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Ilustração: Riça
Publicado a: 29/04/2020

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #10: Chicago Underground Quartet / Tenderlonious / Fela Kuti

Ilustração: Riça
Publicado a: 29/04/2020

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.


[Chicago Underground Quartet] Good Days /Astral Spirits

O cornetista e trompetista Rob Mazurek tem sido uma constante força de criação e agitação da fértil cena musical de Chicago, liderando vários projectos e participando noutros, sempre com a generosidade que a incondicional entrega implica. A sua “marca” Chicago Underground, aplicada a diferentes formatos, do duo à “orquestra”, rendeu já uma vasta discografia que funciona como um dos possíveis pilares do complexo edifício que abriga as cenas de jazz e música improvisada da Windy City. Agora, quase duas décadas após o primeiro registo do Chicago Underground Quartet, Mazurek, o guitarrista Jeff Parker, o baterista Chad Taylor e o multi-instrumentista Josh Johnson (que participa nesta sessão com piano, teclados e baixo, instrumento que no primeiro álbum do quarteto foi tocado por Noel Kupersmith) reuniram-se em Los Angeles a pedido do produtor Chris Schlarb e num único dia produziram o material de que se faz este interessante, ainda que algo breve, Good Days.

A pretexto da participação numa sessão de trabalho do seu projecto Psychic Temple, Schlarb conseguiu reunir num mesmo espaço o núcleo do quarteto de Chicago. Rob Mazurek e Chad Taylor têm trabalhado frequentemente em duo, e o cornetista/trompetista e o guitarrista Jeff Parker também se têm cruzado com alguma regularidade (Mazurek contribui, por exemplo, para o recente álbum de Parker na International Anthem que por aqui mereceu atenção). A ausência do baixista Noel Kupersmith (com quem Chad e Rob trabalharam frequentemente no Chicago Underground Trio) levou ao recrutamento de Josh Johnson quando o produtor Chris Schlarb propôs aos restantes membros do quarteto a produção de uma sessão a troco da sua contribuição no mais recente capítulo do seu Psychic Temple. E sendo o estúdio em Los Angeles, Johnson que também reside nessa cidade, apesar de ser também natural de Chicago, acabou por ser chamado para responder à proposta de Schlarb (ele participa como saxofonista no projecto The New Breed liderado por Jeff Parker…).

Contrariando o que parece, de acordo com declarações dos vários músicos, ser norma dos projectos Chicago Underground, cujas gravações são normalmente precedidas de algum trabalho de ensaio e preparação da abordagem às novas composições, esta sessão foi montada muito rapidamente, o que obrigou o trio nuclear a recorrer a algumas peças já anteriormente usadas: Jeff Parker escreveu o tema que dá título a este registo a pensar em Mazurek, mas acabou por gravá-lo sem a participação do cornetista no seu álbum de 2012 Bright Light in Winter; ao invés, “Strange Wing”, composta por Mazurek como parte de uma encomenda do Novara Jazz Festival, de acordo com as notas de capa de Peter Margasak, previa também um contributo do guitarrista; já “Orgasm”, o tema de abertura, é uma peça de 1969 de Alan Shorter para que Taylor criou um novo arranjo no âmbito de um projecto que registou em Filadélfia em 2018; e, finalmente, “Unique Spiral” é uma versão alternativa de uma composição de Mazurek que foi pela primeira vez gravada em 2019 pelo seu quarteto acústico assumindo nessa ocasião o título “Encrypts 37”.

O facto do quarteto ter aqui recorrido a material não escrito a pensar exclusivamente nesta sessão (a excepção é a funky “Batida” assinada por Chad Taylor) reforça a ideia de que este regresso do Chicago Underground Quartet não foi exactamente planeado, mas Mazurek, Taylor e Parker mostraram-se à altura do certamente inesperado desafio lançado por Schlarb: “Soa coeso da mesma maneira que soávamos quando éramos uma banda com trabalho regular”, defendeu Parker em conversa com Peter Margasak. “Dá para ouvir isso, mas somos muito melhores agora”. De facto, a impressionante bagagem acumulada nas últimas duas décadas pelos diferentes intervenientes nesta sessão compensa largamente o facto de terem tido pouco tempo para preparar o material aqui executado. Os temas colectivos revelam uma capacidade de interligação profunda, com cada um dos músicos a encaixar-se na perfeição no todo, algo que só acontece quando o conhecimento comum é real. E não são apenas os espaços deixados para os solos, mas a complementaridade tímbrica, sobretudo entre o piccolo de Mazurek e a guitarra de elegante reverb de Parker, que dialogam a um nível praticamente telepático. Há ainda um par de temas solo bem interessantes: “Lomé” mostra-nos Chad Taylor a explorar as “cores” naturais da sua log drum, extraindo dela uma subtil ancestralidade, e “All The Bells” é uma tocante meditação de Mazurek sobre camada subtil de pequenas percussões metálicas e sinos, como se o trompetista se encontrasse no topo de um monte a pregar para um qualquer rebanho tresmalhado…

Belíssimo regresso do Chicago Underground Quartet, portanto. E agora dedos cruzados para que o terceiro registo do grupo não demore outros 19 anos a surgir.


[Tenderlonious] After The Storm /22ª

Edward Cawthorne, saxofonista e flautista, é parte activa no povoado mapa do jazz londrino e, como tantos dos seus pares, manifesta interesse claro na expansão da tradição e na aplicação da sua bagagem jazz em diferentes contextos musicais. O músico que grava sob a designação Tenderlonious e que também integra o projecto Ruby Rushton (além de ter dado um contributo ao Paradox Ensemble de Nick Walters, por exemplo) acaba de lançar o EP After The Storm, criação solitária em que explora o pulso house de Londres, com temas que se espraiam entre o broken beat ou a cadência two step que marcou uma certa era nos clubes, de Brixton ao Soho, de Shoreditch a Camden.

É interessante perceber que Cawthorne tem já alinhados, para Maio, mais dois projectos que apontam em direcções bem distintas: The Piccolo – TENDER Plays TUBBY mostrará Tenderlonious a liderar um ensemble numa reverente homenagem à lenda do jazz britânico Tubby Hayes (usando o piccolo original do músico desaparecido em 1973); ao passo que TENDER IN LAHORE resulta de uma atribulada viagem ao Paquistão para colaborar com os músicos do quarteto Jaubi numa tentativa de ascender ao mesmo plano espiritual a que a música oriental conduziu heróis de Cawthorne como John Coltrane ou Yusef Lateef. A tradição bop e o jazz espiritual são apenas algumas das referências da visão musical de um criador que abraça igualmente os estímulos do afrobeat, das claves latinas, dos grooves funk e, como se torna por demais evidente escutando After The Storm, das mais vincadas marcações de pista do house mais sofisticado que embala as noites de Londres.

Por oposição aos dois mencionados projectos que deverão conhecer edição nas próximas semanas, este novo EP de Tenderlonious (que sucede, em termos estéticos, a Hard Rain) mostra-o a casar o timbre da sua flauta com base electrónica. Sobre camadas de tecido analógico extraído a diversos sintetizadores e o pulsar metronómico mas ainda assim não quantizado e portanto algo swingante das caixas de ritmos, Cawthorne vai desenvolvendo hipnóticos fraseados pensados para se resolverem como sugestões para a deriva espiritual na pista de dança, sempre numa toada de inegável elegância, com os seus solos a não abdicarem do poder de invenção de que o jazz o investiu, mas com os efeitos aplicados à flauta a apontarem o caminho do cosmos, como acontece, por exemplo, em “G FLEX”, puro algodão doce que pede um sistema de som competente e uma pista envolta em penumbra e em profunda ebulição às três da manhã. Lá voltaremos, um dia destes…


[Fela Kuti] Perambulator / Knitting Factory

A obra de Fela Kuti, infelizmente, está espalhada por uma discografia de organização caótica que se espraia entre edições originais e reedições nigerianas, prensagens francesas na Barclay e um sem número de compilações para os mercados europeu americano ou japonês, por vezes atribuindo material da sua banda Egypt 80 à Afrika 70, com lados B de certos álbuns a serem quase aleatoriamente usados como extras em edições de material de épocas desfasadas, etc, consequência algo dramática de sucessivos acordos de licenciamento que ao longo dos anos foram dispersando a sua discografia. E é isso que justifica que uma obra de tamanho fôlego, que inspirou um musical na Broadway, documentários, vários livros (incluindo um editado há dias…) e inúmeros artigos, continue a ter títulos “perdidos” nas brumas da memória. Pontualmente, no entanto, vão sendo corrigidas algumas dessas falhas.

Perambulator foi originalmente lançado na Nigéria em 1983 a partir de material de sessões registadas alguns anos antes, na era em que o exército invadiu o complexo em que vivia e trabalhava, destruindo tudo numa tentativa de silenciar a sua voz incómoda para o regime (o álbum só voltaria a ser relançado, no Japão, como parte de um CD que reunia materiais de Perambulator e Original Sufferhead, álbum de 1984). Agora, o disco volta a ser disponibilizado, para já apenas como edição digital, pela mesma Knitting Factory que nos Estados Unidos tem vindo a propor uma série de boxsets da obra de Fela com curadoria de gente como Erykah Baduou Questlove.

Escutando as primeiras notas do baixo de Owona a que se junta depois a guitarra ritmo minimal de Kiala Ngala percebe-se na perfeição que música andavam os Talking Heads a investigar por alturas de Fear of Music e Remain in Light: este pulsar polirrítmico de sofisticação extrema é o grande legado do afrobeat ao mundo, a prova do poder hipnótico da repetição que efeitos tão devastadores causa numa pista de dança (e é incrível a quantidade de ideias que um colectivo desta estirpe consegue condensar logo nos primeiros movimentos de um tema que se alonga para lá dos 14 minutos). Quando o órgão dissonante (talvez de Dele Sosimi, músico que continua activo) se faz ouvir, fica imediatamente claro que esta é mais uma daquelas explosões de combustão demorada e progressão imprevisível cozinhadas por Kuti que comanda com pulso firme e assertivo e saxofone alto imperial uma “orquestra” em que nos é dada a possibilidade de escutar o brilho do trompete de Lester Bowie, músico proeminente dos norte-americanos Art Ensemble of Chicago que deixa a sua clara presença sentir-se a partir (sensivelmente) da marca dos 4 minutos, com um solo que depois se dilui nos riffs da secção de metais que aqui assumem o tradicional papel de chamada e resposta da música africana. Fela Kuti “discursa” logo depois, antes de transformar em palavras o “pensamento” inicialmente exposto com o saxofone: “African fathers must start to work at the age of 20”, alerta-nos ele, depois de uma longa tirada contra as práticas da medicina europeia –  “no solution”, garante o coro.

No ”lado B”, “Frustration” dispensa o “sermão”, e desenvolve-se como um extraordinário exercício instrumental de quase 14 minutos, pontuado inicialmente por uma passagem de órgão que se espreguiça languidamente por cima de uma repetitiva “cama” rítmica que nos ajuda a compreender as diferentes noções de “swing” em que se apoia o moderno jazz britânico, tão devedor das lições do afrobeat professadas há décadas por Kuti. O uníssono da secção de metais faz pensar na forma como James Brown “tocava” orquestra, tratando todas as diferentes secções como peças de uma imaginária bateria, curvando todos os instrumentos a uma dominante noção de ritmo.

Os solos de trompete (desta vez a cargo de Otenioro Olu Ifayeun), e do próprio Fela no alto ocupam boa parte da estrutura deste tema, com cada um dos solistas em modo de “discurso” livre, a centrar esta sessão em território jazz puro. Diz-se que Fela terá trocado o teclado pelo saxofone após despedir o seu saxofonista principal, tendo aprendido a dominar os aspectos básicos do instrumento numa única noite. Uma lenda, mais do que provavelmente, mas que traduz o facto de Fela nunca ter preferido a exuberância técnica por oposição à expressividade autêntica: o seu tom é de uma honestidade sempre tocante e mesmo quando dispensa as palavras é possível escutar o seu espírito de resistência. Ou de frustração perante os dramas de um país que sempre se recusou a abandonar, como seria o caso aqui. Viva Fela!

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