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Texto: Paulo Pena
Fotografia: Kid Richards
Publicado a: 16/03/2023

Tó Trips sobre Popular Jaguar: “É muito mais auto-biográfico, de várias geografias onde vou com a guitarra”

Texto: Paulo Pena
Fotografia: Kid Richards
Publicado a: 16/03/2023

De guitarra na mão e de corpo inteiro na capa, Tó Trips desvenda o terceiro capítulo da sua jornada a solo. Popular Jaguar sucede a Guitarra 66 e Guitarra Makaka — Danças a um Deus Desconhecido com o instrumento de seis cordas em incontornável evidência. Mas a banda sonora que resultou desta nova viagem sozinho reflecte-se em muitas outras geografias para lá das que já lhe conhecíamos. Daí que, ao disco, se junte Ínfimas Coisas, um livro feito à imagem de um diário de bordo, que recolhe fragmentos — em texto e imagem — dessas geografias palmilhadas por um dos mais célebres guitarristas da nossa praça, ele que, no ano em que a parceria com o falecido contrabaixista Pedro Gonçalves, em nome de Dead Combo, completaria duas décadas, volta à estrada, desta vez acompanhado por António Quintino e Helena Espvall — e com um concerto na Culturgest (onde nos sentámos à conversa com o guitarrista dias antes da edição desses dois trabalhos), em Lisboa, já amanhã, dia 17 de Março.



Da última vez que falaste com o ReB, em Julho de 2020 — em relação à banda sonora do filme Surdina —, já falavas de um potencial álbum a solo. A partir daí, quando é que a coisa começou a ganhar forma?

Ganhou forma porque, ao fim e ao cabo, a mim aconteceu-me um pouco de tudo. Acabou a banda que eu tinha, o Pedro [Gonçalves] também se foi embora. Depois, mais esta cena da pandemia… Essa história da pandemia foi um bocado olhar para trás — porque eu sou um gajo de correr sempre para a frente, não para trás. Mas isso obrigou-me a “arrumar a casa”. Eu, às vezes, só tenho minimamente consciência do que fiz quando me pedem currículos ou, sei lá…

Ou nestas entrevistas…

Sim, exacto [risos]. Uma vez fiz um pedido de apoio para a GDA [Gestão dos Direitos dos Artistas] e comecei a ver os discos que tinha… Às vezes, é só nesses momentos que um gajo se apercebe do que é que fez. De resto, não sou muito de estar a pensar no que é que fiz. Ou seja, toda essa situação obrigou-me a… e também foi uma maneira de estar ocupado, de pensar no que é que poderia fazer numa situação dessas. Eu, por acaso, até fui privilegiado, porque tive com a cena do Surdina, ainda andei aí a tocar — o resto da malta, não. Mas foi uma maneira de eu tentar fazer um disco que reunisse as geografias de guitarra, onde é que eu tenho ido. E a história do livro também foi a cena de ser um livro de viagens, ou seja, fotos e histórias de rock’n’roll que se passaram na minha vida. Podes ver aí.

[Mostra o livro]

Também tem um [disco de] 7 polegadas. É um vinil com uma composição sonora com vários sons das viagens que eu fiz, com sons ambiente, desde um tipo a tocar Elvis [Presley] numas ruas de Hong Kong, com pessoal em Barcelona, Marraquexe… Fazer uma trilha sonora. E o outro [lado] é um tema com a Helena Espvall. 

Que fase representa este disco em comparação com os teus dois anteriores a solo?

É um disco muito mais auto-biográfico, de várias geografias onde vou com a guitarra. Ao fim e ao cabo, percorrer um bocado de tudo aquilo que eu já fiz na guitarra.

Como é que um disco é auto-biográfico sem palavras? São essas geografias que falam por si?

É auto-biográfico porque há uma certa identidade a tocar guitarra. Essa está lá sempre. E tenho tanto temas de guitarra clássica como de guitarra eléctrica. Também convidei pessoas para este disco. No fundo, é auto-biográfico no sentido de reunião de imaginários, de tudo aquilo que tenho feito.

O título Popular Jaguar vem, também, da própria guitarra que aparece na capa do disco?

Tem a ver com a [Fender] Jaguar, que é a guitarra, mas também tem a ver com o gajo que é conhecido, mas que anda sempre na sombra.

A movimentação do felino.

Sim, sempre na sombra, sem dar grande show off [risos].

Para quem privilegia tanto a componente visual, qual é a grande imagem deste trabalho?

Acho que a grande imagem é as fotografias do disco. Para já, gosto mesmo imenso das fotos — estão umas grandes fotos do Kid Richards. Eu acho que ele sacou bem esse lado que era de assumir o Tó. O Tó era conhecido nos Dead Combo, mas como um personagem: o gajo da cartola e não sei quê… E, ao fim e ao cabo, é a primeira vez que há um disco em que ele aparece na capa. Porque nos outros discos que eu tenho, aparece a minha mulher no primeiro — o Guitarra 66 —, o Guitarra Makaka é uma ilustração, e este é mesmo um retrato do gajo.

Até no sentido contrário daquela ideia que nos Dead Combo passavam, de ir aparecendo cada vez menos nas capas dos discos.

Sim, nós aparecíamos sempre nas capas. O último [Odeon Hotel], por acaso, já éramos diluídos no meio das pessoas.

Os dois primeiros discos a solo também foram inspirados por viagens. Que viagens estão representadas neste álbum e, sobretudo, no livro? Falavas em Hong Kong e Barcelona…

Viagens com Dead Combo, viagens sem Dead Combo… Desde Estados Unidos [da América], Rússia, África, Brasil, China… 

Como é que foi o processo de recolher tanta coisa?

Foi lembrar-me de histórias, e associar histórias a imagens que tinha de arquivo. Ou, então, pegar em fotos e lembrar-me de histórias. Há coisas que nem tenho fotos.

[Folheia o livro e cita uma passagem] 

“Uns foram para o Paco da Avenida de Berna, os outros foram para os cu de Judas na Comuna” — isto foi um concerto a que eu fui nos anos 80, dos primeiros concertos punk que eu fui. Isto não tem imagem nenhuma.

Há alguma continuidade no livro, ou é uma sequência de fragmentos?

São fragmentos, são histórias meio poéticas, frases… 

Mesmo não havendo um seguimento lógico, que ordem é que o livro seguiu?

As ordens… isto houve várias ordens. Eu não fiz uma ordem cronológica, fiz uma ordem à minha maneira, que fosse mais estética e ligada à cena da imagem.

O livro complementa o disco, ou o disco complementa o livro?

Não, são duas coisas autónomas. Ou seja, o livro sai na mesma altura que o disco, mas o disco foi terminado primeiro. E o livro tem muitas opções… Este disco nem era para se chamar Popular Jaguar, era para se chamar Península dos Índios, porque essa “Península dos Índios” vem de uma história [procura a história no livro]. E, aliás, lembrei-me desta história e depois lembrei-me de compor um tema em relação a esta história — e a partir daí seria um disco. Só que isto [o livro] ainda não estava feito. E depois é que me lembrei: “Já que há esta história, ‘bora escrever outras que se passaram”.

Nos Dead Combo havia uma aura de um western à portuguesa muito presente. Que ambiências marcam este disco?

Tens várias: umas mais tugas, tens uma que até parece música japonesa, tens uma mais jazzística, tens umas clássicas tipo esta, “Dançar Frente ao Espelho” — tem a ver com aquela cena de quando um gajo é puto, quer ter uma banda, quer tocar guitarra, e pega na vassoura e está a olhar-se ao espelho, [a ver] como é que seria com uma guitarra —, tens uma à italiana, tipo máfia. Ou seja, há vários ambientes aqui no disco. Mas não tem um ambiente western. Também fartei-me muito disso — eu e o Pedro. Está feito. Não estou a dizer que não gosto, mas fomos bué conotados com isso, mesmo quando já nem estávamos aí. 

A primeira imagem é a que fica sempre.

Sim, exacto. Pronto, vamos ficar sempre do western… [risos]

Este é mais um disco que gira à volta da guitarra. Já disseste algumas vezes qualquer coisa como, “Eu hei-de morrer sem saber tocar guitarra”, no sentido de nunca vir a dominar o instrumento por completo. Ao fim destes anos todos, qual é a tua relação com este instrumento? É diferente do que era há dez, vinte, trinta anos?

Não! Só é, algumas vezes, numa questão de… vou dar um exemplo: uma vez fui tocar ao Porto, aos Maus Hábitos, e depois eles alugaram um hotel que há agora no Porto, que é o Mouco, em que podes levar uma guitarra eléctrica para o quarto. E eu cheguei lá, estava muito cansado, e eles, “Tó, se quiseres podes levar uma guitarra”. Eu percebo que é muito fixe levar uma guitarra, [mas eu disse] “Epá, desculpa lá, mas guitarra todos os dias…” [abana a cabeça a rir].

Era como se o Cristiano Ronaldo levasse uma bola para o quarto…

[Risos] Exacto! Não sou o Ronaldo da guitarra, mas sim, é um bocado nesse aspecto. Agora, sou gajo para estar horas naquilo. E não sou só eu. Acho que as pessoas que vivem a vida de tocar, ou que gostam de tocar, sejam novas ou mais velhas… Eu topo isso: o pessoal tem sempre uma guitarra e está ali a [tocar], mesmo que não vá a lado nenhum. 

Há muitos exemplos de músicos que ao longo da carreira foram descobrindo outros instrumentos. Isso contigo nunca aconteceu?

Não… Eu, quando era puto, até curtia de ser baterista, mas nunca fui por aí. Depois, também, como senti me senti bem com a guitarra, e como eu acho que é uma coisa infindável, é isso: hei-de morrer sem saber tudo — nem que se pareça.

No fim de contas, como é o diálogo musical entre guitarristas que tiveram uma formação tradicional e os que, como é o teu caso, foram autodidactas?

Acho que é sempre fixe saber as duas coisas: é sempre fixe saber a parte técnica, que era uma coisa que eu não ligava há uns anos atrás, nos anos 90 — quem vem do punk não ligava a isso, era mais uma coisa de atitude —, mas também é fixe não estar pegado a fórmulas. Ou seja, tentar ter o bom dos dois mundos: o lado mais livre e abstracto, se calhar [mais] sónico do que propriamente [de] notas, e também o lado da técnica, de notas, de escalas… Há coisas que, de certeza, um tem mais do que o outro, mas há muita gente que o pessoal gosta que nunca teve educação musical nesse sentido académico. O Chet Baker não sabia escrever nem ler uma pauta.

E como é que se guarda toda a música escrita ao longo destes anos?

Eu, às vezes, tenho de reaprender a tocar as músicas. Por exemplo, agora para os ensaios, há aí uma música que eu tive de estar a reaprender, a ouvir o que se fez, senão já não sabia tocar [risos]. Que é uma coisa que eu não gosto muito de fazer…

Porque pode ficar diferente.

Não… Eu não gosto de aprender a tocar músicas [risos]. 

Mas neste caso não são músicas de outras pessoas.

Sim, sim, verdade. Não me importo, mas não foi isso que me levou a ser músico, tocar músicas dos outros. 

Nesse sentido de aprender a ouvir, dizes, por exemplo, que aprendeste a tocar flamenco à tua maneira a ouvir outros tocarem. Hoje, como os géneros estão cada vez mais misturados, sentes que essa “apropriação” é mais bem aceite?

Eu fui parar à música porque ouvia os outros. Se gosto de música é porque oiço os outros. 

Apropriação na perspectiva de “respeitar o género”, seja o que isso for.

Sim… Vou dar um exemplo: sempre gostei de rock e das cenas anglo-saxónicas, mas hoje em dia, já de há uns anos para cá, gosto de ouvir outras coisas — e outras coisas de outras regiões. Outras maneiras de pensar, de tocar, de ver as coisas, ao nível rítmico, ao nível melódico… Para quem é músico e gosta de um instrumento, acho que é fixe explorar essas coisas.

Mas, se calhar, nos anos 90 essa mistura do rock com outros géneros não era tão bem vista.

Ah, mas eu acho que as coisas se misturaram depois do princípio deste século. Houve muito mais fusão, graças, se calhar, à net, à informação. Hoje em dia, é muito mais fácil… Nos anos 90, tu falavas-me de uns tipos e eu tinha de ir à procura numa loja de discos se tinha lá o disco que tu me tinhas dito. Hoje em dia, não. E ganhou-se muito mais com isso, essa mistura. E essas coisas de mistura tem uma coisa muito porreira que é: dão azo a outras coisas que aparecem, que dantes não apareciam. 

O rock deixa de ser só rock? Ou seja, essa mistura de géneros vai diluindo cada um deles isoladamente?

Sim, mas há coisas que se mantêm mais rock. As coisas também têm a ver não só com aquilo que tocas, mas a maneira como tocas, a atitude [com] que tocas. 

Como vês o panorama do rock actual?

Acho que o panorama é sempre fixe — sempre foi. Sempre houve boas bandas. Penso é que, hoje em dia, as coisas são um bocado mais “versão televisiva” ao nível de espectáculo. Quase que as bandas foram renegadas para segundo plano. No palco principal português é mais pessoal de microfone e alguém a disparar sons. 

E um rock mais perto da pop.

Sim, sim… Que há coisas bem feitas, ainda. O rock está um bocado renegado para segundo plano. Acho que a música se tornou muito mais individualista do que [em] grupos. Hoje em dia, são muitos os artistas em nome próprio, e não bandas. 

Se calhar, pela questão económica.

Sim, pela questão económica e, também, porque que tu, sozinho em casa, podes fazer música — música até preenchida, com baterias, baixo… O pessoal fechou-se muito mais em casa. “Para que é que eu hei-de estar aqui a chatear-me com o Paulo, que chega tarde aos ensaios, se eu posso estar a fazer as músicas em casa?” Estou a falar de coisas que aconteciam antigamente. Apanhei muito disso — eu e muita gente. Acho que também tem a ver com isso, com a maneira de produzir música. 

É completamente diferente. À distância de um clique pode-se aprender tudo.

Sim, e os miúdos também são mais informados em relação à música. Como se faz as coisas, como é que se produz um som mais retro e esse tipo de coisas.

A ideia de que o rock estaria a morrer também já parece estar mais ultrapassada. Mas que futuro tem o rock neste contexto?

Vai aparecer aí malta que vai partir a loiça — como aparece sempre [risos]. Os ciclos repetem-se. Vou dar um exemplo: esta situação que se está a passar agora. Que idade é que tu tens?

24 anos.

Preocupa-me bué a vossa geração. Como é que o pessoal arranja casa para viver, sempre com trabalhos precários? Eu tenho uma filha que vai fazer 22, mas não é só por causa da minha filha — é por causa de uma geração inteira. Ao fim e ao cabo, é o futuro deste país. Ainda têm que estar em casa dos pais, não conseguem sair de casa, alimentação e supermercados horrivelmente caros… O pessoal vai ter de fazer alguma coisa. Vocês vão ter que sair para a rua, porque isto não pode continuar assim. Que raio de futuro é este? O pessoal não se pode conformar, por isso eu espero que haja esse grito, e por isso é que, em relação à música, as coisas se vão repetindo.

Como se a conjuntura pedisse um novo movimento punk.

Exactamente. O punk apareceu porque aquilo estava uma desgraça: era desemprego, o pessoal a passar fome… As coisas aparecem disso.


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