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Fotografia: Dawid Laskowski
Publicado a: 29/12/2020

Retrospectiva de um ano em que o talento feminino brilhou com mais intensidade.

20 mulheres que causaram ondas no jazz em 2020

Fotografia: Dawid Laskowski
Publicado a: 29/12/2020

O jazz e a música improvisada são (e sempre foram) dominados pelo género masculino. A história destes estilos musicais acompanhou as relações de dominância de género que durante largas décadas afastaram muitas mulheres dos palcos e da aprendizagem do jazz. Paulatinamente, a história tem mudado o seu rumo graças a um amplo e consciente esforço, mas ainda assim a balança continua a apontar tendencialmente para um desequilíbrio com carga histórica. Não podemos nem devemos mudar o passado, mas podemos construir o futuro à luz da ética e moral do presente. Na busca de explicações para este fenómeno, há os que se colam fervorosamente à Teoria Crítica com o fim de libertar toda a realidade do jugo de uma putativa construção social. Por outro lado, outros rejeitam reduzir a questão da desigualdade de género a um produto histórico, cingindo-a unicamente a diferenças biológicas, optando, deste modo, por uma lógica positivista e determinista. Como sempre, a verdade andará nos meandros destas explicações-limite, sendo esta uma interessante e necessária discussão que, contudo, transcende o âmbito deste artigo.

Uma sociedade mais justa e saudável requer que apareçam mais cantoras, instrumentistas e compositoras. O estabelecimento de uma verdadeira meritocracia cega a géneros, para que seja imparcial e equitativa, terá necessariamente de ter por base um igual acesso às oportunidades. Naturalmente, tal só será possível se ditas oportunidades forem criadas através de apoios não só em contextos académicos e profissionais, mas também em termos de visibilidade e exposição. Em relação a estes últimos pontos, a imprensa tem um papel fundamental no reconhecimento de talento, assim como na criação de modelos que permitam inspirar novas gerações de mulheres a pegarem em instrumentos que até aqui eram colocados fora do seu alcance. Não se trata aqui de reconhecer per se, mas sim de devolver a “César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”, isto é, de reconhecer um conjunto de mulheres pela excelência do seu trabalho e percurso em 2020.

De artistas em começo de carreira a experientes veteranas, do jazz mais convencional à improvisação não-idiomática, do mainstream ao underground, da Europa ao Estados Unidos da América, traçamos a retrospectiva de um ano em que as mulheres brilharam. São 20 as artistas escolhidas para esta lista que está longe de ser exaustiva; poderiam ser muito mais e, além disso, a ordem é inespecífica. Esperemos que no futuro, e a expensas de uma maior equidade de género, estas escolhas se compliquem ainda mais.



[Sara Serpa]

Em 2020, o trabalho da portuguesa Sara Serpa excedeu todas as expectativas. Se já a tínhamos em elevada estima no papel de cantora e compositora, Recognition revelou uma amplitude e profundidade artística que transcendeu uma génese puramente musical. Através de um trabalho multidisciplinar com fulcro na memória colonial portuguesa em Angola, Sara Serpa não só compôs um álbum (editado pela Biophilia Records) — no qual participaram Zeena Parkins (harpa), Mark Turner (saxofone) e David Virelles (piano) –, mas também produziu um documentário em colaboração com o cineasta Bruno Soares que contou com textos de Amílcar Cabral e narração de Aline Frazão. Recognition é, assim, um trabalho que se espraia pelo domínio musical, histórico, ensaístico e filosófico, com um elevado sentido estético e um profundo impacto social, que serve como ponto de partida para uma reflexão profunda acerca da historicidade do colonialismo português. O alcance e dimensão de Recognition conferem-lhe um potencial transformador singular, que o colocam num patamar de excelência de criação artística.



[Susana Santos Silva]

O tríptico de que Susana Santos Silva foi autora este ano começou a desenhar-se em Fevereiro com The Ocean Inside a Stone (Carimbo Porta Jazz), disco no qual se fez acompanhar do seu quinteto Impermanence. À experiência de grupo seguiu-se a solidão da pandemia, condicionamento que a levou à criação de The Same Is Always Different (edição de autor), um dos vários solos de trompete concretizados por portugueses, mas o único no feminino, que contrapõem com curiosidade e espírito de descoberta a monotonia e reclusão do isolamento. Susana foi ainda autora de Life is a Mystery (Matière Memoire), trabalho no qual a música recorre a um arsenal que vai desde a electrónica às gravações de campo para produzir um registo profundamente distinto dos anteriores. 2020 foi, portanto, mais um ano em que a portuense se apresentou inquieta, inventiva, exploradora e a navegar por territórios experimentais e não idiomáticos. É sempre um prazer escutar o que a trompetista tem para expressar e, por isso, a sua inclusão nesta lista é obrigatória. E a não esquecer: em Março do próximo ano será lançado Melt (Clean Feed), álbum gravado ao longo de uma residência de três dias no Portalegre JazzFest 2019 pelas Hearth, quarteto formado por Susana Santos Silva, Mette Rasmussen, Ada Rave e Kaja Draksler.



[Luísa Gonçalves]

O nome de Luísa Gonçalves não será porventura o mais conhecido por parte do público português. Contudo, esta é uma tendência que certamente ganhou um novo rumo depois do lançamento de UNNO (Trem Azul), álbum a solo protagonizado pela pianista lisboeta que não passou despercebido aos ouvidos dos apreciadores do género. Apesar da dificuldade da tarefa a que Luísa se incumbiu, a concretização da mesma foi categórica, com a pianista a revelar e a trazer à tona toda a profundidade emocional do seu interior. O resultado é um disco belíssimo, bem executado e com uma narrativa sólida e consistente. Uma das surpresas nacionais deste ano, aqui referida com a certeza de que ouviremos falar novamente de Luísa num futuro próximo.



[Rita Maria]

2020 viu Rita Maria continuar activa em vários projectos (por exemplo com o seu trio com Luís Figueiredo e Mário Franco), mas foi a duo com o pianista Filipe Raposo, com quem havia já colaborado em álbum em 2018, que, este ano, lançou o trabalho que a faz ser mencionada nesta lista. Intitulado The Art of Song, Vol:1 When Baroque Meets Jazz (Roda Music), este é um disco que, tal como será aparente pelo título, veste de roupagem jazzística o universo musical barroco. A magia deste álbum está presente nas inusitadas pontes que constantemente são estabelecidas entre as duas estéticas musicais, ora aproximando-as, ora separando-as: num momento escutamos uma fuga, noutro uma improvisação, e, ainda, ambas as abordagens a fundirem-se e serem apresentadas de forma entrelaçada. Aliás, o que torna esta obra tão interessante é ser concomitantemente essencial tanto para ouvintes de Bach ou Handel como para apreciadores de Meredith Monk ou Gretchen Parlato.



[Nubya Garcia]

Depois de mencionadas as protagonistas portuguesas do ano, viajemos agora para o Reino Unido, o mais fervilhante pólo do jazz europeu da actualidade, principalmente no que à vertente mainstream do mesmo diz respeito. E se tivéssemos de nomear a rainha desta profícua incubadora, essa seria indubitavelmente Nubya Garcia, tais são as repercussões e ondas que os projectos em que se envolve criam por esse mundo fora. Membro de grupos como Nérija ou Maisha, Nubya tem trilhado, ao lado de companheiras como Cassie Kinhosi e Sheila Maurice-Grey, um percurso de notável afirmação no jazz mundial, tendo no ano passado, inclusive, assinado por uma major do género, a Concord Jazz, feito ainda pouco comum no universo feminino.

E foi exactamente pela Concord que a saxofonista lançou Source, trabalho que fez as linhas da imprensa internacional durante grande parte do ano de 2020. Este não é um álbum transcendental em termos de musicalidade ou originalidade: a incorporação de influências caribenhas é uma fórmula recorrente na paisagem sonora britânica há largas décadas, e Nubya não arriscou em transpor os contornos que já lhe conhecíamos de outros projectos. Apesar disso, não deixa de ser um registo competente, que ganha bastante pelo facto de a saxofonista ser portadora de um tocar bonito, quente e redondo – ao estilo de Joe Henderson -, que aconchega de forma suave e melodiosa qualquer ouvido, e que aqui se justapõem a uma banda com a qual a inglesa partilha um entrosamento e química incontestáveis. Desta feita, Nubya Garcia é um exemplo de sucesso e, com certeza, alguém que ainda dará muito que falar nos territórios jazzísticos.



[Emma-Jean Thackray]

Uma das mais proeminentes figuras femininas do denominado JazzNãoJazz – forma como a própria artista cataloga algumas das suas criações no Bandcamp -, Emma-Jean Thackray teve mais um ano de elevada produtividade. Para além do EP Rain Dance (Movementt) e de várias reedições de trabalhos passados, a trompetista e compositora foi também autora de UM YANG, álbum editado pela Night Dreamer, no qual prestou a sua homenagem à filosofia taoísta de dualidade e harmonia. Pelo facto de ter sido gravado da forma mais orgânica e analógica possível, isto é, directamente para disco, apenas uma audição do vinil de UM YANG fará jus à riqueza sonora deste trabalho, visceralmente íntimo, honesto e pessoal. 2020 foi, portanto, mais um ano em que a britânica sulcou o seu caminho de forma indelével na paisagem sonora do jazz mundial.



[Shirley Tetteh]

Shirley Tetteh tem sido autora de uma notável mas discreta carreira. Apesar de bastante influente na cena londrina, a guitarrista não goza ainda do mesmo reconhecimento de que disfrutam algumas das suas pares. No entanto, a britânica faz parte de alguns dos mais influentes grupos de jazz da capital inglesa, tais como Maisha, Nérija e SEED Ensemble, contando igualmente com participações em álbuns das conhecidas Zara McFarlane e Yazz Ahmed. Além do mais, apresenta-se em nome próprio sob o pseudónimo de Nardeydey. Só este ano, Shirley Tetteh participou nos dois discos de Maisha – Osiris, Live (Brownswood Recordings) e a sessão gravada juntamente com Gary Bartz para a Night Dreamer Direct-to-Disc Sessions (Night Dreamer) –, assim como numa faixa de Robyn (Touching Bass), novo disco do produtor CKtrl (Bradley Miller). Um nome ainda subestimado, mas seguramente por pouco tempo.



[Kaja Draksler]

Foi em formato de octeto que a pianista eslovena Kaja Drasler gravou Out for Stars, edição da portuguesa Clean Feed Records, sucessor de Gledalec (2017), e um álbum com contornos de obra mítico-poética. Aliás, a música de Kaja tem laivos de uma certa aura onírica e transcendental, que rejeita o cânone sobre a qual se assenta através do recurso a composições inovadoras e imprevisíveis. Além do mais, apesar da aparência inofensiva, Out for Stars surge quase como uma filípica contra a convenção e o conformismo, sendo uma resposta lancinante à padronização e à normalização. Destacado aqui por ser porventura o registo do ano da pianista, a produção de Kaja não se resumiu a Out for Stars, com a eslovena a participar ainda em The Swim (Terp Records), nos álbuns ao vivo At Kafé Hærverk (Weight of Wax) e Live (Plaist), e também em Bivališča (Klopotec). Um ano em cheio para a música que conta na sua discografia com colaborações com vários nomes conhecidos do público português, tais como, por exemplo, Susana Santos Silva ou Eve Risser.



[Silke Eberhard]

Em 2020, a saxofonista e clarinetista teutónica Silke Eberhard não só brilhou com participações em diversos álbuns marcantes como também viu o seu trabalho ser laureado e reconhecido a nível institucional. Relativamente às adições à sua discografia, nomeie-se o álbum Silk Songs for Space Dogs (Leo Records), da autoria do ensemble Posta Lotsa, por si liderado, e a sua participação em This Week Is In Two Weeks (ESP Disk), disco que a juntou ao trompetista Nikolas Neuser e ao duo nova-iorquino Talibam!, formado por Matt Mottel e Kevin Shea. Além disso, a música foi também galardoada com o Jazzpreis Berlin 2020, que reconheceu o impacto da sua carreira na cena cultural da capital alemã, assim como a sua influência além-fronteiras. Movendo-se com habilidade quer pelo jazz mais convencional quer pela música totalmente improvisada, Silke Eberhard é uma das grandes músicas europeias da actualidade.



[Ingrid Laubrock]

Alemã a viver em Nova Iorque, a saxofonista e compositora Ingrid Laubrock este ano desdobrou-se em dois trabalhos muito bem conseguidos que foram lançados pela Intakt Records. São eles Blood Moon, gravado juntamente com a pianista canadiana Kris Davis — também ela alguém que merece ser aqui mencionada (excelente o Inland Empire em que participou!) –, e Dreamt Twice, Twice Dreams (Music for Chamber Orchestra and Small Ensembles), disco duplo em que são apresentadas cinco composições duplamente reinterpretadas quer pela EOS Chamber Orchestra Cologne (lado A) quer por um pequeno ensemble (trio) com convidados ocasionais (lado B) — o conceito é interessantíssimo e as interpretações e respectivos arranjos sublimes. Mais um ano em que a saxofonista revelou uma enorme potência criadora.



[Camila Nebbia]

Camila Nebbia, saxofonista e compositora argentina, facto que, aliás, faz dela a única representa sul-americana nesta lista, lançou em Agosto Aura pelo selo da ears&eyes Records, um disco fenomenal e que passou ao lado do público português. Para o gravar, Camila reuniu um ensemble de jovens músicos sul-americanos de grande talento e capacidade musical. Musicalmente falando, Aura encontra-se suspenso numa evidente matriz experimental, na qual se sentem constantes incursões pelo free jazz e avant garde, mas também fortes tendências de arranjos com uma estética que nos remete para as big bands de jazz. Ademais, as composições apresentam oscilações entre harmonizações em larga escala e solos individuais, interacções premeditadas a várias vozes e improvisações melódicas e texturais. Dada a sua perentória qualidade, Aura é uma verdadeira pérola vinda da Argentina que merece toda a nossa atenção, e Camila Nebbia alguém a quem devemos seguir os passos.



[Angel Bat Dawid]

A grande peculiaridade do fenómeno International Anthem prende-se ao facto de ser um selo que carimba lançamentos que agradam a todo o espectro de ouvintes: dos mais puristas aos menos exigentes, parece haver aquiescência em relação à qualidade das edições desta chancela. Incluída nessa onda de consensualidade encontra-se a chicagoana Angel Bat Dawid, grande cara feminina da editora, que esteve presente em vários projectos da mesma. Para Angel, o ano começou com o 7 polegadas Transition East – EP criado em resposta ao livro Make Some Space de Emma Warren, que narra a história do instituto de música DYI londrino Total Refreshment Centre –, terminando com LIVE, álbum que apresenta um registo ao vivo do primeiro concerto da tour Europeia realizada no ano passado, na qual a Angel Bat Dawid se apresentou com a sua banda The Brothahood. A música faz história a cada lançamento, fundindo o jazz com tudo o que o possa enriquecer e elevar.



[Jaimie Branch]

Outra cara muito associada à International Anthem – editora pela qual tem editado a sua série Fly or Die – a trompetista e compositora Jaimie Branch destaca-se, este ano, pelo Zurich Concert (Intakt Records), trabalho que a junta ao Dave Gisler Trio, um excelente disco para amantes de rock e de um jazz mais de fusão. Para além deste álbum, a música participou também no Dimensional Stardust (International Anthem) de Rob Mazurek / Exploding Start Ochestra, e no The Weather Up There do baterista Jeremy Cunningham, todos eles trabalhos importantes na história de 2020.



[Tomeka Reid]

Violoncelista e compositora americana, Tomeka Reid é um outro nome incontornável do panorama do jazz actual, e outro exemplo de alguém que se movimenta com grande mestria e destreza pelas várias vertentes da música improvisada. Isto porque não é surpresa quando, no mesmo ano, a vemos a colaborar quer com Makaya McCraven, Kahiel El’Zabar ou Rob Mazurek / Exploding Start Orchestra, como também a improvisar com Alexander Hawkins ou Joe Morris em discos de natureza totalmente contemporânea. Merecidamente, a música foi laureada este ano com o título de “String Player of The Year”da Jazz Journalist Association, um verdadeiro reconhecimento do ano supremo do qual Tomeka Reid foi autora.



[Sarah Bernstein]

Sarah Bernstein é uma multifacetada artista: da poesia à música, a nova-iorquina tem-se vindo a destacar como uma criadora visionária e inovadora. A sua capacidade criativa foi este ano reconhecida pela DownBeats Critics Poll, que lhe atribuiu a distinção de “Rising Star Violinist”. Para além de participações em álbuns de Astroturf Noise, Sarah Bernstein também lançou este ano o álbum Exolinger (577 Records) alcunha que também usa para se apresentar a solo –, um trabalho verdadeiramente biface na sua composição, no qual a artista funde de forma exímia as palavras com o som. Uma delícia para amantes de música livre, totalmente improvisada e multidisciplinar.



 [Sara Schoenbeck]

De timbre grave, suave e discreto, não será directa a associação do fagote ao imaginário dos instrumentos usados no jazz ou na música improvisada, tão raras são as ocasiões em que o ouvimos neste contexto. Apesar da suspeita de intrusão que paira no ar quando tal acontece, reconhecemos o fagote com frequência na música clássica: do Requiem de Verdi ao concerto para fagote de Mozart, diversas são as peças em que os fagotes emergem do seu recato para colorir o ar com as suas vibrações. Devido a esta relação umbilical, não é de todo surpreendente que quando o fazem no jazz surja consigo uma ambiência erudita e contemporânea, talvez resultado de um processo de emancipação que nunca se deu por completo.

Sara Schoenbeck – mais conhecida pela sua associação a Anthony Braxton — é uma das fagotistas do presente que continua a despertar interesse pelo instrumento mesmo fora dos círculos mais clássicos, muito devido à sua incessante exploração do mesmo transportando-o para para usos poucos convencionais. Cell Walk, álbum que lançou este ano juntamente com o pianista Wayne Horovitz, é uma demonstração imaculada do potencial do fagote no jazz e na improvisação livre. Não é um álbum para consumo rápido e fácil, mas a música que nele escutamos é de uma elegância tão distinta que somos levados a imaginar cenários fora do domínio clássico em que o fagote pode assumir um papel mais primordial. Quem sabe se Sara Schoenbeck não poderá ser a inspiração para que tal aconteça.



[Lakecia Benjamin]

Se Retox (Motéma, 2012) e principalmente Rise Up (Ropeadope Records, 2018) haviam já relevado um promissor potencial da nova-iorquina Lakecia Benjamin no que toca a arranjos e composições – as suas qualidades de execução e performativas estão já mais que demonstradas num extenso e notável currículo de colaborações –, o seu registo deste ano, Pursuance: The Coltranes, vê a saxofonista embarcar por uma reinterpretação do trabalho do casal Coltrane. A tarefa é arriscada, tal é o peso e o legado deixado por John e Alice, já para não falar de algumas dúbias tentativas realizadas, ao longo das últimas décadas, por parte de variadíssimos ilustres. No entanto, a saxofonista reuniu um grande elenco de músicos para, com distinção e originalidade, levar avante esta sua vontade, fazendo-o de forma sólida e convincente. Mais um ano de sucesso para a saxofonista.



[Artemis]

Espaço também para uma menção colectiva, desta feita ao super grupo Artemis formado por sete músicas com percursos já firmados no mundo do jazz, nomeadamente Renee Rosnes (piano), Anat Cohen (clarinete), Melissa Aldana (saxofone tenor), Ingrid Jensen (trompete), Noriko Ueda (contrabaixo), Allison Miller (voz) e Cécile McLorin Salvant (voz). O álbum homónimo, recentemente editado pela chancela Blue Note, vê o septeto residente em Nova Iorque mover-se criativamente por geografias situadas algures entre o hard e o post bop, protagonizando dinâmicos arranjos e férteis improvisações que nunca permitem que a música resvale para lugares-comuns ou paisagens cliché. A julgar pelo artwork, não será descabido afirmar que estamos perante uma notável instância em que não se deve julgar o livro (ou o disco, neste caso) pela capa.



[Maria Schneider]

Compositora, arranjadora e líder de grandes ensembles, Maria Schneider continua a somar triunfos numa carreira já de si recheada de inúmeros prémios e menções honrosas. Este ano voltou a conquistar o público com o seu CD duplo Data Lords (ArtistShare), que compôs para a sua Maria Schneider Orchestra. Este é um trabalho não só de proporções épicas em termos de dimensão orquestral (são 18 os elementos que dela fazem parte), mas também de uma grandeza de espírito que revela toda a visão holística que Maria possui sobre a matéria composicional com que trabalha. Associado ao interesse musical que Data Lords desperta, encontra-se também a curiosidade deste trabalho não se resumir apenas à música, pois inspira-se e incita à reflexão sobre questões tão prementes da actualidade como a privacidade digital e a protecção de dados. Um dos grandes discos de 2020.



[Carla Bley]

Uma autêntica veterana nesta lista, mas que pouca margem deixa para nela não ser incluída em consequência do seu Life Goes On. Álbum de génese contemporânea e que se encontra em perfeita consonância com a editora que o lançou, a ECM, Life Goes On juntou Carla Bley, no piano e composições, a dois companheiros de passadas aventuras, Andy Sheppard (saxofone) e Steve Swallow, para juntos tocarem três suites, com três andamentos cada, que dão forma a um trabalho onde se sente a experiência do trio em cada nota (não) tocada, a democracia de uma partilhado protagonismo aquando da improvisação, e a genialidade de três vidas dedicadas à música, aqui condensadas num disco de grande sensibilidade estética. Aos 84 anos, não é certamente por motivos profissionais que Carla Bley continua a fazer música, antes, sim, por uma necessidade interior que a torna incapaz de cessar de tocar e compor. Um verdadeiro marco de vitalidade e longevidade no mundo da música, apenas alcançável por muito poucas.

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