentação de Vandoma ocorrerá na Rua das Gaivotas 6, em Lisboa, no dia 18 deste mês, com cenografia de Rossana Ribeiro. O que podemos esperar desta colaboração audiovisual? E já existe alguma data em mente para apresentar o disco na localidade que o inspirou?    

Com excepção do BLU▪BLAU▪BLEU▪AZUL, as performances de são mais viscerais. Apelam ao instinto. Em nome próprio tenho desenvolvido uma sonoridade que se coaduna com uma dimensão mais cénica.

Sendo ambos arquitectos de formação, seria inevitável que a nossa visão mais emocional da cidade não se ligasse ao seu carácter urbano, quer no seu desenho como na sua qualidade de organismo habitado. A cenografia para a apresentação do álbum Vandoma insinua a arquitectura tradicional da cidade do Porto, nomeadamente a da zona considerada património mundial. 

Sublinhando a ideia de sobreposição de camadas sonoras presentes no álbum, sobre o vitral suspenso faz-se incidir uma projecção visual que utiliza os vídeos partilhados online por quem visita a cidade. Este procedimento para produzir o vídeo acaba por demonstrar a realidade que a cidade vive actualmente (à semelhança de muitas outras cidade europeias): um local cheio de imagens-postal, monumentos e restaurantes para deleite turístico, onde a tão necessária renovação do edificado acarreta uma transformação demográfica que dificilmente mantém um equílibrio social e urbanístico. Há um Porto que cresce e um Porto que desaparece. Mas que ainda persiste nos lugares e momentos mais profundos.

Há uma série de questões levantadas no Vandoma que não são exclusividade da cidade do Porto. São uma constante no mundo ocidental ou mesmo fora deste, dada a progressiva globalização. Contudo, estamos em contacto para fazer agendamento no Porto. À partida será em meados de Maio.


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