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Fotografia: Hugo Lima/NOS Primavera Sound
Publicado a: 12/06/2022

O púlpito para os falsos introvertidos.

NOS Primavera Sound’22 – Dia 3: do veneno bom de Little Simz a um Earl Sweatshirt igual a si mesmo

Fotografia: Hugo Lima/NOS Primavera Sound
Publicado a: 12/06/2022

É impressionante como bastam uma guitarra, um baixo e uma bateria para fazer uma festa tão grande e com uma panóplia de sons tão díspares. Os Khruangbin foram a banda sonora perfeita para o fim de tarde quente e solarengo que ontem abraçou o Porto e contagiaram toda a multidão que se reuniu em volta do palco Cupra. Composto por Laura Lee, Mark Speer e Donald “DJ” Johnson Jr., o conjunto texano dá um outro sentido ao conceito de power trio e soa como se tivesse, pelo menos, o dobro da mão de obra a trabalhar. Numa primeira fase, fizeram-nos dançar com os seus originais infalíveis.

Depois de nos conquistarem, o tom festivo elevou-se ainda mais com recurso a uma série de medleys impressionantes, recriando temas clássicos das mais variadas latitudes sónicas, com especial ênfase no hip hop, esse camaleónico género que combina na perfeição com qualquer receita musical e que lhes tem mostrado amor através do sampling. “Let’s Dance” (de David Bowie), “Regulate” (de Nate Dogg), “Rapp Snitch Knishes” (de MF DOOM), “Nuthin’ But a G Thang” (de Dr. Dre), “Summer Madness” (dos Kool and the Gang) ou até mesmo “Dragostea Din Tei” (dos O-Zone) foram abordadas. Surf rock psicadélico com camadas extra de funk da mais fina categoria, bem capaz de um dia destes cair nas graças de Quentin Tarantino para musicar um dos seus próximos filmes.



Do Texas ao Chicago (ou, neste caso, do palco Cupra ao palco Binance), os contornos eram outros: a cantora e poeta Jamila Woods aproximou-se mais de uma ideia de r&b e neo-soul, dando mais ênfase à palavra do que os seus compatriotas na sua estreia em Portugal. De uma terra fértil em talento que não se cansa de dar mais e mais, a artista americana trouxe a energia certa, assumindo uma posição de maior destaque quando a banda (baterista, baixista, guitarrista e teclista) procurava ocupar menos espaço sónico e a deixava soltar a voz e as letras sem ter de correr atrás — em “GIOVANNI”, por exemplo, sentiu-se que era assim que funcionava melhor.

Rendida à moldura humana que se foi embevecendo mais e mais a cada novo tema (“vocês têm uma excelente energia e óptimo ritmo, estou a ver-vos”), Woods abordou o seu mais recente disco, LEGACY! LEGACY! (2019) — “FRIDA” ou “MUDDY” não faltaram –, fez uma versão completamente desconstruída de “Smells Like Teen Spirit”, dos Nirvana, e tocou músicas novas, uma delas escrita com a irmã durante a quarentena e outra intitulada “Boundaries”, que introduziu com um “that’s important” atrelado.



Existem concertos perfeitos? Ontem, Little Simz fez-nos acreditar que sim. Em termos de execução, tanto dela como dos músicos que a acompanharam, não se podia pedir mais — vê-la já com um espectáculo imaculado foi o privilégio de ter de esperar tanto (já desde A Curious Tale of Trials + Persons, de 2015, que justificava esta vinda). Com um alinhamento completamente focado nos discos produzidos por Inflo, GREY Area (2019) e Sometimes I Might Be Introvert (2021), o concerto ganhou, obviamente, com essa coesão estética. Os SAULT não estiveram lá, mas, tanto quanto sabemos, os instrumentistas de serviço poderiam muito bem ser agentes especiais enviados pelo produtor para servir da melhor forma as suas produções.

E o que é a perfeição num concerto de rap? Neste caso em particular, a lógica começa imediatamente pela compreensão por partes dos músicos do groove específico e dos arranjos necessários para orgulhar essa linguagem e não ofuscar a MC, deixando-a ser a protagonista. Sentimos isso em diferentes momentos: na beatologia soulful (com Madlib no ADN) de “Two Worlds Apart” ou na soul mais perto da origem de “Selfish” (uma das vezes em que ouvimos a voz de Cleo Sol através do sistema de som e onde o coro da plateia se fez sentir), no balanço afro via Nigéria de Burna Boy em “Point and Kill” ou nesse exercício de escrita, gestão e entrega que é “Venom”. E é nessa última faixa que a lógica da perfeição se encerra: o conteúdo e as letras encontram, na sua totalidade, um fundo de verdade ao vivo. Não se perde nada e também não há excesso. “I’m Jay-Z on a bad day, Shakespeare on my worst days”, relembrou-nos em “Offence”. Ficámos ainda mais tentados a acreditar nisso…

Super descontraída e dançando quando o balanço assim o pedia, Simbi foi mesmo uma mestre de cerimónias, não só na maneira como colocou a força devida nas canções — houve ali uma ovação que terá sido certamente das maiores do festival — mas também nas interacções, falando-nos, a certa altura, do dia que tinha tido (podemos revelar que envolveu conhecer um pouco da cidade, comer uma lasanha vegetariana ou receber uma merecida massagem) e dos “amigos” Khruangbin. Ela até pode ser introvertida em certas situações da sua vida, mas no NPS foi exactamente o contrário.

Iluminou-nos durante a sua passagem e deu-nos um final adequadíssimo com uma “Woman” que resume em duas frases o que vimos: “I see you glow, you’re the finest gold/ When you walk in the room, they feel your soul”.



Depois de Nídia, a Príncipe voltou a merecer representação no palco Bits do NOS Primavera Sound. Na ausência de grandes sobreposições de horário — só os Interpol é que ocupavam um dos outros palcos quando o relógio bateu as 23 horas — este peso-pesado da editora lisboeta teve o prazer de ver uma plateia bem mais composta do que a colega, que havia actuado um par de dias antes e que ontem, por breves momentos, assumiu o papel de mestre de cerimónias durante a performance do autor de Ardeu.

Firmeza é DJ e produtor a tempo inteiro e pode muito bem estar a levar secretamente uma carreira de bailarino em part-time, já que não parava de exibir os seus toques enquanto manuseava os decks, reagindo com o corpo a cada faixa que metia a tocar. Quando a malha era daquelas pesadas, esboçava um sorriso malandro, como quem diz “ora tomem lá disto”. O público vibrava efusivamente e havia um rosto que se destacava entre os demais: DJ Marcelle, a veterana do techno que entraria em cena uma hora depois, veio do backstage para absorver a batida lisboeta no seu exponente máximo, bem próxima do sistema de som, e ainda aproveitou para documentar o momento com uma pequena câmara.

Dizem que a idade é um posto e, a julgar pelo seu modus operandi, esta é uma máxima levada muito a sério por DJ Marcelle. A experiência da neerlandesa expressa-se pela utilização do vinil como principal ferramenta de trabalho, assente num alinhamento de fluxo ascendente. Começou mais calma, em torno de texturas sintetizadas e espaciais, mas não demorou a dar-nos a habitual surra de electrónica raver em todo o seu esplendor, indo do drum and bass ao hard step e dos ritmos acelerados estilo gabber ao techno oriundo das catacumbas. Foi no palco Bits que a encontramos a dirigir um novo estilo de sauna, já que foram vários os litros de suor largados por quem ousou bailar enfeitiçado pelas frequências desta veterana.

Dizer que o primeiro concerto em terras portuguesas dos Gorillaz desde 2002 (a passagem em 2005 para os MTV Europe Music Awards não conta), ano em que tocaram perto da Torre de Belém, em Lisboa, como parte do cartaz do festival Isle of MTV, era ansiado pelos seus fãs pode não fazer jus ao quão expectantes realmente estavam. A imagem pintada na colina do Parque da Cidade do Porto pouco antes da uma da manhã dava o sinal: um mar de gente imenso, encaixado como peças de puzzle, onde o espaço para cada pessoa se mexer era mínimo mas a energia era imensa. E se um concerto começa com uma contagem decrescente iniciada pelo próprio público sem ajuda exterior, o que mais se pode dizer da energia que se vivia na antecipação da subida a palco da banda animada mais famosa do planeta? 

Felizmente, os Gorillaz — que é como quem diz, Damon Albarn e a restante banda, ornamentados com trajes rosa, e aliados com um ecrã a projetar videoclipes — corresponderam à tamanha peregrinação que os esperava. O concerto revelou-se extremamente energético, com Albarn a vir várias vezes cumprimentar a frontline em êxtase e a comandar o público numa espécie de misto entre uma persona de hype man e o seu estatuto de rockstar alcançado com os Blur. Com tanto tempo para recuperar entre os Gorillaz e o público que os acarinha, só assim podia ser: amor dado, amor recebido. E o alinhamento que trouxeram na bagagem não desapontou os fãs esfomeados.

Tal como há praticamente 20 anos, os Gorillaz abriram as portas para o seu mundo eclético de hip hop, rock alternativo, trip hop e pop, com “M1 A1”, faixa do disco de estreia homónimo, de onde sacaram ainda uma mega energética “19-2000”, uma extremamente bem recebida “Tomorrow Comes Today” e a clássica “Clint Eastwood”, que terminou o concerto com nota máxima por parte do público após 22 músicas e exatamente 90 minutos de concerto. Dizemos exactamente 90 minutos porque, depois do concerto começar à uma em ponto, também terminou às 2h30 em ponto com uma situação algo insólita. Durante os últimos segundos de “Clint Eastwood”, o som do palco NOS desligou-se para geral confusão do público para com o que tinha acabado de acontecer. Erro ou pré-acordado, era um desfecho que os fãs de Gorillaz não mereciam e que o concerto em si também não (mas talvez o festival sim).

Aquilo que os Gorillaz ofereceram em palco tinha fechado, pelo menos até esse momento, o palco principal da nona edição do NOS Primavera Sound com chave de ouro. Além dos hits do seu primeiro disco, ouviram-se canções do mais recente Song Machine, Season One: Strange Timez — incluindo uma versão de “The Valley of the Pagans” com Beck (numa versão superior à que este cantou no dia anterior), e a belíssima “Désolé”, com Fatouma Diawara a roubar a atenção do público -, belíssimos momentos de Plastic Beach como “On Melancholy Hill”, cantada toda a belos pulmões, “Stylo”, que contou com a participação de Bootie Brown (tal como em “Dirty Harry”) e “Rhinestone Eyes”. Todavia, o disco de onde os Gorillaz tiraram mais malhas — mais do que uma mão-cheia – foi mesmo de Demon Days, de onde ganharam destaque “Feel Good Inc.”, que contou com a presença de Pos, dos De La Soul, “Living Souls”, causadora de particular euforia no público, e “Kids With Guns”, onde Albarn ainda fez o lembrete que tal “shouldn’t happen”. 

Mas se de convidados e surpresas se fez o concerto – ainda houve tempo para se ouvir uma nova canção, “Cracker Island” –, talvez nenhuma tenha surpreendido tanto como Little Simz, que, horas depois de ter conquistado o palco Cupra, arrebatou o palco principal com “Garage Palace”, um dos singles da era de Humanz dos Gorillaz (onde “Andromeda” também ganhou destaque com uma versão ao vivo mais crua) confirmando que está mais que pronta (e destinada) para voos maiores. Para os Gorillaz, a noite recheada de surpresas compensou o tempo de espera dos fãs, mas também deixou água na boca para a coerência de um concerto em nome próprio no futuro: fica a dica para quem quiser aproveitar.



A noite terminou com a previsível peregrinação até ao palco Binance e as pessoas chegavam até à plateia mais pequena do festival com alguma pressa. O local gerava algumas dúvidas, já que, afinal de contas, não é todos os dias que Deus desce à terra para pregar ao povo lusitano. Pelos vistos, a previsão da organização foi certeira. Apesar da grande densidade populacional que se reunia próxima do palco, houve espaço de sobra para ver Earl Sweatshirt ao vivo em Portugal pela primeira vez, condição que permitiu que muitos pudessem ver o concerto sentados, mais aptos a entrar no transe de introspecção que é apanágio do MC e produtor norte-americano.

Quem surgiu dos bastidores em primeiro lugar foi Black Noi$e, beatmaker que pertence às fileiras da Tan Cressida (editora gerida por Earl) e que tem acompanhado o autor de SICK! na estrada durante os últimos anos. Natural de Detroit, trouxe o espírito da Motown através de um estampado na camisola e usou uma balaclava durante os primeiros minutos. Antes de conseguirmos meter os olhos em Thebe Kgositsile, o também DJ e hype man deu aso a uma pequena rave, com direito a techno e drum and bass, interpolada por “Count Me Out” (de Kendrick Lamar) ou por “The Band”, uma das faixas que encontrámos em Oblivion, o álbum de estreia que editou há um par de anos.

Com Earl Sweatshirt já em cima do palco, os momentos que se seguiram foram um misto de emoções. Tivemos de saber lidar com a frieza e pouca comunicação por parte de alguém que era há muito esperado no nosso país, depois de termos passado três dias a receber amor de volta pelos outros artistas que acarinhámos com muitas palmas e ovações. E tendo em conta que tínhamos assistido à performance imaculada de Little Simz poucas horas antes, foi estranho escutar a voz do rapper em condições muito menos cristalinas, algo que pode ter atrapalhado a experiência daqueles que não dominam tão bem a sua prestigiadíssima obra lírica. Por outro lado, não deixa de causar arrepios o facto de termos finalmente tido a oportunidade de escutar poemas como os “December 24”, “Grief”, “2010”, “E.Coli”, “Titanic” ou até mesmo “Molasses” a serem declamados pelo próprio autor mesmo à nossa frente — em “The Mint” e “Vision” nem se importou de rimar as partes de Navy Blue e ZelooperZ, respectivamente.

E não nos podemos esquecer que Earl Sweatshirt é… Earl Sweatshirt: alguém que já lidou com tanto do ponto-de-vista pessoal e cuja carreira tem sido sempre bastante atribulada. Talvez seja por isso que os seus concertos nem sempre parecem “trabalho”, mas mais “sacrifício”. No fim de contas, este é o seu ganha-pão e ele não é menos mercenário que os demais. É, isso sim, mais sincero e não está para nos enrolar com falinhas mansas. A única prenda que teve para nos dar foi a de comprimir o máximo de canções possíveis nos 60 minutos de espectáculo que acordou com a organização do certame e nos quais percorreu toda a sua obra discográfica ou ainda participações suas em projecto alheios. Despediu-se com “Love You Better” (de Future) como pano de fundo mas havia de voltar quase instantaneamente para um dos encores mais curtos da história da música, composto pelo seu único verso cravado em “New Faces V2”, de Mac Miller. Antes de se esfumar da nossa vista, deixou-nos aquele clássico conselho: “vão dormir e bebam água.”


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