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Ilustração: Riça
Publicado a: 10/06/2020

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #15: Tenderlonious / Susana Santos Silva / Cherry Red

Ilustração: Riça
Publicado a: 10/06/2020

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.






[Tenderlonious] The Piccolo – TENDER plays TUBBY + TENDER IN LAHORE / Jazz Detective + 22ª

Depois de After The Storm (trabalho que mereceu atenção da coluna Notas Azuis em finais de Abril passado), o flautista e saxofonista britânico Edward Cawthorne lançou em sequência mais dois registos: The Piccolo – TENDER plays TUBBY teve como data oficial de lançamento o dia 29 de Maio ao passo que TENDER IN LAHORE foi aspresentado (tendo imediatamente esgotado a sua prensagem física em vinil) no passado dia 5 de Junho. São três novos trabalhos editados em menos de dois meses, o que denota um assinalável ritmo de produção. Em conversa a ser brevemente publicada no Rimas e Batidas, o músico revela, no entanto, que estas são apenas as primeiras erupções da sua “vulcânica” actividade planeada para este ano.

Importa referir que os três títulos editados neste período apontam para outras tantas direcções, parecendo, de certa forma, pensados para sublinharem a pluralidade de linguagens em que Tenderlonious é capaz de ser fluente. Se, como se explicava por aqui, “o músico explora o pulso house de Londres” em After The Storm, uma criação solitária em que o próprio Edward Cawthorne assume as bases electrónicas que sustentam as suas planantes derivas flautísticas, já em The Piccolo é a revisitação do importante legado de Tubby Hayes (lendário músico britânico de jazz que acaba de ser alvo de uma extraordinária antologia, a caixa The Complete Fontana Albums (1961 – 1969),a que o Notas Azuis há-de igualmente devotar atenção em breve) que está em causa, ao passo que em TENDER IN LAHORE encontramos o flautista em modo espiritual a rumar ao encontro de uma distante e distinta cultura musical.

Há uma história particular na base de The Piccolo (a prensagem numerada de 200 exemplares disponibilizada no Bandcamp também já voou, como seria aliás de esperar). A edição é carimbada pela Jazz Detective Records do coleccionador Gavin Povey, uma nova editora dedicada a investigar o passado do jazz e a descobrir gravações inéditas que possam garantir renovados olhares sobre o passado. Nesse processo, Povey descobriu uma arca em que foram guardadas as posses do mítico tenorista britânico após o seu desaparecimento precoce em 1973. Tubby Hayes era, sem dúvida, um dos mestres de topo da cena britânica de jazz dos anos 60 e gravou abundantemente, incluindo várias sessões que foram resguardadas em fita e que permanecem inéditas (na já referida e monumental caixa, um dos 11 LPs inclui uma série de “sessões perdidas” originalmente gravadas para a Fontana e agora felizmente recuperadas – esse registo foi igualmente disponibilizado em edição própria): nas notas de The Piccolo prometem-se, aliás, novos lançamentos de inéditos para os tempos mais próximos. Nessa arca guardada durante décadas pela então companheira de Hayes, Solveig Elizabeth Gronland, encontrava-se igualmente um saxofone piccolo, instrumento com que Tubby Hayes nunca gravou nas suas sessões oficiais, mas que, tal como sugere o “detective” Povey, o músico poderia usar nos seus trabalhos de sessões comerciais (era frequentemente requisitado pelas companhias de library music para trabalhos nos domínios da publicidade). A ideia de usar o pouco escutado piccolo de Hayes numa sessão de homenagem liderada por Cawthorne e com recurso a uma série de proeminentes músicos da cena londrina nasceu aí.

Na companhia do trompetista Nick Walters (Tenderlonious editou, através da sua etiqueta 22a, os dois registos de Walters como líder), do pianista Hamish Balfour (que já tocou com os Faze Action dos irmãos Lee), do acordeonista Aidan Shepherd (outro “sidekick” habitual de Cawthorne e, tal como ele, membro do colectivo Ruby Rushton), do baixista Pete Martin (que tocou com os lendários 23 Skidoo e que mais recentemente deu um contributo para registos de Kamaal Williams) e do baterista Tim Carnegie (igualmente membro de Ruby Rushton), Tenderlonious, que assume, além do piccolo, a flauta e o sax soprano, assina aqui uma sessão que procura entrar pela tradição adentro sem a perturbar com assomos modernistas, o que se traduz numa oportunidade imperdível para deixar claro que este “cubista” é bem capaz de retratos de traço mais “clássico”. O material aqui reunido – quatro reverenciadas peças de Hayes levantadas dos álbuns Down In The Village (1963), Mexican Green (1968) e Tubbs Tours (1964) (todos incluídos na já mencionada caixa) – é apresentado de forma concisa em quatro faixas que se quedam pelos cerca de 20 minutos de duração, sem lugar portanto a solos dilatados ou tangentes mais “inventivas”. O tom geral é de reverente vénia, o que é deveras compreensível tendo em conta a justamente mítica estatura de Tubby Hayes. E os músicos surgem todos em absoluta forma, com performances sólidas, como a de Aidan Shepherd que sublinha competentemente no acordeão o tom “orientalizante” do belíssimo “Raga”, um dos temas em que o piccolo é usado com hipnotizante efeito. Já Hamish Balfour demonstra assertivamente que sabe swingar nas brancas e pretas no tema “In The Night” (que fecha este EP), ocasião igualmente aproveitada por Cawthorne para se espraiar de forma elegante no soprano.

Bem diferente é TENDER IN LAHORE, ep de cerca de 16 minutos que resulta de uma viagem do flautista a Lahore, no Paquistão, com o propósito de encontrar o grupo local Jaubi e com eles registar uma sessão. Curiosamente, Edward Cawthorne volta, de certa forma, a evocar um capítulo memorável da história do jazz britânico, apontando ao mesmo tipo de experiência conduzida pelo igualmente lendário saxofonista jamaicano Joe Harriott que na Inglaterra dos anos 60 e na companhia de John Mayer (com quem assinou as históricas sessões de Indo-Jazz Fusions) ou Amancio d’Silva (ao lado de quem carimbou o simplesmente extraordinário Hum Dono) conduziu verdadeiras viagens de descoberta entre o jazz e o oriente.

Com os Jaubi ao seu lado, Tender explora três ragas alinhando-se com a mesma inquietação espiritual que impulsionou as explorações astrais mais remotas de mestres como John Coltrane ou Yusef Lateef, dois nomes, aliás, mencionados como faróis nas notas que acompanham este incrível lançamento, uma viagem a um distante, mágico e absorvente mundo cultural bastante diferente mas que, como aqui tão bem explícito, permanece, ainda assim, aberto a estas pontes construídas com base na comunhão, na humildade e na generosa abertura de mentes. E, igualmente importante, esta é apenas uma amostra das sessões que deverão render um álbum de Jaubi, Nafs At Peace, a ser editado pela etiqueta polaca Astigmatic Records ainda este ano.




[Susana Santos Silva] The Same is Always Different / edição de autor

O segundo registo do quinteto Impermanence liderado pela trompetista Susana Santos Silva foi abordado na anterior edição de Notas Azuis. Que Susana tenha já novo trabalho para apresentar, ainda que limitado (pelo menos por enquanto) a uma existência digital, é apenas indicativo da sua acentuada capacidade de trabalho e da natural irrequietude artística que domina as mentes criativas em períodos de reclusão, sobretudo se forçada.

Registado, como indicado nas notas de capa, na sua sala de estar num apartamento do Porto em Abril e Maio últimos, este trabalho é, como a própria explica, uma reflexão sobre as “diferenças que permeiam a aparente mesmice da vida”. Daí o conceito orientador “o mesmo é sempre diferente” que aqui se explora. Com cada peça a receber como título uma das palavras da frase que nomeia este álbum, não se pode descartar uma subtil ironia na base desta criação (talvez esse fino humor explique que Susana Santos Silva procure em “Same” replicar com o seu trompete o incessante zumbido dos insectos que o silêncio normalmente tem a capacidade de amplificar). Mas há igualmente muita seriedade investida neste exercício de busca introspectiva. “Normalmente o tempo voa tão depressa”, admite Santos Silva nas notas de capa, “que os detalhes nem podem ser vistos. Se uma pessoa desacelerar tudo, que miríade de pequenas preciosidades aparecerão repentinamente. Um mundo de infinitos e curiosos mistérios irá revelar-se”. Susana Santos Silva refere-se, obviamente, a uma contemplativa relação com o silêncio e com a quietude, mas poderia igualmente apontar às recompensas garantidas com a imersão atenta e dedicada na sua música, como as que aqui se revelam.

Se no solo que Susana editou há um par de anos na Clean Feed com uma gravação de uma apresentação no Panteão Nacional se poderia naturalmente falar do diálogo com um espaço específico, particularmente reverberante, capaz de fazer sentir a sua presença até num meio “invisível” como a música, neste conjunto de registos caseiros há um outro tipo de diálogo, não tanto com o espaço do seu “living room”, mas antes com o tempo da sua vida, tornada temporariamente sedentária pela mesma pandemia que nos confinou a todos. E o tempo é a única coisa de que é impossível fugir, pelo que aceitá-lo pode, como conclui a artista nas notas de capa deste trabalho, criar “uma unidade transcendente”.

O ar que circula no trompete, como metáfora para o tempo que circula na vida, a mesma matéria transiente, granular, quente e envolvente, confunde-se depois com o que a atenção concentrada revela: as sinfonias do ar tornado vibração pelas asas de insecto, tornado drone pelo vento que interage com as frestas da janela, tornado manto que cobre, protege e tapa tudo o resto. Os drones que resultam de respiração circular, o processamento do sinal gravado admitindo a própria distorção (como acontece em “Always”) como parte integrante do seu carácter, a diluição da realidade no abismo de uma nota singular ou as texturas mais abrasivas que se obtêm quando o microfone também é lupa que expõe o som até à sua componente “molecular” (caso de “Different”) são vias que Susana Santos Silva aqui percorre, em abstracto discurso sobre os efeitos do tempo quando o imobilismo físico impele a mente a procurar outro tipo de fluxos.

The Same is Always Different é um poderoso documento/hino/estudo sobre o tempo, a reclusão e a contemplação, quando a vista inalterada de uma varanda, dia após dia, esconde, afinal de contas, todos os “infinitos e curiosos mistérios” a que noutras alturas simplesmente decidimos não prestar atenção.


Underground London – The Art Music and Free Jazz that Inspired a Cultural Revolution, Various Artists, 3CD Capacity Wallet – Cherry Red Records

In the mid-1960s, the rigid and colourless British way of life was irrevocably transformed by the emergence of the underground movement, a loose collective of young radicals who introduced new social, sexual and aesthetic perspectives.


[Vários Artistas] Underground London – The Art Music and Free Jazz That Inspired a Cultural Revolution / Cherry Red

Num amplo mural como o que é possível de desenhar ao longo de três bem recheados CDs, expõe-se neste Underground London a vibrante imagem sonora da contracultura que abalou as estruturas da sociedade britânica na agitada década de 60, com ecos que se estendiam das páginas da publicação alternativa International Times ao palco do hoje justificadamente lendário Club UFO.

O título desta antologia da Cherry Red poderá, no entanto, ser algo erróneo e induzir outra ideia em quem nele se foque sem analisar demasiado a “fine print” do subtítulo: trata-se de dar espaço ao som, vindo da cena igualmente subterrânea da América (e não só…), que “inspirou” as mudanças em curso no panorama cultural britânico dos anos 60. E isso significa alinhar o free jazz e as deambulações espirituais, filosóficas e identitárias de gente como Ornette Coleman, John Coltrane, Eric Dolphy, Miles Davis, Sun Ra, Jimmy Giuffre, Yusef Lateef, Charlie Mingus, Chico Hamilton, Albert Ayler, Cecil Taylor ou Thelonious Monk, mas também o inventivo modernismo ensaiado nas mais vanguardistas células da música contemporânea proposta por Gyorgy Ligeti, John Cage, David Tudor, Karlheinz Stockhausen ou Luciano Berio, todos aqui representados com obras de importância reconhecida.

A poesia beat de Allen Ginsberg ou Lawrence Ferlinghetti, o psicadelismo literário de Aldous Huxley e o jazz mais centrado na tradição de gente como Jimmy Smith, Wes Montgomery ou Sonny Rollins são peças igualmente relevantes que se adicionam a este vívido mosaico para acentuar as plurais nuances da época. Mas há mais…

O resultado do impacto dessa vaga revolucionária de música na cena inglesa também se revela nalguns pontos do alinhamento através da inclusão de material de Daphne Oram e Desmond Briscoe, nomes centrais do Radiophonic Workshop da BBC que trabalhava a partir das ideias da música concreta para a construção de uma nova linguagem musical electrónica, do jazz carregado de moderna poesia da actriz Annie Ross, do swing com sotaque brit do também actor Dudley Moore, aqui à frente do seu trio, ou do vibrafonista Victor Feldman e das pontes transculturais erguidas pelo quinteto de Joe Harriott. E até Ravi Shankar aqui se insere para ajudar a explicar porque não tardaria para que até os Beatles fossem acrescentar sitars à paleta de cores com que pintaram a sua pop psicadélica.

Praticamente toda a música aqui incluída pode encontrar-se noutras edições, noutras antologias, algumas até já lançadas pela própria Cherry Red, mas é importante ressalvar que nesta era em que o streaming nos disponibiliza toda a história musical passada num vasto oceano em que seria possível navegar à deriva para sempre como é importante dispor de mapas que não só nos guiem nessas viagens como possam até revelar Atlântidas perdidas ou ilhas mais remotas e ainda pouco exploradas. É exactamente esse o valor deste tipo de objectos e este, generosamente anotado, com input de figuras históricas como Barry Miles e Joe Boyd, contém inúmeras portas de entrada que nos podem enviar a todos noutras demandas ainda mais entusiasmantes. E para tanto basta carregar no play! E é Ornette Coleman e o seu Quarteto que nos dá as boas vindas com o magnífico “W.R.U:”, peça que abria o visionário Ornette! De 1962. Boa viagem!

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