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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 18/04/2024

Música de combate em tempos de urgência.

Prétu: “O combate a fazer é unir as pessoas contra esta ideia universalizada de ódio”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 18/04/2024

Lançou um dos mais marcantes e importantes álbuns do ano passado e agora tem vindo a apresentá-lo numa série de datas. Falamos de Prétu, alter-ego artístico de Nuno Santos, mais conhecido no mundo da música como Chullage entretanto estilizado enquanto Xullaji

Prétu 1 – Xei di Kor foi a peça inaugural deste novo projecto artístico, um manifesto político que aponta o dedo ao capitalismo e aos padrões colonialistas que continuam a definir grande parte da nossa sociedade. Prétu recorreu a samples de música dos PALOP para construir um corpo sonoro denso e experimental, que é hip hop no método mas extravasa em muito quaisquer fronteiras sonoras de género.

Hoje, 18 de Abril, apresenta a sua performance, tão musical quanto visual, no festival Impulso, no Centro Cultural e de Congressos das Caldas da Rainha. Foi o pretexto para uma entrevista com o Rimas e Batidas no espaço Tabanka Azul, na Arrentela, a poucos dias dos 50 anos do 25 de Abril, onde também se abordou o projecto PREC – Poesia Revolucionária em Curso, de Xullaji, que já soma três faixas; mas também o papel do hip hop no momento político e social que atravessamos.



Lançaste recentemente dois temas enquanto Xullaji, “Surto” e “Açaime”. Fala-nos deste PREC – Poesia Revolucionária em Curso.

Lancei agora estes temas porque há um combate político a fazer. O “Surto” é sobre toda essa violência económica a que chamamos pobreza, que é uma palavra desvirtuada, porque ela não nasce do nada. Nasce de escolhas políticas, e das escolhas de mercado que forçam a política. As pessoas não são pobres porque querem. O “Surto” é quando chegas a um ponto em que estás desesperado: não tens como pagar a casa, como pagar a creche dos teus filhos, mais isto e aquilo. Vivemos num país ou numa cidade que virou um playground de turistas, então toda a organização económica e social é feita nesse sentido, para as pessoas que têm dinheiro. Se não tens dinheiro e te aleijares num pé, vais esperar 24 horas no hospital. Se te divorciares e ganhares 800 euros, vais viver na rua, porque não consegues arranjar uma casa. Já sabemos tudo isso. E estas pessoas vivem cada vez mais ostracizadas por serem trabalhadoras, apanham um autocarro ou um comboio de duas horas, andam numa lata de sardinha e depois são maltratados em Lisboa por algum patrão ou por algum turista, ou por algum patrão submisso do turista e do mercado. No meio disto tudo, as pessoas acham que escolher mais fascismo é que vai resolver esta merda toda. O “Açaime” irá sair outra vez, com um rework. Lancei uns dias antes das eleições…

Porque querias marcar uma posição.

Queria fazer o meu papel. Por exemplo, há coisas que digo no “Surto”, das pessoas que ouvimos aqui na rua e que estão desesperadas… Aquilo é compactado numa coisa que se chama voto de protesto. Tudo o que é categorizado como voto de protesto é votar em determinado partido ou ideia fascista, racista, xenófoba, contra as mulheres, que vai fazer um retrocesso, como já vimos na América até vieram recuperar uma lei do aborto de 1864. Não é isso que é um protesto. Protesto não é esquecer, não ter memória, e retroceder. Porque as pessoas que hoje têm 20 anos e que dizem que antes é que era bom, não sabem o que era antes. Não passaram fome neste país, não levaram porrada da PIDE, não foram obrigadas a ir para a guerra. Portanto, não sabem nada do que era antes. São pessoas que estão a falar no vazio. E isto não é nenhuma coisa idadista não é “eu é que sei”, porque eu também não vivi antes do 25 de Abril.

Mas é uma questão de ter consciência das coisas.

É ter memória, estudo e profundidade. Agora, votar em clickbaits, highlights, vídeos de 12 segundos porque este gajo neste tempo disse tudo o que eu queria ouvir… Significa quão raso está o pensamento. O “Açaime” é isso, foi essa necessidade. Agora, como não tem 10 segundos nem é uma coisa levezinha, não tem um impacto. Mas cada um de nós tem de fazer o nosso papel. O “Sonhei Que No Meu Bairro” foi o primeiro som deste PREC – Poesia Revolucionária em Curso.

Como tiveste a ideia para criares este projecto?

O PREC é uma coisa que já quero fazer há muito tempo. Aliás, já escrevi e gravei o “Sonhei Que No Meu Bairro” há muito tempo. Lancei no ano passado porque vou escrevendo, depois um dia digo: vou fazer o álbum. Nunca fiz um álbum do género: vou-me sentar e fazer um álbum. Nem sequer este de Prétu.

Foste sempre fazendo, foi acontecendo?

Tinha músicas escritas, e de repente estava na hora. Mesmo o Rapressão foi uma coisa de, em pleno 2012, com tudo o que estava a acontecer no país, ter de dizer aquilo. E o PREC é um bocado isso, mas é uma ideia que já estava na minha cabeça há algum tempo… A próxima vez que lançar um álbum de Xullaji vai chamar-se PREC. Só que eu não quero lançar um álbum do género: está aqui mais um produto, desta indústria, e está-se bem, é uma coisa para entreter a malta do hip hop nos próximos 15 dias. “Ah, o Chullage lançou, mas não lançou um ‘Rhyme Shit Que Abala'”, é sempre a mesma coisa, e toda essa merda que me irrita de morte. Então o PREC é uma coisa em curso, gosto precisamente disso porque este país teve esses meses de revolução. E, neste momento, pensar pensar, não é reagir aos posts é revolucionário. Como li noutro dia num livro lindíssimo, a poesia é o pensamento em movimento. Acabei de ler isto, há dois ou três dias. Então o PREC é isso, é continuar a expressar com densidade, com aquela que eu consigo, e continuar a fazer esse combate. Mas em curso. Não é um álbum, as músicas vão aparecendo e vão compondo uma coisa que poderá vir a ser um álbum, ou não.

Não estás focado nesse resultado.

Exactamente, estou focado no processo. Vou escrevendo, as coisas vão ganhando forma. Não sei que musicalidade fazer para Xullaji, então também não tenho… Mesmo no “Açaime” gravei os vocals, mandei ao Tayob, ele mandou-me um piano de volta, depois cortei uns bocadinhos, e havemos de fazer um rework mais em beat, mas ainda não sabemos muito bem o que é. É um bocado esse processo.

Eu estive no TBA e vi a apresentação do álbum de Prétu. É o mesmo formato que vais levar agora ao Impulso?

Sim, não é exactamente o mesmo, porque não tem todas as mesmas pessoas, mas é a que levei agora ao Porto. 

Foi muito exigente para ti pensar no que faria sentido em termos performativos, depois do álbum? Ou foi muito natural?

Não é muito exigente nem é muito natural, porque as músicas que lá estão também não são pop-ups, foram sendo feitas. Lá está, isto é um pensamento que eu canalizo. É um pensamento que vem antes de mim, de outras pessoas que não eu… Aliás, uma das coisas de Prétu é despersonalizar. Não é o Xullaji. E também combater esta ideia da novidade e da mesmidade. Cada vez que a gente vem dizer mais do mesmo, é sempre apresentado como novidade. Eu estou a recanalizar uma série de mensagens e princípios, de uma luta política que já tem muitos, muitos anos. Ora, essa luta já tem uma estética, uma sonoridade, um estar sobre o qual outras pessoas já pensaram. O que eu faço é acrescentar a minha parte. E como aquilo que é a minha base familiar e artística é Peles Negras Máscaras Negras e nós somos um grupo que está no espaço da performance, é muito mais interessante fazer essa performance do que apresentar um concerto, tocar 10 músicas e ir embora para casa. Também é uma performance que está sempre em movimento: já fizemos assim e assado, às vezes é com dois músicos, já foi e será só eu, a Alesa [Herero] e a Raquel [Levy], as duas pessoas que pertencem a este grupo. E as outras coisas foram surgindo, troquei umas caixas de luz por um trabalho, tinha estes posters que tinha usado n’”A Luta Continua”. A estética vai-se somando, e, quando chegou a hora de ir a palco, foi unir uma série de elementos, performativos e visuais. Depois, como venho do campo do hip hop e da música africana, que ultimamente tem uma imagem brutalmente branqueada e higienizada, para nós a componente visual é importante porque é colocar o nosso pensamento, mas também a nossa alma e corpo, naquela tela num framing em que queremos estar e não num framing que nos dão. Mesmo hoje em dia, havendo muitos artistas negros, há uma série de estereótipos que se vendem na nossa música, a música popular negra. Quando entra num caminho mais industrializado, começa a vender uma série de estereótipos e uma ideia essencialista e redutora do que é ser negro. Nenhum de nós sabe o que é ser negro, porque é uma coisa muito vasta. Ser africano é um puzzle de várias peças. Mas quando vamos olhar para a música pop de hoje, está sempre a vender isso. E quando falo em pop falo em parte do hip hop, da kizomba e agora também a música cigana. Todos esses essencialismos que a música popular tenta vender em Prétu tentamos fazer um reframe, usando referências de vários tempos. Por exemplo, no vídeo da “Fidju Maria”, tens várias referências de coisas artísticas que aconteceram antes em Portugal, como o África Festival, que é para também mostrar que isto não é de agora. Esta coisa pós-George Floyd, de que a luta nasceu agora…

Há um legado.

Um legado muito grande a que temos de dar continuidade. Não é dizer: “nós não somos os nossos avós, agora é que é.” Não, é o contrário. Nós somos os nossos avós e estamos a continuar. E cada geração vai vir mais informada, mais preparada, mas não é um pop-up de que tudo começou agora. Prétu é um bocado isso também. É uma continuação, uma invocação que também é estética. As letras são o que são, mas depois a música é pegares no hip hop e fazeres tudo o que está para trás do hip hop. Uma das dificuldades que tenho é que esta ideia de que o hip hop vem da América é uma ideia que nos põe em Nova Iorque. Só que o que aconteceu em Nova Iorque foi uma síntese de coisas que já vinham de outros sítios. Algumas vieram via Caraíbas, via Mississipi, chegaram ali e foram sintetizadas de uma maneira simples mas um simples brutal. E já estavam a ser sintetizadas pelo funk, pela soul, pelos blues, pelo gospel e várias outras coisas antes disso e antes do território norte-americano.

Até a cultura dos soundsystems da Jamaica.

Exacto, e quando situamos em Nova Iorque um dos contributos mais importantes da cultura africana no mundo também estamos a imperializar essa música. E a América exporta tudo tudo o que é americano é exportado como “essa é que é a coisa”. Só que, antes do hip hop, houve uma série de coisas africanas que deram origem àquilo. Portanto, Prétu só recuou um bocado. O pessoal que não percebe e que vem cansar a cabeça de um gajo… Bro, eu só dei um rewind e comecei um bocado mais atrás do que Nova Iorque. E porque eu sei em que barco é que a minha mãe veio. Ela não veio via América, ela subiu o Atlântico directamente. Eu posso só fazer esse skip America, go back. Mas, ao mesmo tempo, não dou um skip porque está cheio de coisas de hip hop. De sampling, da maneira como programo as baterias…

E a tua própria pessoa tem muito dessa bagagem.

Exactamente, estou cheio. Prétu não teria existido sem todo o hip hop que vive dentro de mim e que eu adoro.



Lembro-me de ler numa entrevista, que tem a ver com o que dizias agora sobre ser algo despersonalizado, que tu enquanto pessoa não tens muito a ver com essa figura de Prétu, no sentido de representar algo maior do que tu.

Em relação ao Xullaji, Prétu é se calhar uma coisa que sintetiza muito mais o que eu sou desde menino, e as várias coisas que estão na minha cabeça, essa esquizofrenia e instabilidade, coisas que hoje abraço na boa. Sendo muito eu, às duas por três o Xullaji barricou-me num sítio. As pessoas diziam: “Tem de ser assim, tem de ser assim, ah e tal o ‘Rhymeshit que Abala.'”

Por causa dos padrões do rap.

Sim. Embora o rap tenha sido para mim um portal e um vórtex que me abriu a minha primeira possibilidade artística, porque eu era uma pessoa que morava ali nas barracas do Monte da Caparica, portanto não tinha MPCs, nem isto nem aquilo, e o rap nunca representou tudo aquilo que a minha pessoa é. Então, o Prétu conta uma série de outras coisas do “Nuno da Bia” que vêm livremente. Mas para isso tive que sair, bazar daqui de Portugal, da própria música, da própria ideia de Xullaji desde 2012… E não falo em “bazar” de forma contente, digo até muito magoado. Porque as pessoas reclamam muito o Xullaji, mas depois faço uma pergunta: se reclamam tanto, porque é que quando fiz isto ou aquilo é tão invisibilizado? Chegou a um momento em que I just don’t care. Porque houve momentos em que diziam: “O Chullage é racista, ou é isto ou aquilo.” Estavam sempre a encaixar-me num sítio que não era eu. Agora vêm reclamar o quê? E o que é que podemos reclamar uns dos outros? Eu não reclamo nenhum puritanismo a nenhum rapper que oiça. Quando ouves o André 3000 a fazer este último álbum, em vez de o criticar por ele não ter feito um álbum como os que estão para trás, vou tentar entender e ouvir porque é que ele fez esse álbum. Quando vês o Kendrick a fazer o To Pimp a Butterfly, a seguir o DAMN. e depois o Mr. Morale & The Big Steppers… É isso. E não me estou a comparar, estou é a dizer que são pessoas que são verdadeiras consigo próprias. Em vez de irem fazer aquilo que as pessoas esperam delas, que é uma forma de ficares muito triste e um produto de supermercado, é, com todas as contradições e dificuldades que isso possa ter, seres tu. E há pessoas que vão gostar, pessoas que não vão gostar… As pessoas têm sempre muita coisa para dizer. Hoje em dia, então, em que toda a gente é um comentador… Se não fores verdadeiro contigo, as pessoas vão dizer. Há vários provérbios cabo-verdianos que falam dessa ideia. Quando nos preocupamos muito com o que as pessoas vão dizer, já estamos nas malhas da indústria cultural e musical capitalista.

A performance do Xei di Kor é, obviamente, muito coerente em relação ao álbum. Está muito interligada e é muito incisiva. É isso que também quiseste passar para as pessoas que vão assistir? É necessário transmitir um certo choque de realidade?

É coerente com o álbum, mas há várias coisas que só acontecem ao vivo, algumas transições e coisas que só acontecem ali. Aquele álbum é um álbum para passar uma mensagem concreta, que vai ser cada vez mais importante. Quando dizes coisas como “A Revolução Não Vai Ser um Tweet” e toda a gente votou nesses filhos da puta que tiveram este resultado a tweetar ódio… Quando tens uma pós-pandemia em que a Europa toda se barricou e disse “não se preocupem, quando isto acabar vamos ficar todos bem”, mas depois o Sul que se foda. Então pergunto: todos, quem? O álbum é simples, nesse aspecto. E eu fiz sempre álbuns que agradavam a uns, não agradavam a outros, depois não agradavam aos que tinham agradado antes, e é uma luta. Mas não faço música para mais nada. O elemento estético faz-me crescer como ser humano e a arte é isso, faz-nos esticar, faz-nos reflectir. Quando vou a palco e digo-te já que não gosto de palcos, já com o Xullaji doía-me muito, até por causa das coisas que eu falo, e às vezes o pessoal está ali e quer é dançar e curtir uma punchline, mas se eu subir àquele sítio já vou em missão. E hoje, que tenho uma família ou uma organização que me dá esse back-up e que está na mesma esfera política, coisa que não aconteceu muitas vezes, subimos ali em combate. Agora, esse combate tem um elemento estético, performático, musical e visual que faz com que seja arte. Porque a arte também é isso, é essa fusão entre conteúdo e forma. Se me perguntares se vamos pôr as pessoas a dançar, não… As pessoas dançam porque a dança para as pessoas africanas é um elemento importantíssimo de libertação, até para extravasar o teu corpo. Apesar de as pessoas olharem hoje em dia para o funaná e para a kizomba de forma descontextualizada, essas músicas em algum momento foram proibidas pelo mesmo regime que agora as abraça, porque agora consegue vendê-los e fazer dinheiro. É como um país que trata tão mal os ciganos mas depois pega na música deles e vai fazer Pedros Mafamas. É esse país esquizofrénico que expropria completamente essa música. Então, nós não vamos fazer dançar nesse aspecto do dançar inconscientemente, mas há momentos em que se dança para libertar… Isso é um acto político, porque o meu corpo está sempre fronteirizado. Isto é uma sociedade fronteirizada. Ali, é um momento em que podemos pôr o nosso corpo e consciência num sítio diferente. E unir os nossos corpos e almas com outras pessoas que estejam noutra frequência.

Claro, e quando actuas para pessoas como eu, se calhar o objectivo pode ser outro. Pode ser o tal choque de realidade, pode ser tentar fazer com que o público apreenda coisas para as quais não está consciencializado ou não quer estar.

Mas se esta é uma coisa que também te toca, nós temos coisas em comum, ao contrário do que eles dizem. “Porque tu és branco, eu sou negro, e não temos nada em comum.” É mentira. E se tivesse lá um cigano ou um paquistanês, a mesma coisa. Se nós pudermos comungar com aquela mensagem naquela hora, é porque há coisas que nos unem, ao contrário do que eles querem fazer crer, que só temos coisas que nos dividem. Se tu cresceste na Margem Sul e o teu pai se fartou de trabalhar aqui, há muitas coisas que nos unem. Mais do que nos focar naquelas duas ou três coisas que nos dividem, há 50 que nos unem. Também passa por aí.

Isto é muito paradoxal tendo em conta o momento político que vivemos, como já bem descreveste; porque, por coincidência, o rap está em altas, no sentido de estar cada vez mais no mainstream, de cada vez existir mais essa visibilidade, popularidade e impacto; mas por outro lado parece haver uma menor apetência por canções politizadas. Parece que já houve muita crítica social e política no rap quando ele estava no seu canto, no seu nicho, no underground, e hoje quando esse combate é tão importante se calhar mais importante do que nunca desde o 25 de Abril talvez isso não seja aproveitado, não sei se por falta de consciência dos próprios artistas… 

Tu aí já disseste tudo. Actualmente há muito menos voz de luta no rap. Há muita por exemplo, dos Estados Unidos da América estou sempre a ouvir rap político.

Sim, mas eu até me estava a referir mais ao contexto português.

Exacto, mas só para te dar um exemplo: aquilo que é amplificado nos EUA é mais um rap de adormecimento. O rap tem sempre essas várias frentes: tem quem faça uma coisa mais silenciosa e leve, quem faça algo mais aprofundado do ponto-de-vista político. 

E também é natural que os temas mais superficiais tenham mais popularidade, sempre foi assim.

Exactamente, porque as pessoas também querem usar estas coisas para fugir da realidade. Agora, aqui, desde que as editoras pegaram nisto em massa, a música foi um bocado higienizada e branqueada. E não digo nos interlocutores, refiro-me ao conteúdo. No sentido de criar um conteúdo mais apetecível…



Mas não consideras que essa responsabilidade também tem de estar nos criadores?

Claro que tem de estar, mas as editoras quando fazem um contrato, que é mais uma corrente no pé, o criador passa a não ter muito a dizer. Mas não estou a desresponsabilizar o criador. Por alguma razão, não estou em editoras até hoje. Faço edições de autor para poder dizer o que eu quero. Agora, a verdade é que o hip hop tem escolhido… Mas não é todo, há pessoas que têm esses discursos e não são muito ouvidas. Agora, como instrumento desta indústria cultural popular, o hip hop tem ganho uma preponderância mais numa esfera de entretenimento do que numa esfera de intervenção. E isso é aquilo que o capitalismo faz. Fez isso com o rock, com os blues, está a tentar fazer isso com a kizomba e o funaná… O capitalismo não quer atrito. Tudo o que tem atrito, tudo o que não faz o capital circular à vontade, eles limpam. E a música ou cria muito atrito ou não cria nenhum. Então, eles estão a limpar esse atrito. O hip hop era uma música de grande atrito e terá que continuar a ser. Agora, cada vez mais é uma escolha do artista, como estás a dizer. E muitos artistas escolhem-no porque têm que se sustentar.

E por vezes também estão em busca de um sonho capitalista de ascensão social.

Porque o hip hop, não sendo isso, também foi vendido na América como uma das grandes possibilidades para uma pessoa que vem de onde a gente vem, do bairro. És atleta, baller ou rapper. A América vendeu esse sonho. E a realidade é que esse sonho só tem a força que tem porque nessas comunidades a pobreza não é uma coisa romântica. Tu vives na merda. E sais daqui desta porta e vês uma série de pessoas que nunca vão ter empregos, nunca vão ter um subsídio nem nada. Por isso, se essa batida der para elas pagarem a sua vida, vão fazê-lo.

Não vão hesitar, claro.

Exacto, por isso hoje em dia também entendo que não tenho que vir para aqui preaching a essas pessoas. Tenho que entender que temos de fazer as nossas escolhas. Mas claro que essa música teve o impacto de silenciar muita coisa. Agora, não é só essa. A música portuguesa também está altamente silenciada, está tudo muito silenciado. E é como tu dizes, é numa altura em que têm de se começar a ouvir vozes. Mas acho que algumas vozes estão… E esta geração tem que pegar na sua força e pôr essas vozes fora. É uma responsabilidade muito grande. O PREC, que era uma coisa que eu ia fazendo nas calmas, saiu assim também de repente por causa disso. 

Sentiste essa urgência?

Senti e sinto. Todos os dias contam, neste momento. E todos os artistas contam.

Parece-me consensual que é importante transmitir essas mensagens, mas às vezes questiono-me sobre a eficácia que podem ter ou não. Não é nada linear, e por vezes as pessoas não prestam atenção e estão só focadas no tal vídeo de 12 segundos da pessoa que diz aquilo que elas querem ouvir.

É verdade, não é nada linear nem é garantido que aquilo chegue sequer a três pessoas. Só que eu não uso isso como uma desculpa para não o fazer. Já ouvi isso muitas vezes, “mas as pessoas não ouvem”. Mas eu vou fazer. Agora, estamos a viver um momento em que, obviamente, o nível de estupidificação do ser humano, o desaprofundamento da pessoa, em que somos cada vez menos seres pensantes e somos mais seres reactivos, porque reagimos a posts e a dicas de comentadores… Este é o momento mais pavloviano de toda a história do mundo. Abanam o sininho e nós vamos atrás desta ideia da pessoa que consegue dizer o menos em menos tempo possível.



E “A Revolução Não Vai Ser Um Tweet” fala muito sobre isso, sobre essa efemeridade que pode ser tóxica para tudo isto.

Claro, mas temos que continuar a falar. E tem de haver densidade. Uma sociedade sem densidade, sem camadas… Isso é o que eles querem fazer, tornar o cérebro humano raso, mas nós temos que lutar. Todos os dias leio um bocadinho porque o espaço público está tão exíguo, quase que se usam as mesmas duas palavras para dizer tudo, que é preciso todos os dias tu próprio resistires. Porque qualquer pessoa se encurta e se reduz se ficar só a ouvir aquilo que é o megafone do sistema. Seja os comentadores do telejornal, seja os músicos do regime, seja lá o que for. Todos os dias temos que procurar aprofundar. E nessa procura encontramos coisas. Se eu também só ouvisse o que as playlists sugerem, estava fodido. Mas não, tu tens a responsabilidade de ir à procura. Porque esses algoritmos também têm um papel importantíssimo, de dizer “isto sim”, “isto não”. Quando estás a dizer o que é, também já estás a dizer o que não é, num processo de invisibilização. 

E obviamente há muitos artistas talvez seja o tal exemplo de pessoas que naturalmente querem dar um salto de qualidade de vida, outros não são propriamente músicos do regime mas…

Quando falo em músicos do regime, falo em músicos cuja mensagem passa tudo aquilo que o neoliberalismo precisa que seja passado. Tenho isto, tenho aquilo, sou isto, sou aquilo, aquele não presta, eu é que presto, isso é tudo do individualismo e do neoliberalismo. E muitas vezes essa pessoa não é do regime, mas a mensagem é do regime. O sonho americano é o regime. 

O que eu ia perguntar em relação a isso e obviamente não existe uma resposta óbvia, se não as coisas seriam diferentes é como é que se consegue dar a volta a isso, como é que se consegue consciencializar essas próprias pessoas para terem uma maior noção daquilo para o qual estão a contribuir…

Não te sei responder a isso. Se vir um brother meu, que estava aí e que tem uma alternativa entre estar a traficar ou vender música, onde consegue sustentar a sua família sem ter uma pistola apontada à cabeça… Não sou ninguém para o moralizar.

Mas, apesar de tudo, há muitas pessoas que não estão nessa posição.

Sim, e escolhem fazê-lo. Eu dou aulas em sítios em que os meus alunos eram miúdos que os pais pagavam para eles estarem em cursos de produção ou de rap. E conheço aqui imensos miúdos com talento que nunca vão poder pagar 300 euros por mês para aprender arte. Se esse gajo bateu com um single e está-se a safar, não posso chegar a ele com um approach de “mas a tua música é isto”. Agora, entendo que ele tem de fazer um trabalho de consciência e entender o impacto da sua música. Porque aí não há volta a dar. Nós todos escolhemos um lado. E um dia temos que nos confrontar com isso. Se a minha música veicula uma cena, é por aí que eu vou e há um momento em que sou isso. E eu não estou a dizer isto com um juízo de valor, de dizer que “és uma grande merda porque és aquilo”, mas nós fazemos escolhas. Eu também estava na merda e optei por rimar assim. Hoje em dia, muito do que chega aos miúdos… Um miúdo que cresce hoje em dia, que tem 15 anos, tem uma pressão de sucesso, de tonificação do corpo, que é inconcebível. É necessário destruir toda uma filosofia regimental neoliberal, de sobrevivência do mais apto e do mais forte, que está em todo o lado. E que não pode ser destruída a pôr pensos, com uma manifestação ou com uma música. Tem de ser destruído. E não há ares de que venha a ser destruído neste momento. Embora esteja num momento mais podre, quase em auto-destruição. Estas guerras todas, esta fabricação da pobreza, o que se fez em Portugal nos últimos anos… Já era um país com muitos pobres, fabricar ainda mais pobreza, a quantidade de pessoas que vivem na rua, que vão ao supermercado e de repente têm que esvaziar o carrinho porque de uma semana para a outra as coisas aumentaram tanto que ela não tinha noção de que os 100 euros que davam para X já não dão… É inconcebível. E umas pessoas conformam-se e outras vão buscar outras vias. Nós, músicos, somos arautos ou não disso. É muito interessante porque o hip hop está numa corda bamba. O hip hop e muita da música negra são feitos por aqueles que o regime rebenta, e depois é aproveitado pelo regime para continuar a veicular como o regime é fixe quando tu entras nele. Se eu tenho dinheiro, está tudo bem.

O hip hop está muito nesses dois lados do muro.

Ya, está nos dois lados. E é essa tensão que eu acho muito interessante. Mas quando ouves um artista como o Landim ou o Real GUNS… Ainda ontem ouvi um single novo do Landim e eles estão com uma mensagem. Não está toda a gente a optar pelo outro lado. Isso dá-me muita esperança. 

Ia-te perguntar isso. Se, face a isto tudo, te sentes esperançoso?

Optimismo e pessimismo são duas faces da mesma moeda. Mas esperança, fé, sim. Há uma utopia que nos guia, mesmo que não saibamos qual é. Alguma coisa me diz para continuar a lutar. Porque se ficares só desesperado vais ficar naquele sítio do ressabiado que vota no ódio. 

Não é produtivo.

Exactamente, acordas cada vez pior, a segregar mais toxinas para dentro de ti. Tens de acreditar nas pessoas e eu acredito. Eu vivo aqui, saio aqui, encontro aquele irmão paquistanês, aquele irmão branco, aquele irmão preto, aquele irmão cigano, e tenho que acreditar nas pessoas independentemente de tudo aquilo que me tentam dizer delas. E é nessa convivência, nesse encontro diário, que vês que há esperança nas pessoas. Mas também tenho esperança porque não ando aí todos os dias a levar com o medo. Se tivesse todos os dias a levar com merdas, se calhar estava menos esperançoso. E é isso que o neoliberalismo também tem tirado, a relação entre as pessoas. As pessoas relacionam-se através de um telemóvel, então cada vez têm menos entendimento umas das outras, têm menos espaço para se entenderem. Temos de ter uma mensagem de união. Com todas as diferenças e conflitos que temos.

Reconhecer que existem.

Sim, mas dividir mais e mais é aquilo que eles querem que a gente faça, para que possam fazer de nós papa, uma carne picada. Depois embrulham-nos e somos só essa massa de refugo de gente descartável e supérflua. Por isso, não, let’s come together. Porque o que aí vem não é bonito.



Há pouco falavas do combate quando te referias à performance de Prétu. Corrige-me se eu estiver errado, mas falavas dessa missão quase como a prioridade da performance. Talvez até acima da parte estética e artística…

Essa estética está lá, e é o lado cultural da luta, como o Amílcar Cabral dizia. Esse aspecto cultural é o que estamos a fazer, mas faz parte de um combate, que é tudo. Não é um combate de chegar e destruir, o combate neste momento é feito no sentido de juntar e não de separar. Neste momento, separar é o mais fácil. Todos os dias separam-se pessoas. O nosso combate é chegar e dizer: “Look, listen to me, estás a ouvir isto, estás a perceber?” E juntar as pessoas em torno de coisas. Dizer que talvez até possas achar que um mundo com fronteiras é mais fixe, mas um dia essa fronteira vai chegar a ti e tu não vais poder passá-la. Então, pensa que a fronteira não é boa para ninguém. É nesse sentido de juntar, trazer as pessoas a reflectir. É um combate a esta ideia universalizada do ódio. 

Sim, claro que sim. A minha questão era se sentias que, no início do teu percurso a fazer música, enquanto Chullage, se na verdade na altura, embora já tivesses uma mensagem super interventiva, se para ti, apesar de tudo, era o lado artístico que se sobrepunha a esse combate, que já existia, e se esse combate tem vindo a ganhar relevância na tua vida e arte. 

Eu adoro fazer rap porque escrever rimas é bom. Há sempre um lado mais pessoal e egoísta, que é o processo artístico em si. Mas esse processo não sai num vazio. As letras que eu escrevo têm sempre um aspecto de combate; agora, estão sempre muito agarradas a esse crescimento que é fazer o rap. Rappar neste e naquele flow, fazer spoken-word no “Surto” mas depois meter aquele beat e começar naquele flow foda, tenho muito prazer nessa componente estética. Como fazer vídeos. 

E também és uma pessoa que aprecia o som, do sound design.

Sim, e de realizar os meus vídeos. Ou seja, há uma série de elementos artísticos que me dão muito prazer. Porque é nisso que eu cresço, é nisso que amplifico as possibilidades que me disseram que eu não iria ter. Criar é um acto de resistir muito mais neste mundo. E ainda mais agora, quando dizem que muito do que vai ser criado será pela inteligência artificial. Criar é resistir. Nesse aspecto, no rap nós éramos poetas sem termos o nono ano, como digo numa nova música que há-de sair no PREC. É uma música que faz um bocado a linha de como é que o hip hop nasceu, como é que a música de intervenção nasceu e se juntou ao hip hop, e depois o hip hop torna-se música de intervenção porque os miúdos da minha geração já não ouviam Zeca Afonso, mas como depois a seguir já não o é. Mas há um prazer do beat, de meter o bombo, a tarola; ou, no caso de Prétu, das muitas percussões, de usar aquele sample. Há um prazer estético que não é só hedonista. É a possibilidade de o ser humano criar. Seja batatas, seja o que for, o ser humano é um criador. Portanto, para mim há-de haver sempre esse prazer. Agora, a questão é que a minha música foi caminhando no sentido de onde eu me sinto verdadeiro, que é a dizer as coisas que eu sinto, as coisas que me inquietam. Tem esse aspecto de combate. E conforme vou amadurecendo vou entendendo que é isso que me faz sentido fazer. Não é que seja só isso que eu sou, mas é o que me faz sentido fazer. “Porque é que já não fazes músicas de punchline? Tu fazes punchlines fixes”. Porque não me apetece ostracizar pessoas. E já o fiz e gostei muito de o desenvolver, grande punch, mas neste momento a minha frequência é outra. E eu escrevo punches no telemóvel mas escrevo como disse naquele som com o Sam The Kid e o Beware Jack, “escrevo rimas só por treino”. E escrevo mesmo. 

Punchlines?

Várias rimas. Não faço punchlines dirigidas a alguém, mas no sentido de desenvolver…

É um exercício criativo.

Ya, é um exercício, é como um pintor. Hoje em dia digo muito isso. Aprendi imenso a ver os artistas visuais a trabalhar. Não é ao primeiro quadro. Eles ensaiam muita coisa, fazem 20 trabalhos para chegar a um. E eu escrevo assim. Escrevo, escrevo, escrevo e depois digo: isto é uma coisa. Não é à primeira que se tem algo para apresentar.

Aquela lógica de escrever no estúdio antes de gravar, por exemplo. Pode ser assim, mas não tem de ser.

Ya! E se estás sempre a fazer assim, também é tudo mesmíssimo. Às vezes queres escrever, depois voltar lá, e “hoje vou fazer melhor.” É um gajo a esculpir, a usar a ferramenta para afinar os traços.

E é isso que também é densidade.

Densidade, detalhe, aprofundamento.


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