[TEXTO] Rui Miguel Abreu
O título do novo álbum dos Daft Punk – o disco mais falado de 2013 e certamente um dos mais aguardados – tem uma palavra que permite descodificar todo o processo de pensamento de Thomas Bangalter e Guy-Manuel de Homem-Christo: “memórias”. Muita da música electrónica do presente é produzida usando a mesma ferramenta base – o computador – e os Daft Punk acreditam que isso lhe impõe uma aura genérica – “uma paisagem musical uniforme”, como explicou Thomas Bangalter nas páginas do New York Times, o que os levou a descartar caixas de ritmos e samplers – há apenas dois samples na totalidade de Random Access Memories! – em favor de… seres humanos. Um gesto radical se se considerar que os Daft Punk são os dois robôs mais celebrados de toda a cena electrónica, tendo-se tornado verdadeiros símbolos de um mundo tecnologicamente avançado graças à sua cuidada imagem que inclui aqueles dois capacetes que injectam mistério na sua identidade: serão humanos? Aliens? Ciborgues? Por isso, o novo trabalho começa por se distinguir dos anteriores porque os Daft Punk quiseram aceder, de forma nada aleatória, às suas memórias e recuar até um tempo em que o produtor mais do que comandar máquinas, comandava pessoas, colocando-se no papel de gente como Quincy Jones – que produziu os discos-chave de Michael Jackson – ou, claro de Nile Rodgers, homem dos Chic, e Giorgio Moroder, mestre disco, dois dos convidados do novo trabalho. As pessoas, como por exemplo o baterista John Robinson que emprestou o seu pulsar a Off The Wall de Michael Jackson, permitiram dar ao novo trabalho dos Daft Punk, e ainda de acordo com declarações ao New York Times, “uma infinidade de nuances, nos ritmos e nos grooves”. Algo que as máquinas não possuem. Uma memória real.
Gravado entre Paris, Los Angeles e Nova Iorque, o novo álbum dos Daft Punk faz desfilar pessoas de várias gerações e estilos musicais – de Chilly Gonzalez a Pharrell Williams, de Panda Bear a Paul Williams. Não se contendo numa época ou género, os Daft Punk criaram um poderoso hino à história da própria música, pelo menos da música que desde os anos 70 faz as bolas de espelhos dos clubes brilhar com mais intensidade. De “Get Lucky” a “Fragments of Time”, Random Access Memories é um tratado na forma como o estúdio ainda pode superar a memória interna do computador, como as pessoas, e não os plugins, podem ser a resposta para criar momentos únicos. Oito anos depois de Human After All – pausa que foi apenas interrompida com o trabalho na banda sonora do filme Tron: Legacy. em 2010, e o álbum ao vivo Alive 2007 – os Daft Punk reapresentam-se ao mundo como ícones incontestados de uma cultura que se tornou global graças à tecnologia mas que ambos acreditam não dever cair na armadilha de viver num presente eterno. A memória é a chave.
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Texto originalmente publicado na revista Divo.