“It’s a movie tonight, Paris”, antevê Tanna Leone no início dos inícios. Fala de uma noite especial que está prestes a começar. Para filmes e noites especiais não podia haver cidade mais indicada que a capital francesa, onde há seis anos Portugal pintou a Torre Eiffel com as cores da sua (nossa) bandeira, no mesmo ano em que Kendrick Lamar pisou um palco português pela segunda — e até agora última — vez, num concerto inserido no festival Super Bock Super Rock, de Altice Arena lotado a fazer o rapper crer que os cânticos em honra de Éder (herói improvável da final do campeonato europeu de selecções de futebol, em que Portugal venceu a anfitriã França com um golo para lá do tempo regulamentar) lhe eram dirigidos.
A postura com que o autor de good kid, m.A.A.d city fitou, imóvel e visivelmente emocionado, a plateia do Parque das Nações nesse concerto de 2016 repetir-se-ia em 2022, a 22 de Outubro, na Accor Arena, depois da deixa “This is me and I’m…”, de “Count Me Out” do novo Mr. Morale & The Big Steppers, cortar para um longo silêncio em que Kendrick avança à boca de cena (num palco bem maior) e sente pela primeira vez nesta noite a energia do público, sem estar a cantar. Corta para “Money Trees” e esse mesmo público entra num nível de êxtase maior que nunca.
Já lá vão 10 anos desde que “Money Trees” se tornou um mantra de Kendrick Lamar. E a passagem do rapper de Compton por Paris numa tour — The Big Steppers Tour — com 65 paragens coincide com o 10º aniversário da edição do seu segundo álbum, talvez o mais aclamado da sua carreira até hoje. Daí que seja realmente uma noite especial: o filme é a Amazon que o transmite em directo, para todo o mundo, em canal aberto através do seu serviço de streaming Prime Video. Uma oportunidade única de ver um concerto que, pelas imagens que nos vêm chegando à medida que a tour se desenrola, está num patamar completamente diferente dos shows de arena que habitualmente vemos das maiores estrelas mundiais. E Kendrick Lamar já é, na verdade, um desses astros há largos anos.
É também nesta noite que Baby Keem casa os anos: o primo do protagonista da noite, que sobe a palco depois de um aquecimento breve do também afiliado da pgLang Tanna Leone, celebra 22 anos de idade a 22 de Outubro de 2022. Talvez seja por isso que se mostra bem mais expansivo do que quando o vimos há uns meses, por cá, no Rolling Loud. E os seus “day one fans” cantam-lhe os parabéns antes de ele sair para dar lugar ao que todos vieram realmente ver.
Segue-se quase meia hora de espera até Kendrick Lamar aparecer. Na transmissão só se ouve o burburinho de umas 20 mil pessoas que enchem a Accor Arena. Deste lado da realidade estão perto de 60 mil que, a julgar pela experiência própria, estão bem mais confortavelmente instaladas, sentadas numa cadeira à frente de uma secretária, numa arena de meia dúzia de metros quadrados iluminada por um candeeiro de mesa. Sinais dos tempos, já se sabe. Mas essa meia hora de espera num quarto que, apesar de tudo, se deixou envolver pelo ambiente de um concerto de tamanha dimensão comprimido em polegadas convida à reflexão: “só” estão 60 mil pessoas, em todo o mundo, a ver aquele que é, provavelmente, o maior (em termos de produção) concerto de um artista que tem dezenas de milhões de ouvintes por mês? Isto momentos antes de Kendrick entrar, porque o pico da audiência viria a dar-se, curiosamente, a partir da primeira canção de good kid m.A.A.d city cantada por Lamar nesta noite — “m.A.A.d city”, a segunda mais ouvida do disco —, não chegando sequer aos 80 mil espectadores virtuais até ao final da actuação. Mais estranho ainda: a realização ao longo do espectáculo vai captando, invariavelmente, o mar de telemóveis que preenchem a sala — e em muitos deles há videochamadas a decorrer, enquanto está no ar uma transmissão gratuita e aberta que permite a quem não lá está ver o concerto bem melhor do que quem o presencia. Ainda para mais quando, em Julho de 2020, um concerto não-real de Travis Scott, transmitido numa plataforma obrigatoriamente mais fechada como é o caso do videojogo Fortnite, atraiu mais de 45 milhões de espectadores. A ficção a superar a realidade quando esta se vê à distância de um ecrã. E há, certamente, uma data de factores que possam ajudar a explicar esta diferença, mas não deixa de ser estranha a “pouca” adesão a um evento desta — simbólica e real — dimensão.
A começar pela entrada. As luzes apagam-se (mas os telemóveis, não) e ouvem-se as primeiras frases de Mr. Morale & The Big Steppers: “I hope you find some peace of mind in this lifetime/ I hope you find some paradise”. Entra um batalhão de soldados, axadrezados na formatura em fila, padronizados num contraste de indumentárias e sexos — uma de branco, dois de preto, uma de branco, três de preto, uma de branco, dois de preto, uma de branco. O primeiro de vários cenários cinematográficos e a primeira de várias coreografias com pendor para o thriller de ficção científica — e o primeiro de vários sinais de que tudo o que estamos a ver foi pensado ao pormenor.
As luzes voltam a apagar-se. Acende-se, então, uma primeira lâmpada (de secretária) à esquerda. Depois, uma igual à direita. O primeiro rosto iluminado é o de Kendrick Lamar em versão fantoche. Por fim, um grande ecrã branco revela a cena completa. Vultos petrificados ao som das notas soltas do piano de “United in Grief”. Uma imagem familiar no género do terror. “What is a bitch in a miniskirt” denuncia a figura sentada ao piano — e, desta vez, é mesmo Kendrick Lamar, o ventríloquo de carne e osso.
A dimensão teatral viria a ser uma constante nas duas horas seguintes em que Kendrick Lamar faz de si próprio sem deixar cair a personagem. Durante a actuação é difícil não ver nele o profeta que tanto insiste não ser. Desde a forma como dança, num leque de movimentos que, se não eram, passaram a ser tão seus, à forma como interpreta cada canção. E em cada canção cria-se uma nova dimensão, única e autónoma, para servir o tema que entra no alinhamento. Várias em cada uma, até. Como, a título de exemplo para toda a actuação, em “United in Grief”, em que, depois dos diferentes momentos já relatados, Kendrick chega-se à frente e, centrado num círculo luminoso, dá vida ao seu puppet na segunda parte da faixa inaugural do concerto e do próprio disco.
Grandes e sugestivas sombras, cenários multi-dimensionais alternados em tempo real, coreografias várias, violentas e irreverentes, com mais ou menos intervenientes, e uma força colectiva incansável na plateia. Da complexidade dos adereços, como o gigante cubo de plástico que isolou K-Dot, mais quatro “agentes” de fatos descartáveis, para lhe ser feito um teste antigénio (chumbado — não há falsos-positivos acerca da sua genialidade) à COVID-19 antes de o testado prometer “we gon’ be alright”, aos momentos despidos de distracções, com nada mais que um microfone e uma cadeira, numa interpretação desarmada de “Father Time” à cabeça.
Momentos esses que, graças à realização da transmissão, deram uma dimensão incrivelmente cinematográfica e abriram uma perspectiva à bigger picture que inevitavelmente escapou a quem viveu, de facto, esta experiência irrepetível: a descida de um quadro luminoso em “Rich Spirit”, que havia de acompanhar Kendrick ao longo de uma série de temas; a entrada dramática, de pé ao piano, em “HUMBLE.”; a imagem de consagração patente em “Purple Hearts”, enquanto o cantor se dirige em palavras aos fãs pela primeira vez; o cartaz desta data especial de The Big Steppers Tour representado à imagem e semelhança em pano de fundo na hora de “Bitch, Don’t Kill My Vibe”; a passagem hipnótica do artista, deitado numa cama, por “LUST.”; a arrepiante performance em “Count Me Out” que precedeu a apoteótica “Money Trees”; a subida do cubo reluzente em “Mirror”, a fazer lembrar a instalação-suspensa que juntou Kanye West e Kid Cudi para apresentarem KIDS SEE GHOSTS em 2018; o momento Blade Runner 2049 em “vent” com Baby Keem de volta ao palco — extensível à primeira parte de “Mr. Morale” com Tanna Leone de volta ao palco; o regresso ao piano para a desconcertante “Crown”; ou a despedida de “Savior” nas peles de J. Cole, Future e Lebron James, como vimos acontecer em “The Heart Part 5”, até a cortina descer e Kendrick Lamar sair, ainda a ser filmado, pelos bastidores ao som da voz-off que estabeleceu a narrativa do início ao fim.
As palavras de Tanna Leone ainda ecoam enquanto a poeira das últimas três horas assenta. Deste lado do ecrã, bem longe de Paris, custa a crer que esse mesmo filme espelhou a realidade. Ver um homem, a vivo e a cores, do tamanho da sua obra a fazer-lhe tamanha justiça parece demasiado bom para ser verdade. E essa percepção talvez tenha ficado apenas a quem viu o filme todo à distância. Afinal de contas, ainda bem que (não) estivemos lá.