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Ilustração: Riça
Publicado a: 26/05/2020

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #14: Filipe Felizardo & The Things Previous / Susana Santos Silva Impermanence / Luís Vicente, Olie Brice, Mark Sanders

Ilustração: Riça
Publicado a: 26/05/2020

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.


[Filipe Felizardo & The Things Previous] Vol. 9 After The Circle / Discrepant

O guitarrismo de Filipe Felizardo é uma paralela e mágica dimensão em que se vislumbra um verdadeiro pensamento em acção: o Filipe, que também desenha figuras em papel, pinta aqui, perante os olhos da nossa escuta, difusas imagens de uma espécie de êxtase doméstico em que a guitarra divide sempre espaço aural com o ambiente que o rodeia e que nos deixa entrever o gato (imagino-o amarelo…), sentir o bebé, perceber que há alguém a tomar banho ou que a janela que dá para a rua se encontra aberta deixando um pedaço de cidade entrar.

O curioso é que toda essa realidade casa de forma perfeita com a fantasia que escorre dos dedos de Filipe, uma fantasia em que o fantasma de Fahey passeia no pátio de um mosteiro tibetano, umas vezes, vagueia algures perdido numa seara andaluza, outras. E ainda há muito espaço para os demais produtos da imaginação felizarda em que já não é o Blind Joe Death quem plana uns metros acima do sofá da sala em que o guitarrista entrega os seus solilóquios ao gravador, antes a sua própria sombra, porque o que Filipe aqui encena são as íntimas conversas com a sua imaginação, diálogos interiores sobre um mundo de possibilidades em que o instrumento é explorado pelas suas capacidades harmónicas, desmontado em figuras circulares rítmicas e repensado como mais uma das fontes de ruído, e portanto de vida, que a casa resguarda, tão água como o que escutamos a escorrer da torneira ou do chuveiro, tão vibração como o que o ar carrega para dentro da sala vindo da janela, tão choro quanto o que se solta dos pulmões do bebé. A guitarra é mesmo só o lápis com que o Filipe desenha a sua própria vida. E é isso que nos agarra irremediavelmente, como aqueles quadros que sentimos, sem apelo nem agravo, puxarem-nos para dentro das suas imagens, dos seus retratos ou paisagens ou amálgamas de cores.

O lado B deste Vol. 9 After The Circle arranca mais solene, com Filipe a criar pequenas suspensões harmónicas a partir do seu amplificador, tocando a guitarra como quem espera que ela mesmo desperte e siga por ali a fora, sozinha. E a vida real sempre lá atrás, nos ruídos da louça do pequeno almoço, na água que escorre no lava louça, uma aguda lembrança que a realidade e a fantasia são apenas faces opostas de uma mesma moeda. O absurdo blues cubista que se segue, trabalho para guitarra envergonhada e chávenas em regime livre, é um tratado sobre nada, sobre a permanência ou a passagem das horas do dia ou o vazio e a esperança de que algo aconteça ou sobre o que significa viver dentro da arte. Como a luz que entra, tão vívida, dentro de um quadro de Vermeer, a guitarra que Filipe lança sobre a sua vida doméstica, é um rasgo de imaginação sobre a realidade, uma projecção que chega de um lugar secreto e se apresenta, nua, na nossa frente. Sem princípio, nem fim.


[Susana Santos Silva Impermanence] The Ocean Inside a Stone / Carimbo Porta-Jazz

O quinteto Impermanence comandado pela trompetista Susana Santos Silva chegou aqui ao seu segundo registo, depois da estreia, em 2015, com um lançamento homónimo que resultou de encomenda do Guimarães Jazz e da Porta-Jazz. Neste registo lançado em Fevereiro último, a trompetista volta a liderar o mesmo ensemble com João Pedro Brandão a dividir-se entre o saxofone alto, a flauta e o piccolo, Hugo Raro em piano e sintetizador, Marcos Cavaleiro na bateria e, uma vez mais, o sueco Torbjorn Zetterberg no baixo.

Nesta sessão registada em finais de Julho do ano passado no estúdio Groove-Wood, expande-se a premissa tímbrica da primeira aventura do quinteto com recurso a mais instrumentos e, portanto, com a abertura de mais possibilidades exploratórias. E isso fica explícito logo na segunda parte de “Expanded Life”, tema de abertura desta viagem. Depois da declaração de intenções exposta na abertura, com o quinteto a procurar encaixar-se, como peças de lego, numa arrojada figura de ângulos definidos, na segunda parte a derrapagem longa torna-se mais abstracta e fluída, rumando ao silêncio, como uma filigrana delicada de sons que se vai tornando cada vez mais ténue, até quase desaparecer no próprio ar, dando a Susana a possibilidade de extrair expressivas passagens do seu trompete, já quase só respiração que se enreda no grão electrónico do sintetizador.

E é do silêncio que a peça seguinte nasce, com a líder a assumir a dianteira, amparada pelo cinemático piano, como se houvesse um filme à espera de acontecer entre estas notas suspensas. O diálogo entre o trompete e a flauta é particularmente feliz neste “Wanderhopes”, uma alegre dança de expressivas notas a que os restantes “bailarinos” se juntam, apresentando, cada um, pequenos, mas assertivos movimentos, que procuram sempre a complementaridade, ainda que não necessariamente algum tipo de harmonia espacial mais convencional, como num palco em que pudessem evoluir corpos comandados por Merce Cunningham.

O tema que oferece o seu título ao álbum é a última parte do tríptico inicial de peças mais longas (juntas somam mais de meia hora), um exercício exploratório puro, abstracto no propósito, mas vibrante de intenção, intrigante ao início, mais melódico e quase clássico a dada altura, com os sopros a conduzirem os procedimentos, e depois com uma atmosfera de feira induzida pelo órgão de carrossel a que se junta uma quase pastoral flauta numa marcha que sugere algo de Tom Waits antes do tin whistle de Susana despontar num solo de uma estonteante e expressiva beleza, qual Hamelin que conduz os “meninos” do quinteto até ao fim do arco-íris.

A segunda parte do álbum é mais contida na duração dos exercícios, mas não menos aventureira, oscilando entre passagens mais abrasivas e algo caóticas, com os músicos a extraírem verdadeiro nervo das suas ferramentas, e outros momentos mais poéticos de maior leveza. Há lugar a passagens solistas de piano (“The Past Yet to Come”), com o silêncio desenhado entre notas suspensas, a imaginadas viagens a África sugeridas pelo tin whistle e comandadas por uma percussiva barragem tão densa como a folhagem por onde vagueia o pássaro-pífaro (“The Drums Are Singing Or Is It The Trees”) e um dramático e sério final, de tonalidades quase fúnebres ao arranque (“The Healer”), com o trompete de Susana Santos Silva a afirmar-se, mais uma vez, como séria fonte de originalidade discursiva a que os outros elementos deste ensemble correspondem com solidez técnica a toda a prova, inventividade musical e pertinência absoluta em cada nota debitada.


[Luís Vicente, Ollie Brice, Mark Sanders] Unnavigable Tributaires / Multikulti Project

Ao longo dos últimos anos, o trompetista Luís Vicente espalhou uma considerável discografia, como líder ou sideman, por editoras como atrito-afeito, Creative Sources, Clean Feed ou a polaca Multikulti Project que volta a ser a casa escolhida para dar à estampa este Unnavigable Tributaires que gravou com o contrabaixista britânico Olie Brice (ele que tem uma carregadíssima agenda dividindo-se por inúmeros projectos) e com o igualmente britânico baterista Mark Sanders (outro incansável músico com um currículo gigante).

Juntos, os três músicos gravaram este trabalho em Lisboa há precisamente um ano no FisgaStudio/ScratchBuilt com Nuno Mourão e Tiago Martins a comandarem mesa de mistura e microfones, trabalho que resulta numa sessão de limpidez absoluta, com cada um dos instrumentos a preencher o espaço de forma clara, facto que nos permite “ver” melhor como se processa a profunda interacção de que aqui temos registo. Nas notas de lançamento, explica-se que a gravação teve lugar no final de uma viagem (evocada nos títulos das peças) que levou os músicos dos vales do Douro às Caldas da Rainha e daí até Lisboa, numa jornada intensa de sabores e vistas, de convivência e, pois claro, de aprofundamento das ligações que depois resultaram na música que agora se edita.

E é disso que se trata, claramente, de um processo de criação de laços telepáticos, de entendimento e de capacidade de escuta mútua. Os músicos são todos homens experientes, sabedores, claramente aventureiros e destemidos, capazes de saltarem sobre o abismo do momento e de aterrarem sem mazelas no fundo do desfiladeiro, extraindo dos seus instrumentos ritmos, cadências, frequências, sons expressivos ou abstractos, notas sonantes e dissonantes, matéria melódica e harmónica, poética, atonal, abrasiva e contemplativa, às vezes enfiando tudo dentro de uma mesma peça, quase até dentro de singulares momentos.

Vicente é, pois claro, um trompetista de mão cheia, visceral e eléctrico, com uma ampla panóplia de recursos técnicos à sua disposição e que, no entanto, nunca sucumbe a gestos de despropositado exibicionismo e mesmo quando executa passagens expressivamente mais complexas parece fazê-lo porque é que o momento exige. É ainda um generoso solista que entende que o estímulo que lhe é oferecido pelos seus companheiros é essencial para lhe alimentar o seu particular fogo. Escute-se “Tua”, por exemplo, peça de intenso sufoco rítmico, muito povoada pela bateria, aqui de uma densidade quase granítica, com o contrabaixo igualmente frenético na sua procura de entradas onde deixar a sua marca. E sobre essa poderosamente telúrica paisagem evolui Luís Vicente, em corrida contra o tempo, o real do relógio, e o do pulsar rítmico assimétrico que desagua num trovejante solo em que Sanders trabalha os pratos de forma imaginativa, cedendo depois o passo a um Brice que é só nervo e tensão.

Com uma agenda de edições carregada para os próximos tempos, Luís Vicente vai deixando cada vez mais claro com cada nova incursão em palcos e estúdios que é um protagonista de primeira linha deste efervescente território de invenção livre. Nas notas que acompanham esta edição diz-se com saudades de um tempo em que a interacção humana volte a ser possível. Há-de acontecer e a música urgente, como a sua, terá por missão erguer novos futuros, mais condizentes com passados felizes como o que este registo documenta. Venha de lá isso, por favor.

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