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Fotografia: Hugo Lima
Publicado a: 08/06/2023

Contra ventos e tempestades.

Primavera Sound Porto’23 — Dia 1: do apoteótico regresso de Kendrick Lamar à consagração de Baby Keem

Fotografia: Hugo Lima
Publicado a: 08/06/2023

Ao início, tudo pareceu só um susto. Apesar das previsões, a chuva tardava em aparecer ao longo da nossa viagem até ao Porto, acendendo-se em nós a esperança de que, talvez, o primeiro dia do festival pudesse decorrer sem grandes solavancos. À chegada, um céu minimamente aberto permitia o raiar do sol sobre os nossos corpos e a temperatura convidava à indumentária de Verão — com um casaco na mala de prevenção, claro, que mais à frente se viria a tornar peça fundamental para a nossa “sobrevivência” no recinto.

Este ano, o Primavera Sound apresentou-se com uma disposição no espaço ligeiramente diferente, logo a começar pelo palco principal, apelidado de Porto, que se mudou para mais perto da entrada, um pouco a seguir a onde antes residia um dos palcos secundários. Foi pena que não houvesse alcatrão suficiente para albergar todas estas pessoas na 10ª edição do certame, porque a chuva viria a tornar certas zonas num autêntico lamaçal. Mas nada a que um festivaleiro não esteja habituado. Por cá, resistimos sempre.



Já minimamente ambientados a esta nova forma de ver as coisas, um pouco depois da performance empática e inaugural de Georgia no palco Vodafone, os murmurinhos eletrónicos começaram a fazer-se ouvir no Parque da Cidade. Energizada pela nostalgia britânica que a sua carreira simboliza, Alison Goldfrapp subiu ao palco Porto para tornar esse passado num futuro promissor. Apesar do público estar habituado ao formato duo, foi sem o seu parceiro Will Gregory e com a dose de misticismo certa que a música comandou a primeira nave espacial a levantar voo do festival. Icónica pelo carisma performativo e energia inebriante que carrega desde o início do seu legado electro-pop futurista, Goldfrapp representa uma era da música pop electrónica inglesa marcada por canções como “Ooh La La” e “Train”. Insaciável e acompanhada de três bailarinos que encheram o palco de força e empoderamento, foi com “Fever” que decidiu despedir-se de um público absorto pela sensualidade e presença da artista.

— Maria Carvalho



Já quando a esperança por uma noite de céu limpo começava a desaparecer, toda a vontade de aguentar a tempestade tornou-se mais forte depois do um dos mais aguardados concertos da noite. Baby Keem, acusado por alguns de nepotismo e por outros de ser sensacional, subiu ao palco principal do Primavera Sound para apresentar o seu trabalho como um dos rappers mais cortejados da atualidade. Munido da energia necessária para manter o seu público debaixo da chuva, que entretanto surgiu em cena e se foi fazendo notar com cada vez mais intensidade ao longo do seu alinhamento, o artista fez-se ouvir e “abençoar” pela capacidade de ultrapassar os obstáculos do tempo, da vida e da própria música.

É notório o esforço e sucesso que o rapper americano tem feito para construir a sua própria identidade, tendo em conta que o seu trabalho começou por demos que o próprio produzia para Kendrick. Ficou no ar a expectativa de os ver juntos a trocar os versos de alguma das várias colaborações que ambos já protagonizaram, mas esse momento estaria reservado apenas para mais tarde, já que o Mr. Morale também estava escalado para o primeiro dia do festival. A solo, além do ímpeto e atitude à la incendiário com que se atirou a cada faixa, Keem teve a multidão na palma da sua mão, sempre disposta a entoar consigo muitos dos seus hinos que moram em The Melodic Blue ou Die For My Bitch. A dar ainda mais ênfase a uma performance diabólica — tão típica destes novos jovens do hip hop que vivem da adrenalina e da rage — os visuais que o acompanharam em palco eram soberbos, fazendo parecer bem reais os cenários de uma gruta ou de uma Lua cheia de tons alaranjados que surgiram atrás de si. Apesar da molha, os corpos estavam bem aquecidos e as articulações não fraquejaram na hora de nos fazermos à pista rumo à próxima paragem.

— Maria Carvalho



Não há tempo a perder neste primeiro dia de festival, até porque os concertos são poucos, não se sobrepõem e a música está impedida de cessar. Ainda tentávamos desembaraçar-nos da multidão que se tinha aglomerado para ver Baby Keem, e lá ao longe já se escutava o som mutante de um saxofone. Era Shabaka Hutchings a criar as primeiras camadas de som do alinhamento dos seus The Comet Is Coming, que em poucos minutos se viu acompanhado pelos habituais colegas de estúdio e de palco — Dan “Danalogue” Leavers foi o mago que operou as teclas e componentes electrónicas, e enquanto Max “Betamax” Hallett lançou trovões da bateria como se as suas baquetas fosse martelos de Thor, reformulando por completo o conceito de power trio.

Provavelmente, grande parte dos attendees ainda não terá dado conta de que o líder musical-espiritual desta banda anunciou que 2023 será o seu último ano a tocar saxofone. A sua transição para outros instrumentos de sopro significará o “fim” do grupo, pelo menos da forma como o conhecemos hoje. Esta foi, por isso, uma das últimas oportunidades de os vermos neste formato, algo que traz sempre uma vibração especial à ocasião. E cremos que não era apenas da nossa cabeça: nos momentos em que os holofotes incidiam sobre os seus solos, havia de facto uma aura diferente em torno de si e o pulmão soprava com a força de quem quer dar tudo naquele emblemático pedaço de metal antes da despedida.

Entre temas de Trust In The Lifeforce Of The Deep Mystery ou Hyper-Dimensional Expansion Beam, os três músicos ingleses ofereceram total entrega aos seus instrumentos e o som que emitiram convenceu tentou convencer as pessoas a não abandonarem o espectáculo a meio — uma valente chuvada incidiu especialmente sobre este concerto e nem toda a gente aguentou a molha. E se a água caía do céu, do palco vinham os relâmpagos que complementavam o quadro. Shabaka e companhia não deram tréguas na interpretação da sua bela fusão de jazz com rock, obrigando-nos a dançar com as roupas ensopadas. Movimentos corporais pouco ortodoxos, diga-se, a casar na perfeição com a forma desenfreada com que o trio maravilha performava à nossa frente: volta e meia, Shabaka parecia entrar em transe completo, quase que a soprar réstias dos espíritos de John Coltrane, Ornette Coleman ou Wayne Shorter pelo seu sax; Danalogue chegou a rasgar nas teclas quase deitado, com uma perna pousada sobre um dos suportes da sua maquinaria; no auge da “pedra”, Betamax chegou a colocar-se de pé para dar paulada seus tambores. Há bandas com mais décadas de estrada que certamente teriam ficado bem tímidas depois desta tareia.

— Gonçalo Oliveira



Não dar nada por garantido é sempre uma lição a ter bem presente. Isto vale tanto para quem foi na fé, até à última, de que a depressão Óscar não se ia manifestar no Parque da Cidade, como para Kendrick Lamar, que recordava justamente essa evidência quando, já na recta final do seu concerto, no palco principal da décima edição do Primavera Sound no Porto, se mostrava tão surpreendido quanto agradecido perante uma multidão de dezenas de milhar de pessoas debaixo de chuva a espaços intensa.

Não nos deu tréguas a precipitação, mas não marcar presença no regresso de K-Dot à Invicta quase dez anos depois — ainda para mais num primeiro dia de festival a meio gás, com pouco mais do que o parente Baby Keem por assistir — não era, por muita água que caísse lá de cima, opção. Agora, nestas circunstâncias desfavoráveis ao espectador médio, um inofensivo atraso de dez minutos paga juros no pêlo de quem está  desde as onze a sacudir o capote mal amanhado. “All my fans, all my beautiful fans…”, vem-nos à cabeça mal a progressão introdutória de “The Heart Part 5” anuncia a chegada de “Kung Fu Kenny”. É, porém, “N95” que inaugura o alinhamento programado para a grande actuação da noite — e uma das mais cobiçadas do festival portuense, este ano reconfigurado e já sem patrocinador maior a reboque.

O rapper de Compton não é, definitivamente, o mesmo desde a última vez que pisou um palco português, em Julho de 2016, no Altice Arena, por ocasião da 22.ª edição do Super Bock Super Rock — adiado o seu regresso, previsto para 2020 no NOS Alive, por razões ainda inesquecíveis. Mas o peso da obra que o trouxe por duas vezes a Portugal mantém-se à terceira: se “A.D.H.D.” serviu para testar a longevidade da plateia, good kid, m.A.A.d city revelou — em temas como, à cabeça, “Money Trees”, “Swimming Pools (Drank)” e “Bitch, Don’t Kill My Vibe” — que o primeiro álbum de estúdio oficial do consagrado MC californiano continua a ocupar um espaço preponderante no coração de quem o segue há mais de uma década.

DAMN. não fica atrás nem na quota do alinhamento, nem na adesão do público; To Pimp A Butterfly não cai em esquecimento, mas só dá ares da sua graça por intermédio das excepcionalmente expansivas “King Kunta” e “Alright”; e Mr. Morale & The Big Steppers surge como terceiro vértice (no ângulo mais agudo) de um triângulo obtuso entre o segundo, quarto e quinto longa-durações do cabecilha da pgLang. Também não se esperava muito mais que isto (que já é tanto, atenção!) de um concerto de Kendrick Lamar em contexto de (mais um) festival. Que ele se lembre — porque fez questão de o mencionar — que cá esteve numa fase bem diferente da sua carreira já não é, para nós, povo de complexo de pequenez, nada mau. Só que, para quem (não) esteve na Accor Arena em Outubro do ano passado, uma hora e trocos de Kendrick Lamar em palco, acompanhado apenas por dois sósias decorativos — que depois passaram a três, e depois a quatro, e depois a cinco, e depois a seis e a sete —, a passar em revista uma boa parte dos seus grandes êxitos já sabe a pouco. Nem um cheirinho de “The Hillbillies” aquando da reaparição de Baby Keem na hora de “family ties”, sinceramente. Nem um encore, tão merecido por quem não se vergou perante o temporal. Eram só mais umas, Mr. Morale…

— Paulo Pena


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