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Texto: ReB Team
Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 15/06/2023

Um disco inspirado no candomblé e na história do Brasil.

Faixa-a-faixa: Sabina de Luca Argel explicado pelo próprio

Texto: ReB Team
Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 15/06/2023

Luca Argel não demorou muito tempo a atacar 2023 com um novo trabalho. Sabina foi o longa-duração que editou de forma independente logo em Fevereiro e nele surgiram compiladas 19 faixas — 7 delas interlúdios narrados por Nádia Yracema.

No sucessor de Samba de Guerrilha, o cantautor brasileiro sediado há uma década em Portugal, integrante de projectos como Samba Sem Fronteiras e Orquestra Bamba Social, foi em busca de uma ligação aos vários orixás que compõem o candomblé, religião afro-americana que se desenvolveu ao longo do século XIX no seu país. À boleia dessa espiritualidade, Argel conta-nos a história de Sabina, personagem que extraiu de um texto de Luiz Antonio Simas, A Cidade da Sabina, que ajuda a retratar as injustiças sofridas na pele pelas vítimas do colonialismo, conforme explica mais detalhadamente João Mineiro numa crítica ao disco por cá publicada. Nesse mesmo texto, o colaborador do Rimas e Batidas fala ainda sobre a toada que embala esta narrativa:

“Muitos motivos, muitas possibilidades, num disco detalhadamente conceptual, onde se conjugam diferentes sonoridades afro-brasileiras eletrificadas, cuja herança é colocada em diálogo com tonalidades rock, com um funk de sabor sambista, por vezes de travos psicadélicos, e onde algumas composições também lembram outras Áfricas (ninguém se espantaria, por exemplo, se Bonga cantasse em “Lampedusa”). E o samba, claro, que Luca homenageia sempre que o reinventa e rearranja. Só a olhar para o futuro se constrói uma história de amor.”

À nossa publicação, o autor aborda a concepção e as temáticas que residem nas 12 canções do álbum, antes de voltar a subir a um palco para apresentar este Sabina ao vivo — no próximo domingo, 18 de Junho, Luca Argel apresenta-se no Centro Histórico de Ílhavo a propósito de mais uma edição do Festival Rádio Faneca; seguem-se Leiria (dia 23 de Junho) e Ovar (8 de Julho) na agenda do músico.


[“Bandarra”]

Antes de cruzar a porta de entrada do álbum, o fantasma de Bandarra anuncia o que está por vir, do seu jeito profético e enigmático. Mas esse aqui é uma espécie de anti-Bandarra. Enquanto o sapateiro de Trancoso, nascido no sugestivo ano de 1500, anunciou em suas trovas a chegada de um novo império e o ressurgimento de um rei, o meu Bandarra anuncia a queda de um império, e a morte de seus monarcas. É sem dúvida a música mais bélica que já gravei. As guitarras com distorção de metal no final, muito duras e pesadas, misturadas com os toques de um repique de escola de samba ágil, imprevisível, toques que mais parecem dribles, são pra mim a representação sonora de um povo que há séculos vem sobrevivendo aos massacres, produzindo um milagre por dia, enquanto dança com a própria morte.


[“Aldeia”]

Aqui começa enfim a jornada do álbum. Cada música foi livremente inspirada no toque particular de um orixá do candomblé brasileiro, e todos os instrumentos da banda foram pensados como instrumentos de percussão. Quem entende um pouco sabe que o primeiro orixá a quem se canta é sempre Exu, o senhor das encruzilhadas, das ruas, aquele que abre todos os caminhos. Mas o ponto de partida é a própria aldeia. Quem melhor cantou a minha foi um poeta chamado Aldir Blanc, na sua dolorosíssima “Valsa do Maracanã”, de onde tirei as lâmpadas e pilhas e todo o lixo que suja o rio que passa por ela. Como deixei a minha aldeia e ganhei outros rios, também se juntou o pau-de-canela e mazagão da “Queda do Império” de Vitorino. A água que se mistura com a terra e forma uma lamacenta poção mágica é a própria mistura de referências poéticas que se espalha por este e outros temas do disco.


[“Bala e Estrela”]

Um dos meus álbuns preferidos da dupla João Bosco e Aldir Blanc é o Tiro de Misericórdia. Nele, o artista Mello Menezes pintou uma cena da natividade inspirada na letra da música homônima, recriada como se o menino Jesus fosse um menino negro, nascido em uma favela do Rio de Janeiro — as maiores vítimas, desde sempre e até hoje, da violência do estado brasileiro, que os encarcera e mata como bichos, às centenas, todos os dias, desde os tempos coloniais. Neste desenho de capa, Menezes incluiu uma metáfora que não está na letra de Aldir, mas bem poderia estar: a estrela cadente que anuncia o nascimento do salvador, neste novo cenário, é uma bala traçante de fuzil, daquelas que se pode ver o rasto cortando o céu em noites de tiroteio. Uma imagem nada rara no cotidiano carioca. Imagino o caminho das moléculas chumbo e ferro de que são feitas essas balas, e as grades das prisões. Nasceram no interior de uma estrela que explodiu, viajou anos-luz como uma bola de fogo que esfriou, e foi parar debaixo da terra de um planeta. O único que conhecemos onde uma espécie é capaz de ir lá abaixo buscar esse chumbo e esse ferro pra matar um semelhante.


[“Sabina”]

Na minha cabeça, Sabina, a protagonista do disco, era uma mulher de Iansã, ou Oyá, a orixá dos ventos e das tempestades. Valente, imprevisível, forte. A música leva o nome dela, e foi escrita pensando seu toque, o Ilú, um dos mais difíceis de adaptar pra instrumentação da banda. Acho que no resultado final já estamos a uma boa distância dele, mas acho isso bom, a ideia do disco era mesmo essa: usar os toques como pontos de partida, e não de chegada. O refrão dessa música são versos populares cantados no jongo (uma manifestação da cultura negra rural, do interior da região sudeste do Brasil, não muito distante do samba). Esses versos são como adivinhas, tem sempre uma mensagem cifrada por trás, e foram usados muitas vezes como forma de comunicar planos de fuga de escravizados, sem que os capatazes das fazendas percebessem.


[“Sangue e Pão”]

A maior revolta urbana de escravizados de que se tem notícia no Brasil é a dos “Malês” (como eram chamados os escravizados muçulmanos), que aconteceu em Salvador na década de 1830. Num samba que conta a história dessa revolta, o mestre Wilson Moreira se saiu com o verso “E em sua luta provou / Que o sangue tem a mesma cor”. Muitos negros e muitos soldados foram mortos nessa revolta. Acho que o samba conseguiu de uma forma belíssima mostrar ao mesmo tempo a elevação do ideal abolicionista, e a violência gráfica a que chegou a luta por esse ideal. Esse tema é muito curto, e é um Opanijé, toque do orixá Omulu, o senhor das doenças e das curas, porque o nosso passado ainda é uma ferida aberta que precisa de ser tratada com memória, e não escondida com esquecimento. O tema originalmente não tinha o solo de guitarra no final, mas na sessão de gravação com o Cláudio César Ribeiro achei que poderia ficar bonito, e ficou. É uma tentativa de fazer algo como o Flavien Berger no tema “Dyade”. Fracassamos, é claro, mas foi um fracasso bonito.


[“Tigres”]

Essa tentativa de transpor os toques dos orixás (geralmente tocados apenas com tambores) para arranjos com uma banda tradicional (bateria, baixo, guitarra, teclas) foi uma missão que eu não seria capaz de realizar sem as duas grandes estrelas do disco, na minha visão: o teclado da Pri Azevedo, e a bateria do Carlos Cesar Motta. O Carlos já tinha familiaridade com os ritmos, mas teve literalmente que inventar levadas de bateria que nós nunca tínhamos ouvido. A Pri também teve que desaprender um pouco da técnica mais tradicional de teclado popular pra tirar o som mais percussivo que as músicas pediam. Nessa aqui, especialmente, eu acho que os dois brilharam mais. A adaptação do Alujá, toque do orixá Xangô, o rei dos orixás, senhor do fogo e dos raios, está a uma distância perfeita do original. Nem muito longe, nem muito perto, mas consegue manter o espírito musical destes toques: uma polifonia rítmica em que os instrumentos conversam uns com os outros, e se complementam. Sobre a letra, quem já assistiu ao nosso espetáculo Samba de Guerrilha sabe bem quem são os tigres. Eram escravizados cujo trabalho era levar as fezes e urina das casas do Rio de Janeiro colonial, em enormes barris sobre os ombros, e despejá-los no mar. Com o tempo, a acidez da ureia que escorria nas costas destas pessoas, combinada com o sol que batia, ia queimando a pele em listas horizontais pelo corpo. Daí a alcunha “tigres”.


[“Imortais”]

Está aí mais um exemplo de música que se transformou completamente nas mãos dos músicos incríveis que gravaram comigo. Inicialmente esse tema era bem tranquilo, e era em tom maior. É um Agueré, ritmo associado ao orixá Oxóssi, o senhor da caça, e é muito comum de se ouvir nos grupos de Axé da Bahia. A Pri Azevedo, além de ser baiana, é filha de Oxóssi. Então quando ela pegou no tema, tomou conta de tudo e virou a música pelo avesso. Foi ótimo. O tom que era maior ficou menor, a leveza inicial se transformou num ímpeto bem mais enérgico, e a melodia ganhou um ar oriental, meio árabe, que curiosamente também é moda na Axé Music baiana. Lembra da Revolta dos Malês? Pois, aconteceu em Salvador, não por acaso. Várias palavras desta letra eu fui roubar à uma poeta portuguesa que admiro muito, e que também é uma grande amiga, a Matilde Campilho. Esse verso lindo, “de infinito em infinito”, é dela. O “vai” é meu.


[“Peça Desculpas, Senhor Presidente”]

Esta é canção mais curta que já escrevi, tem só oito palavras. No entanto, pra explicá-la precisei de um artigo inteiro. Enquanto fazia pesquisas para o Samba de Guerrilha me deparei com um conjunto de países que fizeram seus pedidos de desculpa por terem participado e lucrado com o tráfico transatlântico de escravizados — certamente o alicerce mais importante para o estabelecimento das sociedades e do capitalismo modernos. Este grupo de países continua a crescer, mas Portugal ainda não faz parte dele, o que é absolutamente lamentável, já que está no topo da lista dos que mais traficaram pessoas de África para as Américas. Por isso a reivindicação é muito simples, auto-explicativa no título da música. Apesar de saber que o pedido de desculpas não é em si solução para nada, não quis de forma alguma complexificar o assunto na canção. Ela pede apenas um primeiro passo, e como primeiro passo acho que precisa ser simples e direto. Também preferi não especificar mais nada na letra para que ela não ficasse datada demais, e pudesse futuramente ganhar novas interpretações, novas desculpas, novos presidentes. Quando gravamos o coro infantil no Rio de Janeiro, no início de 2022, perguntei às crianças quem elas achavam que era o presidente, e todas, obviamente, disseram que era o Bolsonaro. Pra elas fazia total sentido que fosse, e estavam certas. Aliás, a ideia do coro infantil, e de boa parte das opções do arranjo e da mistura da música tem inspiração direta no The Wall, do Pink Floyd.


[“Gêmeos”]

Pessoalmente é o meu tema preferido do disco, e de muitas pessoas também. É das poucas letras que não leva nenhuma apropriação alheia, saiu totalmente da minha cabeça. Acho que todo mundo tem um pouco dessa sensação de ser múltiplo, dentro de si. De querer ao mesmo tempo coisas contraditórias, de se sentir dividido entre vontades e possibilidades, de sofrer diante da necessidade de fazer uma escolha. Especialmente as pessoas de gêmeos, como eu. Na minha visão particular, de quem enxerga o álbum por dentro, esse tema também faz eco com o “impostor” da letra de “Bala e Estrela”. O impostor sou eu mesmo, em tudo que faço quando tento assumir o ponto de vista do outro. Isso, enquanto exercício de empatia, é uma coisa muito necessária. Por outro lado, é um fio da navalha ética, porque eu não sou o outro, jamais saberei realmente como é estar na pele do outro, e não posso em hipótese alguma falar como se soubesse. É um enorme desafio esse desdobrar do pensamento: tentar chegar o mais perto possível do sentimento do outro, sem esquecer nem por um minuto de onde estou falando. 

[“Oitis”]

Originalmente o álbum terminava aqui. É uma espécie de coda, de despedida. Mas aí surgiram as duas músicas seguintes, e o álbum acabou ficando maior do que eu imaginava no plano inicial. Eu queria de ter conseguido deixar sonoramente mais explícito que a letra diz “re-existir”, e não “resistir”, mas minhas tentativas não resultaram na mistura, e acabou ficando desse jeito mesmo. É que essa é uma premissa muito importante no pensamento do Luiz Antonio Simas, o autor do texto que a Nádia Yracema vai lendo entre as músicas. Ele acredita que politicamente é muito mais interessante pensar a cultura popular brasileira como uma força de re-existência, ou seja, de existir para além daquilo que a realidade (o estado, a sociedade, a violência, a desigualdade) prescreve para as populações marginalizadas. Isto é, inventar uma outra existência, ativamente criá-la. Ao contrário da resistência, que pressupõe uma atitude sempre reativa, sempre pautada pelo outro, que age sobre nós, e nós apenas resistimos, como se não tivéssemos agência própria. Já a parte dos oitis (oitis são árvores) e pardais, isso são reminiscências do Aldir Blanc (sempre ele), ao recordar o bairro onde cresceu (que também é o meu).


[“Lampedusa”]

Durante a pandemia, o Sérgio Guri, companheiro de Samba Sem Fronteiras, com quem toco já há quase 10 anos, me mandou essa música para eu colocar letra. Na versão dele (que saiu antes da minha) o tema é uma morna. Senti logo que tinha que falar sobre mar, até porque sei que o Guri é muito ligado ao mar. A letra foi me puxando praí, mas em determinado momento senti que não estava falando apenas do mar. As imagens que me vinham na cabeça eram dos refugiados tentando atravessar o mar em seus barcos improvisados e superlotados. Passou a ser não só uma música sobre mar, mas sobre travessia, sobre imigração, sobre fuga e desamparo. O conceito de mar como um “urro interminável” é de algum poeta que já não me recordo. Enviei a letra pronta ao Guri sem a menor intenção de incluí-la no meu álbum. Mas com o tempo fui começando a ficar cada vez mais apegado a ela, e a perceber que ela tinha tudo a ver com a temática de Sabina.


[“Nada Pessoal”]

Já há muitos anos que venho falando em conferências, debates, entrevistas e etc., sobre as questões centrais desse disco (racismo e colonialismo, principalmente), através da música (especialmente da história do samba). E em eventos onde há alguma interação com a audiência, é recorrente a aparição de uma figura que eu chamo de “inocente”. O “inocente” é um arquétipo tipicamente português, que segue sempre o mesmo perfil: é um homem, branco, pelos seus 50 anos ou mais, que quando ouve falar em colonialismo e escravatura, sente uma necessidade irresistível de levantar a mão e dizer bem alto: “Eu nunca colonizei ninguém. Eu nunca escravizei ninguém. Eu não tenho culpa!”. É importante dizer que o “inocente” não está sendo acusado de nada. Ninguém está falando dele. Ninguém nem conhece ele! Geralmente estamos falando de uma instituição, do estado, do império, de estruturas de poder seculares. Mas, por algum mecanismo psicológico misterioso, o “inocente” sempre acha que é ele, precisamente ele, que está em causa no debate. E como é inocente, precisa se defender e declarar a todos a sua inocência. Pra não dizerem que isso é uma implicância de brasileiro, meti no meio da letra um verso da Natália Correia que resume toda a mensagem da música. Quem ficar incomodado, entenda-se com ela.


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