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Ilustração: Riça
Publicado a: 03/03/2020

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #2: Makaya McCraven / Jeff Parker / Junius Paul

Ilustração: Riça
Publicado a: 03/03/2020
Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.
[Makaya McCraven] We’re New Again / XL Recordings “I did not become someone different/ That I did not want to be/ But I’m new here/ Will you show me around”. As palavras que Gil Scott-Heron começava por declamar no tema que cedeu o título ao seu derradeiro álbum, editado há precisamente 10 anos, ainda hoje ressoam na mente dos que nalgum momento possam ter tentado decifrar o enigma que foi a vida desse atormentado poeta. É que, afastado da música durante mais de década e meia, período em que foi encarcerado algumas vezes devido a problemas com drogas, Gil parecia de facto ter-se transformado em alguém que certamente não desejaria ter sido: basicamente, ele passou de ser o narrador do desolado retrato das ruas das inner cities que era “The Bottle” para ser um dos casos perdidos aí descritos. Esse álbum criado por Richard Russell poderia, portanto, ter sido uma bóia de salvação, um recomeço para um artista que durante tanto tempo foi uma das mais agudas consciências da América pós-Movimento dos Direitos Civis, uma das inspirações máximas dos rappers de caneta mais iluminada. À época, a esparsa produção, no entanto, conferia-lhe uma estranha aura, de disco talvez inacabado, reflexo de sessões em que Gil pouco mais há-de ter tido a acompanhá-lo do que o seu microfone. Esse álbum mereceu uma sequela quase imediata na forma de We’re New Here, trabalho de remistura entregue a Jamie XX. O redondo aniversário que agora se cumpre justifica o regresso às pistas de voz de Gil Scott Heron e, desta vez, o patrão da XL decidiu convocar para o serviço o baterista e produtor Makaya McCraven, um dos líderes da “new jazz thing” que atravessa o presente e que tem deixado fundas marcas de ambos os lados do oceano graças ao trabalho de editoras como a International Anthem ou Brownswood e de artistas como Shabaka Hutchings ou Nubya Garcia, dois nomes da cena londrina com que o artista americano já colaborou, aliás. E a verdade é que We’re New Again – A Reimagining by Makaya McCraven é mesmo a versão definitiva que o génio de Gil Scott-Heron sempre mereceu. Armado com os recursos do jazz e com as ferramentas do hip hop, Makaya soube resistir à tentação de procurar encaixar-se no som jazz-funk de recorte clássico que marcou boa parte da discografia de Gil Scott-Heron e, como aliás se refere no título, reimaginar um outro mundo musical em torno da sua solene e nobre voz. Com a ajuda de músicos como Jeff Parker (guitarra), Brandee Younger (harpa), Greg Spero (piano), Joel Ross (vibrafone), Junius Paul (baixo), , Fred Jackson (sax) e Ben Lamar Gay (diddley bow) e acesso a samples dos seus pais (tal como explicou na entrevista que concedeu ao Rimas e Batidas), Makaya consegue transformar completamente a aura que rodeava a versão original destas canções: o que em I’m New Here soava a austera solidão, um homem abandonado pelo mundo a confessar-se a um microfone, como quem dita as suas derradeiras palavras, aqui ganha a muito mais benigna condição de celebração comunitária em torno de um espírito-guia. Mesmo a convocação por parte de Makaya McCraven da sua própria família através dos samples incluídos em temas como “Where Did The Night Go” reforça a ideia de homenagem, proporcionando à voz de Scott-Heron o conforto de que ele sentia falta desde a partida de Lily Scott, a avó que o criou e que ele evoca no comovente poema que é “Broken Home”. O trabalho que Makaya McCraven aqui assina é, de facto, uma reimaginação digna do génio que a voz de Gil Scott-Heron sempre carregou, combinando da melhor forma diferentes nuances do jazz moderno, socorrendo-se a espaços das lições dos blues, e tomando a cadência do hip hop como o pulsar que agarra da melhor maneira na vida que existe dentro daqueles poemas. Quando se escuta, por exemplo, “People of the Light” ou a breve “This Can’t Be Real”, quase se imagina Gil, de olhos semi-cerrados em frente da banda liderada por Makaya, num pequeno clube fumarento a tocar perante uma audiência jovem, sintonizada com a sua veterania, mas de pés fincados no presente. A mesma audiência que certamente abanaria a cabeça perante o blues-hop de “The Crutch”, o tema em que o poeta nos fala dos abismos da heroína com total autoridade, não escondendo que sabe quão funda pode ser a queda, e que não conseguiria não se comover com a versão do clássico de Brook Benton “I’ll Take Care of You”, a promessa que, no fim, Gil pode não ter conseguido cumprir, mas em que, graças a Makaya McCraven, voltamos a acreditar.
[Jeff Parker] Suite For Max Brown / International Anthem O guitarrista Jeff Parker é um daqueles artistas que funciona, em simultâneo, como cola e como motor de uma cena: por um lado, possui a rara qualidade aglutinadora que permite solidificar, por via da sua entrega ao trabalho intenso com outros músicos, ecossistemas muito particulares; por outro, no entanto, é dotado da intranquilidade que ilumina aqueles que procuram sempre novos caminhos e dessa forma tem, desde o arranque dos anos 90, sido um dos faróis de Chicago, cidade em permanente ebulição musical onde encontrou, vindo da Virgínia, sintonia com os preceitos da Association for the Advancement of Creative Musicians (AACM), a histórica plataforma de agitação estética e política que foi criada em meados dos militantes anos 60 do século passado pelo pianista Muhal Richard Abrams e pelo baterista Phil Cohran. Na populosa metrópole do Illinois, Jeff Parker envolveu-se em avançadas células de implosão de géneros como os Isotope 217, Tortoise e múltiplas dimensões da aventura Chicago Underground, cruzando livremente os terrenos do pós-rock e do pós-jazz contribuindo assim para erguer aquilo que Scott McNiece e David Allen, os homens do leme da International Anthem, designam como boundary-defying music. Suite For Max Brown é a sua mais recente criação sucedendo, no que a trabalhos como líder diz respeito, a The New Breed (International Anthem, 2016) ou Slight Freedom (álbum solo na Eremite Records, igualmente de 2016, que incluía uma extraordinária versão de “Super Rich Kids” de Frank Ocean). O que se começa por perceber escutando atentamente este trabalho, e que atravessa várias outras instâncias do catálogo da International Anthem e é, aliás, aflorado na conversa que o Rimas e Batidas teve com Makaya McCraven, é que o estúdio começa, para estas novas aventuras que partem do jazz, a ser uma dimensão alternativa ao palco, que proporciona diferentes abordagens criativas, permitindo combinar o pulso orgânico de músicos reais com o mais cerebral e reflectido acto de temperar essa matéria com loops e samples. Essa via criativa assumiu-se mais nitidamente em The New Breed, com Jeff Parker a revelar em entrevista ter recolhido inspiração nos novos mundos gizados por Madlib a partir do seu sampler em projectos como Yesterdays New Quintet. Parker integra, portanto, uma geração que tem vindo a desenvolver um novo pensamento jazz: se é possível nomear vários produtores de hip hop que no arranque dos anos 90 se distinguiram pela exploração do jazz que tinham em casa e que era marca de identidade cultural – gente como DJ Premier, Q-Tip, Prince Paul, Diamond D, Large Professor, etc – é também possível argumentar que a nova geração jazz que se impõe nas duas margens do oceano Atlântico através do trabalho de gente tão distinta quanto Karriem Riggins, Kamasi Washington, MaKaya McCraven Shabaka Hutchings ou Kamaal Williams foi claramente marcada pelo hip hop que escutou nos seus discmans a caminho da escola. Que Parker, com 53 anos (e, portanto, ligeiramente mais velho que os músicos atrás mencionados), ainda acuse o peso de descobertas que fez aos 30 é apenas claro sinal da sua generosa abertura. E é essa ampla visão que se sente logo em “Build a Nest”, tema de abertura em que Parker assume bateria, vozes, piano, sintetizador e, claro, a guitarra para desenhar uma cadenciada base a que a vocalista Ruby Parker acrescenta depois a sua seda. E é óbvio que o que se cozinha em estúdio através da auto-gravação de diferentes instrumentos em multipistas ou da interacção de vários músicos em ensembles mais tradicionais – como acontece em faixas como “After The Rain”, “Gnarciss” (que podia ser uma faixa perdida de Madlib da era Yesterdays New Quintet) ou “Max Brown”, peças que contam com aliados como Makaya McCraven, Rob Mazurek, Paul Bryan ou Nate Walcott – pode perfeitamente co-existir com fantasias encriptadas em loops samplados, como no breve, mas fantástico “C’Mon Now” que “usa” a voz de Otis Redding, ou na mais expansiva e cósmica “Metamorphoses” (em que o sampler se cruza com sintetizadores). A ligar essas diferentes dimensões está a guitarra de Jeff Parker, músico capaz de debitar o mais lírico dos discursos, como em “After The Rain”, mas também de soar mais angular e abstracto, como em “3 For L” em que tem por único acompanhante o baterista Jay Bellerose. A elegância que a mãe de Jeff Parker, a senhora Maxine Brown, exibe na foto vintage da capa tem um directo equivalente na música aqui apresentada, rica em detalhe, profunda no plano emocional, desafiante e tão confortável quanto um daqueles velhos sofás que o basto uso já moldou ao nosso corpo. Pérola praticamente perfeita.
[Junius Paul] Ism / International Anthem Chicago há-de ser, de facto, um lugar especial. Um lugar onde um músico como Junius Paul poderia, ao sábado à noite, estar a tocar com o histórico colectivo Art Ensemble of Chicago, acordar no dia seguinte para assumir o seu lugar ao lado do pianista na igreja do seu bairro, passar depois de almoço pelo estúdio para adicionar contrabaixo a mais uma sessão comandada pelo seu amigo Makaya McCraven e terminar o dia numa concorrida jam session no clube Velvet Lounge, espaço hoje já desaparecido que pertenceu ao saxofonista Fred Anderson, outro dos fundadores do AACM. “Foi aí”, explicava recentemente Junius Paul numa peça do Bandcamp Daily, “que eu aprendi a abrir os ouvidos e deslindar mudanças de acordes, progressões e a perceber até onde é que certas coisas poderiam conduzir. O Velvet Lounge é um lugar muito especial. Muitos dos meus bons amigos e muita gente que está no álbum vem daí. Os começos dessas relações aconteceram no Velvet Lounge”. O contrabaixista refere-se a uma complexa, mas apertada rede de cumplicidades artísticas que garantiu a presença nos créditos de Ism de gente como Tomeka Reid (violoncelo), Rajiv Halim (sax alto), Makaya McCraven (que é o produtor de serviço e um de três bateristas presentes), Scott Hesse (guitarra), William Kirk (sintetizador), Justin Dillard (piano), Irvin Pierce (sax tenor) ou Marquis Hill e Corey Wilkes (ambos em trompete). O álbum que marca a sua estreia como líder foi gravado entre o Verão de 2016 e o início de 2019 em diversos estúdios e salas de Chicago, funcionando portanto quase como o relato de uma viagem muito especial em que o contrabaixista se foi cruzando com ensembles de diferentes fôlegos (trio, quarteto e sexteto). Antes de mais nada, é nítida a proficiência de Junius Paul nos múltiplos contextos formais, mas também na exploração de diferentes direcções, encaixando-se com igual perícia numa destravada corrida livre apropriadamente titulada “You Are Free to Choose”, numa abstracta e atonal pintura aural como “Twelve Eighteen West”, que soa como se alguém andasse em busca de um qualquer objecto numa velha garagem cheia de tralha, ou no mais hip hop dos exercícios aqui compilados que é “Baker’s Dozen”, em que o seu baixo assume o peso da estrutura, carregando os companheiros por uma deriva cinemática que poderia ilustrar uma cena de Ocean’s Eleven. E só para que não haja dúvidas da amplitude de recursos de que se pode socorrer, Paul mostra-nos em “Asé” que o seu baixo tanto debita o estrondo do trovão como assume a elusiva condição da sombra, capaz de se colar a qualquer groove ou ideia, por mais sinuosa que possa revelar-se. Mas é nos expansivos “Spocky Chainsey Has Re-Emerged” e “Paris” (temas que se estendem, respectivamente, até bem perto dos 20 e dos 12 minutos), por entre bateria, piano eléctrico e trompete, que se compreende melhor o seu assertivo pulso, autêntico farol que aponta o caminho ancorando cada ideia avançada pelos seus companheiros com desenhos altamente criativos, de uma tonalidade límpida. A coloração do instrumento de Junius Paul torna-se especialmente nítida em “Ma and Dad”, tema em que conversa com o lírico violoncelo de Tomeka Reid enquanto Isaiah Spencer trata o seu kit como se estivesse a ilustrar sozinho um espectáculo de teatro de sombras chinesas. Com o arco a arredondar o seu discurso, Paul circula até em torno do som do motor de um potente motociclo que há-de ter na hora da sessão passado em frente ao Confort Station, na Logan Square. É mesmo verdade: Chicago é uma cidade tão especial que nem os motores perturbam o andamento de músicos em profunda concentração. É este o “ismo” a que Junius Paul alude no título: “O ismo”, reforça ele, “é ser quem és e aceitar isso. É acerca de aceitar o que é agora mesmo e perceber como é que isso se liga com outras pessoas. O ismo”, conclui, “é ser, apenas ser”.

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