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Publicado a: 05/08/2017

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[TEXTO] Rui Miguel Abreu

Há algo de romântico na narrativa que uma certa intelligentsia internacional procura apresentar aos seus leitores acerca da batida de Lisboa quando remete as suas origens para um diálogo cultural resultante da diáspora, com as diferentes coordenadas do semba e do funaná, do kuduro, kizomba e afro house a inspirarem a criação de um híbrido futurista. Algo do género aconteceu, de facto, mas ao invés de um diálogo, as particulares condições socio-culturais dos bairros periféricos de Lisboa – como muito bem perceberá quem já tenha caminhado pelas ruas da Arrentela, da Cova da Moura, do Vale da Amoreira ou da Quinta do Mocho – favoreciam antes a criação de uma gloriosa e lenta cacofonia imposta ao longo de gerações, com os sistemas de som dos quartos e das salas, das cozinhas e dos cafés, das mercearias e das festas de rua, dos carros e dos leitores de MP3 nos recreios a servirem à comunidade uma mistura muito mais complexa que incorporaria, certamente, os balanços das identidades de origem – sobretudo os importados de Angola e Cabo Verde, mas também de São Tomé e Príncipe e Moçambique e Guiné – e ainda o que quer que a MTV pudesse debitar em qualquer momento, os ecos do house escutado nas discotecas de fim de semana, os sons mais comerciais da rádio… Tudo absorvido a um tempo, como as peças de um complexo puzzle que se despejam sobre uma mesa de uma vez, não permitindo imediatamente a percepção da imagem que escondem.

Nídia É Má, Nídia É Fudida é a última etapa num processo de crescimento pessoal que pode funcionar como modelo para a própria cena mais vasta em que Nídia se insere. Quando as buscas de material para os alinhamentos “tropicais” do programa Ginga Beat da então Red Bull Music Academy Radio me conduziram, há uma meia dúzia de anos, até à página soundcloud de Nídia Minaj a descoberta de um vibrante conjunto de peças que se apresentavam como rajadas de futuro, quase só feitas de nervo, sempre pontuadas por samples de voz que eram como tags numa parede, marcas de uma críptica identidade que remetiam para um tal “estúdio da mana”, percebeu-se imediatamente que havia ali uma inescapável amostra de algo novo. As peças de Nídia – que então assinava Nídia Minaj, uma nada subtil vénia a uma das tais estrelas MTV que despontavam no meio do caos de referências apontado anteriormente – eram ultra-minimais propostas rítmicas que pareciam ser a conclusão de um processo de depuração das pistas que tinham sobrevivido à passagem do Vale da Amoreira, onde dançava com as Kaninas Squad, até Bordéus, em França, para onde a sua família se mudou quando contava apenas 14 anos. Um computador e uma vontade clara de agarrar esse som que ecoava na sua cabeça – meio memória, meio desejo – trouxe Nídia até aqui, a 2017. E ouvido lado a lado – o material primordial que ainda tem no Soundcloud e as novas peças que compõem Nídia É Má, Nídia É Fudida – a ideia que se obtém é que a música soa simultaneamente igual e diferente: o pulsar nervoso e urgente parece ser o mesmo, mas Nídia aprendeu a arte da tangente, da deriva, e cada um dos seus beats incorpora agora muitos mais elementos sónicos. Parecem fotografias da mesma paisagem, mas agora com muitos mais pixeis, mais foco, maior nitidez.

É importante perceber que este é o primeiro álbum de artista no catálogo da Príncipe que, como muito bem sabemos, inclui material de verdadeiros faróis desta cena – de DJ Marfox a DJ Nigga Fox, DJ Firmeza e DJ Nervoso. Num momento de intensa discussão das questões de género no seio da música electrónica este não é um facto de somenos. Ao longo das onze faixas do álbum (mais três na versão algo mais dilatada em CD), que quase sempre se detêm abaixo dos três minutos (apenas três temas ultrapassam esta marca enquanto que a faixa mais curta se extingue após meros 48 segundos), a intensidade urgente que sempre foi sua marca permanece. A diferença é que Nídia consegue agora injectar muito mais drama dentro de cada uma das faixas. Escute-se, por exemplo, “Dedo”: uma dramática linha de sintetizador, samples sobrepostos de vozes masculinas, pads que carregam ritmo, um pulsar afro-house e uma mais ampla distribuição de frequências pelos espectros de graves transformam esta peça numa insuperável bomba para as pistas, um tema que parece conter tanto de 24 de Julho às 5 da manhã numa noite de sábado de 1999 como de fim de tarde no Boiler Room em Nova Iorque em 2017.

A assinatura aural de Nídia parece resultar do seu completo desrespeito pelas “regras” de produção: na sua amálgama de sons, nem todos têm que fazer “sentido” – há dissonâncias, choques entre ritmos e pulsares sintetizados, ruídos que parecem aparecer sem serem solicitados, caindo nos arranjos como elementos que apenas servem para perturbar o flow, como se Nídia não quisesse nunca ceder a um arranjo quadrado e certinho. Mas as cadências que cria com as suas tarolas são sempre irresistíveis, puxando-nos para dentro da acção sem apelo nem agravo. E, curiosamente, para uma música que tanto respira futuro, há muito de nostálgico por aqui também como, por exemplo, “I Miss My Ghetto” deixa claro: uma belíssima missiva de saudade a uma memória de crescimento que se apoia num curtíssimo sample de uma qualquer distante faixa de piano house, cortada e processada até não ser mais do que um simples fragmento aural, uma sugestão de algo maior impossível de adivinhar agora, mas ainda capaz de fazer disparar alarmes emocionais. Perfeição absoluta, algo que não falta por aqui. Na verdade, só uma coisa parece não sobrar a Nídia: tempo! A sofisticação das suas ideias quase que parece implorar por maiores escalas na apresentação dos seus temas, por mais tempo para que a deriva na pista não seja interrompida pela ideia seguinte que mal nos eleva parece logo desvanecer-se para dar lugar a outra coisa. Não é defeito, é feitio, mas não deixa de levantar a questão: “e se ficássemos aqui um pouco mais?…”

 


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