Pontos-de-Vista

Francisco Couto

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Portas que se escancaram.

Existe um antes e um depois de To Pimp A Butterfly

Kendrick Lamar foi o artista que me fez pela primeira vez ouvir um álbum de rap (sei que, por isso, mereço ser chamado de poser – força nisso). Lembro-me muito bem do impacto do good kid, m.A.A.d city na minha vida, em 2012, de como me ensinou sobre os limites que podiam existir para complexidade tanto lírica como instrumental, sobre a construção de uma história através não só dos poemas como também dos próprios beats, de outros e interlúdios e sobre como um álbum pode ir MUITO além de um mero aglomerado de faixas. E que por vezes esse objecto coletivo fortalece cada uma suas partes individualmente. O GKMC é um disco que, apesar de conter bops poderosos, sabe sempre melhor quando as músicas são ouvidas no contexto do álbum. E, mesmo assim, estava longe de nos preparar para as multitudes do seu sucessor.

Recordo-me que a primeira vez que ouvi To Pimp A Butterfly me soube pouco. As músicas eram menos cativantes e ficavam menos no ouvido que em GKMC, os instrumentais eram mais complexos e requeriam mais escrutínio para se ouvirem. Não estava à espera que esse se tornasse no melhor álbum que alguma vez ouvi, mas não foram precisas muitas repetições para lá chegar. 

É complicado saber por onde começar quando se analisa este disco, que vai muito para além de uma experiência sonora: tal como 2Pac, Rage Against The Machine, Bob Dylan, José Mário Branco ou José Afonso, Kendrick Lamar parece ter quebrado a barreira que separa o mundo onde a arte vive do nosso, acabando por transcender para um plano social, político e pessoal – extremamente urgente em todas as suas dimensões –, navegando por estes temas de forma coesa; todos eles estão interligados numa narrativa em que vemos o artista de Compton entrar numa viagem pela descoberta de quem é, de onde está, e da sua posição enquanto pessoa racializada não só na América como no mundo.

Apesar da ordem do disco ser essencial para a sua compreensão, vou falar da música que acaba o álbum, “Mortal Man”, que embrulha todos os conceitos abordados ao longo do disco. Enquanto na primeira parte fala sobre a sua vontade de propagar a sua mensagem pelo mundo, espalhando ao mesmo tempo as ideias de líderes revolucionários como Nelson Mandela, Martin Luther King Jr. e Malcom X, a segunda começa com um poema que vem a ser declamado ao longo do álbum entre as músicas. Esse poema, ao qual é acrescentada uma parte de cada vez que avançamos, é quase como um sumário do tema da faixa que se segue, criando o fio-condutor onde surge uma narrativa mais sólida no álbum. Esse poema é finalizado em “Mortal Man”, onde é revelado que está a ser declamado por K.Dot a Tupac Shakur numa conversa fictícia onde ambos discutem conceitos como o futuro da luta de classes, as condições sociais impingidas a um homem negro nos Estados Unidos, o seu papel enquanto artistas na sua comunidade, tornando-se óbvio aqui o impacto que Pac teve na vida de Kendrick e na sua visão não só artística como identitária e do que o rodeia. 

O poema completo conta de forma mais concreta e sucinta o processo pelo qual o rapper passou para chegar às suas conclusões: começando no universo ostentativo da fama e das dinâmicas de poder estabelecidas entre ele a indústria que o alimenta mas que também o explora (“Wesley’s Theory” e “For Free”), para a dualidade da sua dominância no rap game e da indústria musical no geral (“King Kunta”) enquanto ainda sente o peso da institucionalização que viveu enquanto crescia em Compton (“Institutionalized”), pela primeira introdução às diferentes paredes do casulo criados pela segregação (e agora também pela fama) que o mantém incapaz de libertar o seu potencial supremo não só enquanto enquanto artista mas enquanto ser humano (“These Walls”), que o levou a colapsar e tentar a sua própria morte numa espiral depressiva (“U”). Foi aí, no momento mais baixo em que esteve, que conseguiu encontrar a luz para caminhar para sentir amor próprio e encontrar alguma paz na sua condição humana, lutando contra as tentações maquiavélicas do capital/lúcifer que o destroem (“For Sale (Interlude)”). Nessa luta, encontrou refúgio nas suas raízes, tanto em Compton como na viagem que fez pela África do Sul, país que serviu como uma das principais inspirações para a criação do disco e que o levou a reconectar-se consigo próprio e com os seus ancestrais africanos (“Momma”). 

Kendrick Lamar andou perdido numa realidade limitada a poucos e que não espelha o que se passa cá fora e, depois de fazer essa aproximação ao exterior, pôde finalmente assumir o seu papel enquanto líder, mas nada disso o impediu de continuar a sentir uma culpa profunda por ter sobrevivido a Compton, relembrando a vida antes da fama em “Hood Politics”. E é a partir daqui que o rapper percebe que existe uma guerra maior que a que viveu diariamente nos bairros: a da segregação, a que meteu comunidades racializadas inteiras a viver no limiar da pobreza e as trata como animais (“The Blacker The Berry”), sentindo que o seu objectivo é conseguir passar essa mensagem àqueles que se matam diariamente. Uma tentativa de juntar forças para lutar contra um problema comum a todos (“Mortal Man”).

Menos focadas nos tópicos do poema, mas não menos importantes: “How Much a Dollar Cost” trata da inversão da prioridade dos seus valores, moldados pela sua vida de luxo; “Complexion (A Zulu Love)” tenta desconstruir os padrões de beleza coloristas sob os quais mulheres negras são oprimidas, “I” é a faixa antagónica de “U”, criando a dicotomia selflove/selfhate no disco; e “You Ain’t Gotta Lie (Momma Said)” fala da necessidade que artistas têm de se afirmarem através de mentiras e das consequências que essa busca constante por validação lhes pode trazer.



O segundo texto que Kendrick lê a Tupac explica a origem do título do disco, sendo a borboleta a personificação do seu potencial, que, para lá chegar, precisa de se libertar do casulo criado por these walls, o capitalismo explorativo que o subjuga não só através da indústria musical como também através de onde cresceu, do seu tom de pele, da sua classe social.

Esta é uma interpretação minha e que toca em muitas das dissecações que foram feitas nos últimos sete anos por outras pessoas. To Pimp A Butterfly tornou-se exemplo enquanto um dos álbuns mais completos, coesos, complexos e bem-conseguidos nascidos na era do streaming; e o impacto que teve continua a sentir-se ainda hoje. A forma como cruza saúde mental, racismo, colorismo, estética, capitalismo, ser-se alguém com identidades múltiplas e mutáveis e segregação torna bastante evidente o quão interligados estão estes assuntos, o impacto que o colectivo tem no individual, e como a transformação colectiva começa dentro de cada um. A revolução interna é um passo importante para termos um impacto positivo colectivo, e é também importante que pensemos não só numa mudança estrutural global como numa local, nas nossas comunidades, como Kendrick se foi apercebendo – e que vai transparecendo de disco para disco.

É esta interseccionalidade que fez com que ainda hoje sintamos To Pimp A Butterfly nas nossas vidas, mesmo depois de DAMN. ter saído. Vimos a “Alright” tornar-se um hino no movimento Black Lives Matter, vemos projectos nacionais como o The Blacker The Berry nascerem, vemos artistas como Thundercat (um dos grandes nomes na criação do disco) ser reconhecido enquanto um mestre, vemos o hip hop mais mainstream a tocar nas suas raízes politizadas. Kendrick Lamar construiu este álbum para nos educar sobre o presente que vivia em 2015 e a verdade é que todos os tópicos continuam actuais e urgentes em 2022. Desde o seu lançamento, Walter Scott, Alton Sterling, Philando Castile, Stephon Clark, Breonna Taylor, George Floyd, Daunte Wright, Bruno Candé, Cláudia Simões, entre outros, foram vítimas de abuso policial, portanto é difícil achar que progressos foram feitos. O colorismo continua presente, a saúde mental da população está cada vez mais deteriorada, o capital continua a ser o principal interesse de um mundo à beira do desastre climático. 

Quando os níveis de desmotivação entram em números alarmantes e a sociedade não se encaminha para melhores caminhos, é aí que entra a importância da música de intervenção, como o caso deste disco. Ouvir To Pimp A Butterfly é sempre levar com uma chapada na cara sobre a importância da união, de termos valores e princípios éticos acima de tudo, de que a esperança tem de continuar a ser o nosso veículo para nos tornarmos melhores e contribuir para algo colectivo. É um disco sobre espalhar amor, fé e educação. E o tempo passar por ele como se nada fosse só mostra que estes princípios vieram para ficar

Kendrick Lamar não desperdiça palavras, todas são escolhidas a dedo e com um papel importantíssimo na narrativa e isso por vezes complica-se quando o tema são mulheres. É verdade que dedicou “Complexion (A Zulu Love)” à luta contra a beleza feminina estereotipada pelo colorismo, mas a fetichização feminina constante ao longo do álbum para personificar dinâmicas opressivas levanta muitas problemáticas e merece ser alvo de críticas. 

K-Dot deixou um marco histórico na arte contemporânea e criou uma obra que explica as lutas que as pessoas racializadas têm vivido nos últimos 10 anos. E por baixo das rimas? Os beats são um hino à música negra, passando pelo funk e disco dos 70s e 80s, pelo g funk e gangsta rap dos 90s, tudo orquestrado por alguns dos produtores e músicos mais virtuosos da atualidade, como é o caso de Sounwave, Terrace Martin, Thundercat e Kamasi Washington. Os detalhes sonoros como o copo com gelo a tilintar ou a empregada das limpezas de “U” são elementos importantíssimos para tornar a experiência de ouvir TPAB mais imersiva; as pequenos intros em músicas como “Hood Politics” e “Momma” criam contextos essenciais para ouvirmos as músicas como ele quer que as ouçamos. Este álbum tem todos os segundos, sons, palavras, feats e intensidades pensados ao pormenor, e nem mesmo alguém como Kendrick conseguirá atingir facilmente este nível outra vez. Resta-lhe a tarefa ingrata de continuar a sua carreira visionária com uma pitada de guia místico cruzada com educador das massas, posição que já vem a adoptar desde good kid, m.A.A.d city.

O impacto deste álbum é tão profundo que quase ultrapassa a necessidade de existir uma relação racial, social ou geográfica com quem o criou. Porém, não deixa de ser importantíssimo perceber a condição, a cultura, a expressão  e a manifestação de factores que apesar de nem todos os vivermos ou entendermos são subjacentes à importância universal dos assuntos neste álbum falados. Vemos o poder que movimentos reivindicativos têm quando os aliados têm um papel activo na causa através de apoios e de conseguirem utilizar os seus privilégios em favor de quem não os tem. Então, é essencial para todos ouvirmos um disco com uma expressão identitária e política tão clara que é impossível não empatizar e entender mais claramente as realidades existentes e as diferentes formas como a opressão se manifesta. Obras como estas abrem portas para a empatia necessária para que a solidariedade e o apoio mútuo substituam finalmente o capital como o verdadeiro motor da nossa sociedade. Nessa linha de pensamento, To Pimp A Butterfly foi (e continuará a ser) marcante para esta geração (e esperamos que para as próximas) e um dos “instrumentos” que a podem mover para projectar um futuro melhor. 


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