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Texto: Paulo Pena
Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 20/07/2023

Sobre cultura e identidade.

Expresso Transatlântico: “Se não houvesse o interesse da parte dos artistas, onde é que nós estávamos…”

Texto: Paulo Pena
Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 20/07/2023

Apresentaram-se em 2021 com um EP homónimo, mas 2023 já lhes reserva o álbum de estreia. Formado a um Oceano de distância, o trio sedimentou-se aquando do regresso de Gaspar Varela dos Estados Unidos da América, por onde andou em tournée a acompanhar Madonna. Em Expresso Transatlântico, o prodigioso guitarrista que acompanha, igualmente, Ana Moura nos palcos junta-se ao irmão mais velho, Sebastião Varela, e a Rafael Matos (que “é como se fosse nosso irmão”, nas palavras daquele que é, também, conhecido como bisneto de Celeste Rodrigues).

De novo num local que bem conhecem, os três músicos sentaram-se à mesa, no Campo dos Mártires da Pátria, em conversa com o ReB, sempre com a linha do mar no horizonte, mas com temas maiores debaixo do nariz e na ponta da língua: falou-se não só da viagem marítima a que se propõem no sucessor de Expresso Transatlântico — até ver, com “Barquinha” e “Bombália” enquanto coordenadas de partida —, mas também do estado da cultura de um país à beira-mar plantado, em que os seus intervenientes continuam a lutar por se manterem à tona.



A preparar esta conversa vi uma entrevista que deram neste mesmo espaço, e nessa entrevista dizem que o vosso nome veio daqui — e agora estão novamente aqui para uma outra entrevista. Têm alguma ligação especial com este sítio?

[Sebastião Varela] Eu e o Gaspar crescemos aqui neste… não é bem aqui neste bairro, é um bocado ali mais abaixo, que é o Bairro da Pena, ali na Calçada de Santana. Entretanto, eu já não vivo aqui, mas também vivo perto. O Rafa vive um bocado mais longe, mas isto sempre foi um ponto de encontro.

É engraçado porque Bairro da Pena e Calçada de Santana são os meus dois apelidos.

[Risos]

[Sebastião] A sério?

Se calhar, eu é que devia ter nascido aqui…

[Sebastião] Exacto!

Bom, mas falando sobre o que nos trouxe aqui, há uns meses entrevistei o Tó Trips (que fazia parte dos Dead Combo, uma referência maior vossa), e ele falava-me de uma ideia de “geografias da guitarra” acerca do Popular Jaguar — e essa ideia parece fazer sentido na vossa música, também. Essa ideia existe no vosso caso — e por onde é que ela passa?

[Sebastião] Sim, acho que existe e passa muito por aqui, mesmo. Era o que eu estava a dizer: nós crescemos os três mais ou menos aqui, no centro de Lisboa, e estamos numa cidade que sempre foi um ponto de passagem, um ponto de encontro para várias culturas diferentes. E obviamente que isso tudo fez parte do nosso crescimento não só enquanto pessoas, mas enquanto artistas, músicos — e pensamos em geografia a partir desse ponto. 

Soa a longe, mas parte daqui. Mas soa, também, a uma epopeia, uma espécie de banda sonora dos Descobrimentos — mais no sentido da aventura marítima do que propriamente de colonização…

[Risos]

[Sebastião] Podemos navegar todos sem descobrir o Brasil… [risos]

[Rafael Matos] Mas temos muitas influências de músicas de outros países, e isso acaba sempre por…

[Gaspar Varela] É aquela coisa que o Sebas estava a dizer: tens tanta cultura aqui que, querendo ou não, felizmente, nós os três tivemos acesso a essa cultura nas nossas casas e sempre crescemos com essas várias culturas que havia cá em Portugal.

[Sebastião] Sim, mesmo muito dentro das casas de fado, mas desde putos também passamos ali no Tejo Bar e ouves uma morna… todas essas coisas fazem parte. Até as pessoas que estão a pedir dinheiro na rua a tocar: passas ali na Baixa, Martim Moniz, estás sempre a ser bombardeado com música diferente — o que é uma coisa bué boa, porque isso acaba por fazer tudo aquilo que é a identidade sonora de Lisboa.

[Gaspar] Mas também sinto que fomos privilegiados no sentido de termos esse acesso e a vontade de nos apresentarem isso em casa. Porque, infelizmente, isso não acontece muito. Eu também tive esse acesso na escola primária, de nos levarem ao teatro e ouvirmos muita música, e há pessoas que não têm esse acesso nem em casa nem na escola. Nós fomos privilegiados nesse sentido.

Sentem que essas influências cruzadas também se devem a, por comparação com as gerações anteriores, já não termos crescido segmentados em “tribos” de géneros como o rock, o hip hop e outros?

[Sebastião] Há mais acesso, não é? Hoje em dia temos acesso ao que nos apetecer.

[Rafael] Sim, mas não deixaste de ter aquela altura em que só ouvias aquele certo tipo de música.

[Gaspar] Sim, houve uma altura que Foo Fighters para vocês era… [risos]

[Sebastião] Mas era isso que eu ia dizer: se bem que, mesmo tendo acesso às cenas todas, eu acho que a minha adolescência, ali na altura da [Escola Artística António] Arroio, quando nós começámos a tocar…

[Rafael] Era muito direccionado para o rock. 

[Sebastião] E era quase como uma tribo. Nós ouvíamos rock, íamos aos concertos nos bares do rock…

[Gaspar] E eu senti isso com o fado. Mas é nesse sentido que sinto que, pelo menos eu, fui privilegiado: tu começaste a mostrar-me mais coisas [aponta para o irmão Sebastião], os pais começaram a mostrar mais coisas… em casa nunca fomos de ouvir um género musical só, sempre foi muita coisa a acontecer. E há bocado tocaste na cena das viagens: felizmente, tenho conseguido viajar muito, e das coisas que me dá mais prazer é chegar a um sítio e poder ter acesso a essa cultura. Por exemplo, em Mértola, nós fomos ao Festival [Islâmico] de Mértola e foi bué fixe — estava uma banda a seguir a nós que foi tocar…

[Sebastião] Eram franceses, se não me engano.

[Gaspar] Mas uma cena muito boa…

[Rafael] E saímos de lá inspirados!

[Gaspar] Acho que isso é o mais importante: não teres só a vontade de fazer, mas de conhecer.

[Sebastião] Mas eu acho que, acima de tudo, é fazer com a naturalidade que é necessária; não focar em “bora fazer isto desta maneira, ou bora ir atrás deste estilo”. Porque acabamos por fazer um trabalho introspectivo cada um, eu acho. Mesmo que subconscientemente, ir à procura e perceber o que é que é a tua identidade enquanto músico. E o ter crescido aqui faz diferença — se tivesse crescido noutro lado, ia ter toda uma identidade musical completamente diferente.

[Rafael] E eu sinto mais essas influências… por exemplo, já temos malhas feitas e gravadas, e eu às vezes sinto as nossas influências depois de as gravarmos.

O tal processo subconsciente.

[Rafael] É o subconsciente, exactamente!

[Sebastião] Por isso é que eu digo que é subconsciente…

[Rafael] Não é antes de gravarmos, “Olha, tive a ouvir isto, bora tentar”… Nós não fazemos isso.

[Sebastião] É sermos honestos. 

[Gaspar] E nós enquanto pessoas, mais do que enquanto artistas, necessitamos de ter mais conhecimento. E, obviamente, isso vai entrando dentro de nós, vamos tocando e por isso é que é fixe termos um álbum e daqui a um ano ou dois termos um álbum diferente porque tivemos acesso a outras coisas. 

[Rafael] Mas é engraçado ver, imagina, o Sebastião às vezes mostra-me uma banda, o Gaspar mostra-me outra, e isso está nas malhas de guitarra deles.

[Sebastião] E, depois, obviamente que há influências marcadas — mas nunca passa por ser uma tentativa de: “Bora fazer como estas pessoas fazem, ou bora recriar isto”. Estavas a falar do Tó e de Dead Combo há bocado, e a cena dos Dead Combo é que abriram portas, mostraram-nos que era possível fazer uma cena assim — para além de que crescemos à medida que a banda foi crescendo também. E uma banda dessas chegar ao ponto onde chegou, obviamente que abre portas a um milhão de projectos para virem a seguir. E quem diz os Dead Combo diz uma data de outras pessoas. Já começa a ser piada que falamos sempre do Luís Varatojo — aliás, o Gaspar fala sempre do Luís Varatojo, mas é verdade.

[Gaspar] Não só ele, mas também há outro guitarrista, que é o João Lima, que foram dois gajos que pegaram na guitarra portuguesa e inovaram. O Varatojo, para mim, fez isso muito bem: começou com Naifa

[Sebastião] Até já antes, em Despe e Siga, malhas com guitarra portuguesa…

[Gaspar] Mas onde ele marcou foi: se ligas uma guitarra eléctrica a pedais, porque é que na guitarra portuguesa não dá para fazer? E o meu objectivo neste sentido — e tenho a oportunidade de fazer isso nesta banda — é pegar na guitarra portuguesa e mostrar que dá para explorá-la como outro instrumento qualquer. Dá-me um gozo gigante poder pegar na guitarra portuguesa e começar a dançar com ela, e metê-la no chão e usar um slide, e ligá-la a pedais… maluquices em cima de palco — ‘bora [risos].



Daí a chegarem à identidade da banda foi um processo intuitivo?

[Gaspar] Acho que a cena mais fixe foi nós não termos pegado no projecto a pensar “bora fazer um projecto”; nós pegámos em três amigos — três irmãos, o Rafa é como se fosse nosso irmão — e foi: o Sebas e o Rafa já tocavam juntos, eu tocava bué com o Sebas, porque não? “‘Bora pegar nisto, ‘bora curtir, ‘bora divertir-nos, ‘bora tocar.” Depois começou a cena toda da criação, eu cheguei a Portugal, começámos a juntarmo-nos mais e aquilo começou a soar e ficámos: “Bora fazer uma banda, porque isto está a dar-nos um gozo gigante”. E acho que, acima de tudo, essa cena da musicalidade e de estarmos a conseguir encontrar o nosso caminho vem muito da cumplicidade que temos entre nós os três juntos. 

[Sebastião] Mas eu acho que, acima de tudo, o facto de termos começado dessa maneira, não numa de “’bora fazer uma banda, mas ‘bora curtir”, fez com que não existissem propriamente regras — não havia rótulos, estávamos a tocar.

[Rafael] Mas acho que a estrada nos tem ajudado a chegar ao nosso som. Por exemplo, o álbum que nós vamos lançar já é muito… não é que seja completamente diferente ao que soa o EP, mas tem mais a nossa onda.

[Sebastião] É mais próprio.

[Gaspar] Eu acho que a cena bonita da nossa banda é que nós não estamos com necessidade para encontrar a nossa sonoridade. Não dá, nós somos pessoas: este ano estamos a fazer isto, daqui a dois anos vamos ter acesso a mais coisas, a nossa vida vai mudar e vamos fazer coisas diferentes. 

[Sebastião] E isso sempre foi uma regra que nós nos impusemos a nós próprios: fazermos as coisas ao nosso tempo até estarmos os três de acordo com o que estamos a fazer. E depois é o que o Rafa estava a dizer, isto depois parece que é uma máquina sozinha: à medida que vamos tocando mais, começamos a descobrir — mas isso é que é a parte bonita, haver coisas para descobrir.

[Rafael] Montes de ideias saíram, sei lá, de soundchecks

[Sebastião] Olha o “Bombália”, o último single que nós lançámos, foi de uma vez que estávamos a tocar ali no Castelo [de São Jorge]: estávamos só a curtir no soundcheck e começou a surgir ali o início.

Então, para vocês é fácil não pensar demasiado nesse processo?

[Gaspar] Quando estás a construir um álbum… lá está, nós dizemos isto porque não temos esta pressão antes, mas a partir do momento em que estás a construir um álbum começamos a pensar que ele nos está a levar por este caminho. E a partir de agora tudo o que vier, este caminho é a base; temos várias coisas à volta para chegar a este caminho, mas sabemos que este é o caminho que queremos ir neste álbum.

[Sebastião] Mas, acima disso — e não sei se é mais pessoal —, um álbum, uma música, é um objecto artístico, e acho que muito do que é a criação artística tem que haver uma certa confiança em ti próprio, nas ideias que estás a ter. Confiar no processo, de certa maneira. É, acima de tudo, não descartar as coisas que temos: qualquer coisa que venha merece ser discutida. E a nossa identidade encontra-se aí, num estudo de três opiniões.

Mas voltando àquela ideia de “epopeia marítima”, se no vosso primeiro EP já havia essa ambiência, nestes dois últimos singles há ainda mais — até a nível visual, vocês incluem sempre o mar de alguma forma.

[Gaspar] O mar é um espaço de reflexão. 

[Rafael] Olha, o que tu estavas a falar no início, a cena geográfica, o português no geral cresceu com o mar, e acho que isso influencia muito a maneira de pensar, a maneira como vives. E, lá está, é um bocado subconsciente — e o nome também puxa para aí, é o Expresso Transatlântico…

[Gaspar] Sim, não é o Expresso Transalpino. 

[Risos]

[Sebastião] Já nos chamaram Expresso Transalpino…

[Rafael] Mas acho que sim, acho que subconscientemente o mar há-de estar sempre ligado a nós — não na cena de descobrimentos…

[Gaspar] Não na maneira estúpida que é contada e ensinada. 

[Sebastião] Sim, e obviamente que também temos influências de culturas que não são nossas e não deixam de fazer parte do que é Lisboa. Mas nunca, nem pouco mais ou menos, queremos ter qualquer coisa a ver com essa parte… [risos] Mesmo absolutamente zero. Podemos é olhar para o mar de outro ponto de vista, como um local de partida e de regresso, como um espaço de reflexão.

Mas é assumido que gravitam para esse universo?

[Sebastião] Sim, claro! E gravitamos mesmo porque, imagina, agora um aparte: eu trabalho em cinema e faço os nossos videoclipes, e de tudo o que eu já fiz até agora houve para aí duas coisas que não estavam relacionadas com o mar [risos]. Era aquela cena que eu estava a dizer: é confiar no que sai — e sai sempre isso [risos].

Nessa realização há mais elementos comuns além do mar, desde a vossa postura, as posições, as mãos, os anéis, até aquele gato dourado [maneki neko]…

[Risos]

[Rafael] Esse aí é o nosso companheiro.

… tudo isso constrói um fio narrativo subjacente aos vossos temas?

[Sebastião] Acho que é exactamente essa a ideia: é um caminho, uma viagem. O EP abriu-nos as portas para alguma coisa, este álbum é o primeiro passo a seguir a isso, e é tudo uma viagem. E se a própria música é uma viagem, acho que os videoclipes deviam seguir a mesma linguagem. Por isso é que temos a cena de “Bombália” ser a nossa primeira paragem.

[Gaspar] Chegámos a um sítio que ninguém conhece, que é nosso.

Esse é um descobrimento positivo.

[Risos]

[Sebastião] Não estava lá ninguém, estava abandonado…

[Gaspar] É nosso, calma. 

[Sebastião] É de todos… [risos]

[Gaspar] “Bombália” é de quem quiser ir para lá, de quem quiser encontrar o que nós encontrámos lá — que foi liberdade, foi espuma, foi mar… [risos]



Essa ambiência marítima puxa um sentimento de melancolia — também muito à portuguesa — que na vossa música se sente de forma transversal. Esse é um estado de espírito de Expresso Transatlântico?

[Gaspar] Eu acho que é uma melancolia onde encontramos uma certa paz. Isto foi poético, não? Foi um bocado azeiteiro… [risos]

Pode ficar a citação para o título.

[Risos]

Mas não tem de ser uma melancolia no sentido saudosista.

[Sebastião] Não, muito pelo contrário. Acho que isso também se relaciona com tudo o resto que estávamos a falar antes. Nós temos, principalmente eu e o Gaspar — e até mais o Gaspar —, um background muito grande do fado. E isso, com tudo o resto, entra para o que são as nossas referências. Referências, que até é estranho dizer desta maneira — é a nossa identidade. E acho que o cair para aí é normal a partir do momento em que isso faz parte da nossa criação.

E projectando isso para o álbum que estão a desenvolver… aliás, em que fase está o álbum neste momento?

[Rafael] O disco já está feito, estamos só a ultimar o lado visual. 

[Sebastião] E, musicalmente, acho que estamos muito mais encontrados; está um bocado mais aberto do que o EP…

[Rafael] Está mais dançável. Mas também tem músicas mais como “Quando Neptuno deu à Costa”.

[Gaspar] Todo o momento de festa tem um momento de ressaca [risos].

Estamos a ter esta conversa por ocasião da vossa actuação no Festival de Músicas do Mundo de Sines [que acontece já no próximo sábado, dia 22 de Julho], por isso pergunto se nesse concerto em particular vai haver algum vislumbre do próximo disco.

[Gaspar] Vamos tocar o “Bombália” e uma que ainda não saiu.

[Sebastião] Os concertos também acabam sempre por ser diferentes — consoante a maluqueira, claro [risos].

[Gaspar] Também não há condições em Portugal para ser sempre a mesma coisa. Somos uma banda que está a crescer…

[Rafael] Sim, tens sempre que te adaptar.

[Gaspar] Infelizmente, é o que me custa muito ver em Portugal: tens que te adaptar sempre, em tudo — em som, luz, tens que te adaptar ao que há. É impossível, neste momento, construirmos um concerto e recriá-lo mais do que uma, duas vezes. 

Isso enquanto banda pode ser positivo pela novidade constante.

[Rafael] Mais ou menos… É positivo para o público.

[Sebastião] Não é muito positivo porque tu passas algum tempo a pensar num esquema de luz que faça sentido com o que estás a fazer e…

Isso interfere.

[Sebastião] Interfere… Acaba por ser feito sempre; é só aquela cena de tu esforças-te para ter estas músicas e todo um esquema de som e luz que está pensado e que faz parte do concerto…

[Gaspar] Senão ouvíamos o álbum.

[Sebastião] Senão púnhamos o álbum a dar, exacto. E o que o Gaspar estava a dizer é essa cena de ser complicado…

[Gaspar] É a parte triste: Portugal está com uma cena tão fixe — acho que já não apanhávamos o que estamos a apanhar em Portugal há muitos anos, musicalmente e artisticamente. Muitos artistas novos, muitos da nossa geração e não só, continuam a explorar. E é um bocado difícil haver tanta coisa boa em Portugal e continuar a haver condições que não são boas. 

[Sebastião] E a falta de apoio, não é? E, acima de tudo, a falta de conhecimento.

[Gaspar] Cada vez tens mais acesso, mas também… que tipo de acesso é esse?

[Sebastião] Falta de interesse, também. 

[Gaspar] Mas a falta de interesse é porque há falta de acesso. 

[Sebastião] Eu digo falta de interesse não a nível das pessoas…

[Cláudio Ivan Fernandes] Eu acho que aí entra o problema dos ofícios em Portugal. Desculpem estar a interromper, mas aqui em Portugal não tens ofícios. E a parte dos técnicos de som e técnicos de luz também deixaste de ter. Muitos dos técnicos de som e luz que tinhas, durante a pandemia, como já tinham 50 anos e sempre tiveram trabalhos precários, arranjaram outros trabalhos porque viram com a pandemia que, de repente, ficam sem chão. E o que acontece é que os putos mais novos que aparecem… tu sabes que a faculdade não te vai dar a prática que tu precisas.

[Gaspar] Só a estrada é que te vai dar. Agora, aquilo que eu estava a dizer no início da entrevista: passar na escola onde eu passei na primária, que é a 29, a Escola do Torel, foi uma coisa super importante. Porquê? Porque, literalmente, era o sítio onde iam os filhos dos artistas. E com isso tu tinhas acesso a cultura. A escola promovia muito isso. E tu não podes criar um povo sem ter esse acesso à cultura, porque depois não tens identidade e és um zé-ninguém. E é o que eu digo: acho que da parte do Governo devia haver um investimento. Muitas crianças não têm acesso a cultura em casa. Então, se vais para uma escola, tens de os formar em vários sentidos, e cultura é um dos mais importantes. 

[Sebastião] E atenção que, quando falamos em cultura, não estamos a falar do fado e das sardinhas assadas. Cultura de tudo o que é feito cá — musicalmente, no teatro, no cinema, na escrita. 

[Gaspar] E falar da falta de oportunidade que tens nos teatros: temos uma geração muito boa de actores, de escritores e de encenadores…

[Sebastião] E de músicos, meu!

[Gaspar] … e onde é que há essa oportunidade nos teatros para eles? Já chega de ver a peça do Shakespeare; já foi visto muitas vezes, ‘bora dar espaço a coisas novas. O teatro é um sítio de reflexão e a nova geração tem uma vontade de falar gigante.

[Sebastião] Mas eu acho que há muito medo de arriscar. É tipo aquela música do Jorge Palma [“Portugal, Portugal”]: “Tens o pé numa galera / E outro no fundo do mar”. Estamos prontos, está tudo aqui. Temos bandas incríveis. Eu lembro-me de quando éramos putos contavas pelos dedos das mãos as bandas que… nem tanto, eram três, quatro as bandas que batiam e que tinham cenas novas. Hoje em dia tens tanta coisa!

[Rafael] E nós não conseguíamos tocar, meu. Parece que tínhamos de sei lá o quê…

[Gaspar] E não queremos parecer ingratos, mas nós neste momento somos uma banda em que as coisas nos estão a correr bem. Mas há muitas coisas a acontecer por trás de nós, e não é por nos estar a correr bem nesse sentido que não podemos falar ou queixar.

[Rafael] Nós devemos é falar!

[Gaspar] E sinto que, mesmo com este crescimento todo que estamos a ter, não há meios para isso. E há muitas bandas que não têm a oportunidade que nós temos e são artistas do caraças. 

[Sebastião] Acima de tudo, tem que haver o reconhecimento. Isto já não é uma conversa muito actual, infelizmente, porque falou-se disto umas duas semanas e depois passou-se à frente; mas aquela questão das rádios.

As quotas.

[Sebastião] De… quanto é que era?

30 por cento.

[Sebastião] Como é que é possível? Como é que é possível ainda estarmos a falar sobre isso hoje em dia? Como é que não é ao contrário? Temos tanta coisa para mostrar…

[Gaspar] E a oportunidade de trabalho que dás a essas pessoas, porque a partir do momento em que mostras começas a vender mais.

[Sebastião] É mexer na indústria, que é o que nos faz falta: uma indústria.



Da vossa experiência lá fora — sobretudo da tua, Gaspar —, se tirarmos o dinheiro da equação (que já é uma parte grande), o que é que sentem de diferente em termos de estrutura?

[Gaspar] Por exemplo, eu lá fora, fazer uma tour com a Madonna também não é exemplo porque vais dos 8 aos 80. Obviamente, estás numa América capitalista e, querendo ou não, o dinheiro lá não falta. Mas é uma diferença gigante: eu estive naquele espectáculo e vi aquele espectáculo várias vezes, e era um espectáculo incrível. E eu respeito a Madonna, muito, porque naquele espectáculo foi muito urgente e necessário o que ela fez. Ela apresentou um espectáculo que podia estar no Avante. 

[Sebastião] Completamente… [risos]

[Gaspar] Foi um espectáculo necessário! Ela abria o espectáculo a dizer: “Como é que é possível haver putos com 16 anos a poder comprar armas?” E as condições que ela tinha, obviamente, favorecem isso. E cá em Portugal tens muitas coisas para dizer, mas o acesso não é o melhor.

[Rafael] Tu, se calhar, só consegues fazer isso num concerto.

[Sebastião] E, e… Que eu vi aquele concerto no Coliseu [dos Recreios] e fiquei parvo. 

[Gaspar] Eu nunca vi um concerto como aquele no Coliseu, ponto. 

[Sebastião] Tu vês que há uma aposta. Obviamente, era o que tu estavas a dizer, falar da Madonna não vale a pena. 

[Gaspar] Mas falas da Madonna pelo respeito que tem. Foi a primeira artista feminina que bateu e que bate recordes ainda hoje em dia — tem 60 e tal anos e está no top da América. E cá em Portugal tens muito poucas artistas femininas a bater. Tens muitas artistas femininas, mas pouca aposta nelas. 

[Sebastião] Acima do investimento capital, o investimento de apoiar — mesmo governamentalmente. Tipo essa questão das quotas da rádio.

[Gaspar] Vamos falar disso, man. Que raio de povo és sem cultura? Desculpa lá, é “Portugal, Portugal, de que é que estás à espera?”…

[Sebastião] Faz falta esse apoio. Olha, cada vez mais vez uma coisa que eu acho bué fixe, que é identidades dentro de editoras. Tens a Cuca Monga, por exemplo. Tens a Cafetra. A cena desse apoio mútuo, de criar um caminho conjunto. 

Aliás, o caminho tem sido esse: a criação de núcleos mais pequenos.

[Sebastião] Isso é que é o caminho para a frente, porque esses núcleos que se apoiam mutuamente, isso é que é o mais importante. 

[Gaspar] Se não houvesse o interesse da parte dos artistas, onde é que nós estávamos…

E pode haver um núcleo a surgir a partir do legado de Expresso Transatlântico?

[Sebastião] Nós, felizmente, como o Gaspar estava a dizer, sentimos que estamos a crescer de alguma maneira, e muito disso é porque sentimos algum… algum, não; bastante reconhecimento e apoio dos nossos colegas.

[Rafael] Temos gente a trabalhar connosco que realmente nos apoia.

Até porque a banda são vocês os três, mas há sempre mais gente a tocar convosco.

[Gaspar] É isso. Apoiam-nos, mas muitas vezes o falar em apoio é fazer favores. E já custa apresentares uma coisa e teres de pedir favores às pessoas, que é o trabalho delas. E isso acontece. Não vamos ignorar o facto de isso acontecer, porque acontece.

[Sebastião] E artistas em geral, mesmo fora da música — no que toca aos videoclipes, com actores, com equipa, temos sentido esse apoio.

[Gaspar] E quando pagamos, é mal, e mesmo assim dão-nos esse apoio. E estamos gratos por isso. Se ficamos contentes por isso? Não, man… Porque não há condições.

[Rafael] Não há indústria.

[Gaspar] Não há indústria e não há apoios! Custa pedir esses favores, mas ao mesmo tempo é aquilo que eu estava a dizer: se não fossem os artistas a terem interesse…

[Sebastião] Mas obviamente que nos pomos na outra parte, também. E estamos cá para apoiar o resto da malta.

Mas se esta conversa, infelizmente, já não é nova, que volta é que isto pode levar sem se ficar à espera que venha do Estado?

[Rafael] Pois, eu acho que, se não for por aí, é muito difícil… Ok que o dinheiro não é tudo, mas nós não comemos o ar, e tem que haver esses apoios reais. 

[Gaspar] Por acaso, felizmente, temos uma casa para dormir.

[Sebastião] Já chega daquela retórica do artista coitadinho.

[Rafael] Mas isso ser um luxo: ter uma casa. Isso não devia ser um luxo, mas hoje em dia é. O que nós podemos fazer? É fazermos a nossa música e não nos esquecermos de apoiar os nossos amigos e colegas, criarmos uma comunidade que se entreajude. Mas tem que haver um lado de fora.

[Sebastião] Mas acho que o primeiro passo, para responder à tua pergunta, é isto que nós estamos a fazer agora: falar. Se existe descontentamento, é preciso isso ser falado. Não é uma afronta a ninguém. É importante a cultura também ser um local de debate — aliás, é exactamente isso que a cultura é. Como é que dizia o [James] Baldwin?

[Gaspar] Artists are here to disturb peace”.


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