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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 25/03/2023

Ouvidos a arder.

The Comet is Coming no Lisboa ao Vivo: cometas em fogo

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 25/03/2023

No grande esquema das coisas pop, 2 milhões de visualizações no YouTube não é propriamente coisa que se veja e qualquer vídeo viral de um gato a curtir largo oblitera esse número multiplicando-o umas 40 vezes. Acontece que “Summon The Fire” não tem qualquer vestígio de “cuteness” e apresenta-se, ao invés, como um objecto visualmente psicadélico e sonicamente visceral, todo ele nervo, apoiado numa força motriz incessante e baseado no que claramente soa à mãe de todas as frases jamais riffadas (de riff, pois claro, não de rifa…) num saxofone tenor.

Foi exactamente assim, com toda essa força bem presente e até expandida, que esse tema soou ontem à noite na apresentação dos The Comet is Coming de “King” Shabaka Hutchings, Dan “Danalogue” Leavers e Max “Betamax” Hallett no Lisboa ao Vivo. Shabaka pode estar prestes a despedir-se do seu saxofone, como já fez publicamente saber, e isso poderá significar o fim dos The Comet is Coming (tal como sucedeu com os Sons of Kemet, outro dos seus projectos), mas, a julgar pela intensidade extrema do que poderá então ter sido o último concerto lisboeta do trio, pode concluir-se que este cometa não vai desaparecer sem estrondo de proporções cósmicas.

A fila que levou um sólido milhar de pessoas para dentro do LAV traduzia, por volta das 21 horas, uma ansiedade colectiva que merece alguma reflexão. Não é todos os dias que um trio de – à falta de melhor termo… – “novo jazz” (a própria banda adicionou ao seu trabalho de estreia no Bandcamp tags como “electronic”, “jazz”, “cosmic”, “dance”, “psychedelic” e “London” – todas apropriadas, diga-se de passagem) consegue convocar tamanha multidão quando não existe, a reboque, um contexto de festival ou clara pressão mediática. Este “jazz”, já se percebeu, ignora as convenções do género há muito estabelecidas – formas de apresentação e comunicação, mise en scéne, contextos programáticos, público alvo, etc. – e adopta, sem receios ou pruridos de qualquer espécie, os métodos de outras músicas – das zonas mais agitadas da electrónica às igualmente intensas regiões do rock mais físico e “alternativo”: luz imersiva, som alto, plateias de pé… A estratégia, pode e deve concluir-se, funciona: num espectáculo em que durante para aí os primeiros 80 minutos não se proferiu uma palavra, o trio conseguiu, ainda assim, comunicar claramente ao que vinha.

A barragem sonora que os The Comet is Coming apresentaram durante para aí uns 90 minutos (se o botão de volume dos amplificadores do PA do LAV vai até ao 10, o técnico da banda conseguiu, sem dúvida, arranjar maneira de o forçar para aí até ao 12 ou 13 obrigando os VUs a trabalho extra e a não saírem do vermelho…) faz-se de riffagem constante de Shabaka Hutchings, com a sua total entrega física a ficar bem patente nos músculos retesados dos seus braços, e de uma densa base rítmica e harmónica proporcionada por Betamax e Danalogue. O baterista só já perto do final do concerto pôde exibir de forma mais subtil os seus dotes com um solo que nunca perdeu o norte do groove, optando pela repetição em detrimento de uma coloração mais expansiva e “livre”, e que, para bem dos nossos pecados, se revelou generoso no “cowbell”. Cai sempre bem. Danalogue, por seu lado, foi o elemento mais disruptivo: os dois Rolands que tinha diante de si – um Juno 106 e um SH-01 –, juntamente com os pedais, trabalharam afincadamente durante todo o concerto, com o Moog que tinha à sua esquerda a ser usado apenas no final. Do conjunto, o teclista extraiu abissais graves dubstep, camadas de ácido rave e chispas cósmicas a rodos. Mas foi sobre Shabaka que recaiu a componente da fórmula que garante a singularidade ao som do trio e que, convenhamos, maiores aplausos gerou: riffs com estrutura melódica simples, gritados muito literalmente para dentro do saxofone, um misto de screamo punk com fogo ayleriano.

Nos mais abrasivos momentos do concerto – que representaram para aí 80 por cento do reportório -, The Comet Is Coming parecem meter tudo na sua betoneira sónica: jazz free e cósmico, obviamente, mas também hardcore rave, metal, psicadelismo e uma entrega que parece ser genuinamente punk. Eles sabem que quebram regras e estão ok com isso. 

Do já mencionado “Summon The Fire” de Trust in the Lifeforce of the Deep Mystery (2019) a “Pyramids” do mais recente Hyper-Dimensional Expansion Beam (2022), estes incandescentes cometas passaram por uma boa dezena de peças da sua curta, mas relevante discografia nunca os tomando, no entanto, como reportório cristalizado, antes como pontos de partida para visões mais tangenciais ou mesmo completamente livres. Privilegia-se, muito claramente, a sobredosagem rítmica e nada do que nos trabalhos de estúdio cai no lado da subtileza é convocado quando é do palco que se disparam estas arcanas verdades cósmicas.

Tamanha demonstração de estamina foi recebida com pleno entusiasmo por parte de uma plateia variada e muito jovem que, em boa verdade, já estava conquistada antes mesmo da banda entrar em palco. O clima eléctrico que se sentia dentro do LAV fez faísca e o trio londrino incendiou-se mal aflorou à boca de cena. E não houve quem não tenha saído dali chamuscado perante tal erupção.


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