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Texto: Paulo Pena
Fotografia: Hugo Lima
Publicado a: 19/08/2023

Um dilúvio de talento.

Vodafone Paredes de Coura’23 — Dia 3: não vimos já este filme antes?

Texto: Paulo Pena
Fotografia: Hugo Lima
Publicado a: 19/08/2023

Talvez sejamos nós que não sabemos, afinal, onde realmente estamos. Primeiro, por virmos em crer que, em pleno mês de Agosto, não seriam necessárias precauções face às eventualidades meteorológicas além de, vá lá, um protector solar. Depois porque, novamente, há quem nos faça crer, por sua vez, que o “Coura Fesitval”, como lhe chamava Jessie Ware no primeiro dia, decorre no Porto — desde os black midi a Yung Lean (e, se tivéssemos uma coroa sueca por cada vez que o rapper de Estocolmo se dirigiu à Invicta, estava o jantar dessa noite pago). E, finalmente, porque a carga de água que enfim se deixou cair na tardia hora de ver Little Simz nos transportou de volta ao concerto de Kendrick Lamar, no primeiro dia do Primavera Sound deste ano, no Parque da Cidade — ou seja, no Porto.

Dito assim, fica a ideia de que o terceiro e mais concorrido dia de Vodafone Paredes de Coura se resumiu a uma noite. Mas, ainda o céu ameaçava estragar a festa (sem sucesso, adiantamo-lo já), aproveitávamos nós o resto de claridade de um dia cinzento com os KOKOROKO, antes de embarcarmos no Expresso Transatlântico já debaixo de chuva cínica. Numa autêntica jam session sob chuva-molha-parvos-que-não-levam-impermeável-para-Paredes-de-Coura, o afrobeat de pendor jazzístico do conjunto londrino, que tanto vem de Pat Thomas como de Fela Kuti, teve pulso suficiente para pôr gente a dançar ao ritmo destes sete brilhantes músicos, seguros do seu papel — quer na música, quer no próprio festival — e embrenhados no som que, juntos, compõem. 

O mesmo vale para o fantástico duo formado entre DOMi & JD BECK, que sucedeu aos homólogos britânicos no palco principal. Ambos ainda a adaptarem-se às vicissitudes do reconhecimento em grande escala e de tocar em palcos maiores, fazem-se valer do sarcasmo como mecanismo de defesa para enfrentar multidões mais ou menos familiarizadas com a música que começaram a tocar não assim há tanto tempo. NOT TiGHT, o primeiro trabalho composto a dois entre a pianista francesa e o baterista norte-americano, tem apenas um ano e um par de semanas de vida (disco de estreia que conta com participações de gente como Thundercat, Mac DeMarco, Herbie Hancock, Anderson .Paak — que os apadrinhou na sua Apeshit —, Snoop Dogg ou Busta Rhymes, há que assinalar), mas conquistou desde logo a crítica entusiasmada com as novas metamorfoses do jazz.

Jazz foi, por isso, o que Domitille Degalle e James Dennis Beck trouxeram ao anfiteatro escorregadio do Taboão. Jazz ao quadrado, mesmo. Tanto no vigor impressionante de Beck ao comando das baquetas quanto na agilidade assombrosa de Domi Louna sobre os vários teclados. Virados um para o outro, num confronto tête-à-tête musical — com Domi sentada numa espécie de sanita, assinale-se —, passaram a pente fino o único longa-duração que têm em carteira (não havia grande alternativa, nas palavras irónicas de JD), mas passaram, ainda, por temas de figuras que os inspiram como Aphex Twin (que vão ver tocar, hoje, no Victoria Park, em Londres, segundo nos confidenciaram) e Jaco Pastorious. Novatos nestas lides, mas a tocar como gente muito, muito grande. E, mais do que dois concertos que a generalidade do público, sem o saber, precisava de ver, música que o colectivo de origens quenianas e o par franco-norte-americano tinha de tocar.

É que há uma grande diferença entre fazê-lo por gosto ou por necessidade. Não pelos contextos mais óbvios, porém. Querer ser músico é um desígnio louvável — que o diga quem, frustrado com essa impossibilidade, escreve sobre quem efectivamente o pratica —, mas há muito boa gente que não tem querer nesta matéria: simplesmente tem de, não pode nem consegue deixar de, vive para. Essa pequena grande diferença é evidente no caso de cada um dos membros de KOKOROKO, mas — mais ainda, atrevemo-nos — também no do trio basilar de Expresso Transatlântico: a alegria de Sebastião Varela por tocar ao lado de bons amigos que são como (e num caso particular, de facto) família no seu festival de eleição, a urgência do seu irmão mais novo Gaspar em exorcizar as cordas da sua guitarra portuguesa, ou a entrega, discreta e simultaneamente tangível, de Rafael Matos à bateria, tornam clarividente — mesmo que eles não o tivessem dito em conversa publicada por aqui no mês passado — aquilo que alimenta estes três homens (mais dois, ontem) que nem só de pão vivem. 

Não é, ainda assim, por acaso que o nome de Gaspar venha em primeiro lugar quando se fala da tripla lisboeta: para lá das associações mais óbvias a Madonna e Celeste Rodrigues, o protagonismo do jovem guitarrista em palco é assumido e merecido: com a actuação no Palco Yorn como bitola, a música já de si extremamente persuasiva dos Expresso Transatlântico ganha uma força ainda maior com a performance deslumbrante de Gaspar, autêntica rockstar (por quem se ouviam gritos femininos eufóricos nas primeiras filas) emprestada ao fado, que tanto se esperneia em solos a doze cordas como desce do palco em direcção ao público com a guitarra às costas ou “trepa” a bateria do parceiro Rafael para o assistir na percussão. Não é disto que se espera quando se ouve falar na mística de Paredes de Coura?

Não perguntem a Yung Lean, Kenny Beats ou Little Simz. Para os dois primeiros, esta foi uma estreia a tocar em solo português. Um achava estar no Porto, o outro esteve, mesmo, no Porto durante o dia todo. Mas, apesar de tudo, o sueco revelou-se um admirador confesso de Portugal, tanto que revelou ter estado por cá várias vezes, uma das quais durante dois meses em regeneração de um coração partido. Quem diria que as nossas fronteiras viriam a ser refúgio predilecto de um Sad Boy… 

Bom, a julgar pelas fileiras da frente, há pelo menos um estado de espírito comum entre Jonatan Leandoer Håstad e umas centenas de jovens portugueses. O que não é de estranhar, no entanto. Afinal de contas, o escandinavo continua a ser um fenómeno à escala global, anos depois de se ter evidenciado enquanto improvável percursor de toda uma escola graduada a partir do SoundCloud. Depois de uma espiral negativa perigosa, resultado dessa fama aparecida do dia para a noite, o autor de trabalhos como Unknown Death 2002 e Unknown Memory permitiu-se a explorar outros caminhos sonoros — como é o caso de Sugar World, disco que editou no início deste ano em nome do seu alter ego jonatan leandoer96 —, mas foi clássicos que deu à pequena legião de fãs que misturou lágrimas com gotas de precipitação: sozinho, num palco completamente esvaziado fora um tripé para apoiar o seu microfone armado com um par de asas douradas, carregou no auto-tune temas como “Afghanistan”, “Ginseng Trip 2002” ou “Agony” entre agradecimentos incansáveis ao Porto. 

Paredes de Coura perdoa. Já Kenny Beats, não. Foi ele o responsável por encerrar o terceiro dia de festival ainda debaixo de chuva intensa e perante um mar de festivaleiros inconformados com uma molha irremediável. Do produtor que se estreou o ano passado em matéria de discos em nome próprio, e que tem sido uma figura incontornável no rap norte-americano feito na última década (como demos conta, aqui, por ocasião da celebração dos 50 anos da cultura hip hop), esperava-se um quota mais generosa no que ao género visado diz respeito. Mas a tarefa do autor de LOUIE, pelas quatro da madrugada, depois de uma série de horas de pluviosidade imperdoável, também não se afigurava nada fácil: arrancar com Queen e terminar com Nirvana acabou por ser, à imagem do produtor e DJ do Connecticut, uma receita improvável, mas vencedora.

Ademais, vê-lo pela primeira vez ao vivo era o consolo que nos servia à hora crítica que distanciava o fim do concerto de Little Simz à actuação de Kenneth Blume. Isto porque, assim como nos aconteceu em Junho passado, foi para ver a rapper britânica que nos deixámos ensopar tanto quanto no espectáculo de Kendrick Lamar. Moral(e) da história: valeu mais o da autora de NO THANK YOU do que o de Mr. Morale & The Big Steppers. Também ela, a princípio, sozinha ao comando das operações, não tirou o pé do acelerador (bem pelo contrário) quando a ela se juntaram os seus guitarrista e baixista. Dos zero aos cem com toda a subtileza, esta “Woman” veio provar-nos, em pessoa, que é rainha num género predominantemente masculino (e tantas vezes misógino) — e fê-lo, ainda, por Sometimes I Might Be IntrovertDrop 6 GREY Area, com intensidade admirável, paixão contagiante e entrega genuína.

O coração que, ainda assim, não chegou para replicar o sentimento do conterrâneo Loyle Carner viu-se compensado pelo diafragma de mecânica suíça, e ao contrário da permissividade artística de Yung Lean, o rap de Simz é bastante objectivo: faz-se de palavras e ideias fortes e de influências directas e identitárias. O seu concerto, oleado como muito poucos dos que vimos até hoje, é por isso paradigmático da sua música: falhar é coisa que, ainda que Simbi o reconheça nos mais variados aspectos da sua vida pessoal transposta para a sua discografia, não assiste à MC britânica de raízes nigerianas. E, como tal, é a vencer que, disco após disco, concerto após concerto, se vai firmando (se é que já não está instalada no topo dessa cadeia) como uma das mais importantes vozes do hip hop contemporâneo. A perfeição, no seu caso, não se procura. Repete-se.


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