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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 30/04/2024

Um disco integral em palco.

Sélébéyone no Teatro do Bairro Alto: a precisão profética do invisível

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 30/04/2024

A celebrar os 50 do 25, os anos do dia de Abril, duma revolução que continuará por findar, vivida na razão da utopia como lugar inatingível, que indica o desejo de o alcançar. Celebração que se faz de convívio e partilha, de unir para ir mais além, ligar e fazer acontecer, num concerto mais, este, na esperança que se revele como aquele que se deseja o estímulo para estar presente. E o propósito em haver um chão para que isso aconteça. É disso feita a programação do Teatro do Bairro Alto, um dos muitos espaços onde há palco para celebrar, em tempos que pedem contudo um mais que isso, não dar por feito. Programando um chão desafiante como “lugar de lutas várias, pode fugir-nos debaixo dos pés ou ensinar-nos a andar” como escreve Francisco Frazão, na função de direcção artística do lugar que assim se apresenta ao que vem. Programados com todo o propósito estiveram Sélébéyone, como colectivo transcultural-disciplinar de músicos na forma de quinteto, formados pelas vozes que ditam de Gaston Bandimic (em wolof), HPrizm (em inglês), que sopram em saxofone de Steve Lehman (alto) e Maciek Lasserre (soprano) juntas a Damion Reid (bateria). O encontro de três continentes (América, África e Europa), três idiomas justapostos (inglês, wolof e francês) e três estéticas musicais, entrelaçando jazz, rap e electrónica. O lugar é transfronteiriço, assumidamente. É um lugar desconhecido e que faz com que no lugar da plateia reconheçamos a presença de muitos que noutras vezes vemos no lugar de palco. É um lugar que aponta para novas possibilidades, planos pela interseção vectorial, chão para andar, seguramente.

Na estreia desta formação, na altura como septeto, no arranque do Festival Jazz em Agosto em 2017, em jeito de sugestão escrevia Rui Miguel Abreu: “Na verdade, um trio que combinasse bases electrónicas pré-gravadas com as capacidades rítmicas avançadíssimas de Damion Reid e a expressividade no microfone de Gaston Bandimic teria provavelmente garantido resultados mais entusiasmantes.” Foi um tanto nesse sentido que caminharam Sélébéyone, de lá para cá, do epónimo longa duração em 2016 até 2022 com Xaybu: The Unseen, chegando ao palco de agora no TBA.

Passemos ao que foi Xaybu transposto para o palco, de fio a pavio, na mesma razão de encadeamento dos temas, num faixa-a-faixa. Há motivos para acreditar que esta música tem uma razão maior para ter de se apresentar assim, espiritual, num rito encadeado condutor ao invisível. Encaremos mais que um concerto, uma obra, um disco, sabendo do rigor matemático que comporta a música de Lehman, que faz com que todos os músicos estejam ligados a partituras e textos precisos. Nada parece deixado à mercê do momento, programados para a métrica do que têm a revelar. E como em tantos momentos da extinta rubrica de rádio do Rimas e Batidas era dito: “Hoje é dia de valerem as palavras ditas por MCs” — também no passado sábado, 27 de Abril, foi o caso.

“Time Is The Fist Track” para um começo musicalmente complexo com uma instrumentação visível e outra somente audível, pré-gravada e/ou despontada desde ali, por gatilhos sonoros conexos. A palavra dita do MC HPrizm revela outra dimensão invisível, a do tempo a fazer tempo: “Been in a pot with a pendulum swinging over my body / I’m doing time but I want to move freely / Everything and nothing is real / Separated and joined in a pot”. Situa-nos e evoca o tempo antes da amnésia que embateu e fez esquecer, o tempo imemorial. Esse tempo que nos define aqui chegados.

“Djibril” a faixa/tema que se segue e que abre porta para o misticismo em Sélébéyone a par com a prática artística. Colagem ao discurso do cineasta Djibril Diop Mambéty, para ouvir a simplicidade desse alcance, para ver a luz, a luminosidade mística, uma precisa luz. Haverá que fechar os olhos, fechar bem, forte, e depois abrir para ver. O exercício tão simples como se queira aceitar. Com Bandimic a descrever o seu dizer numa resposta à retórica escutada, anuindo que “é fechando os olhos, que cada um se encontra a si mesmo, Djibril”. HPrizm, assumindo a voz narradora, decalca a partilha do colectivo no principio “It’s in the blood / It’s in the name / Sélébéyone”, para depois o MC em wolof fazer a voz diabolizante “Seeing does not depend on the eyes / Go away / The sea is deep, you don’t get it / Go away, you think we’re crazy”. Apazigua HPrizm: “You’ll get a chance to be right twice”, é a voz crente que haverá uma redenção para além desta terrena passagem.

“Gas Akap” é um tema inteligível na dimensão das palavras para os não falantes wolof, na falta da tradução disponível na Pi Recordings, a editora do colectivo. Escuta-se a voz como se ouve as outras duas sopradas e processadas na electronica que os saxofones conduzem em explosivos diálogos com o ritmo sincopado absolutamente preciso de Reid. 

“Liminal” fala de batalha diária, da determinação individual como força motriz que alimenta. Esclarece nas rimas Bandimic: “The farmer must kneel and milk the cow if he wants milk”. A obtenção do alimento implica perseverança: “Get up and face your fears / Feed your dreams, the chick can’t walk unless it’s outside its shell / In hardship we learn to know what we can achieve”. Há um vincado modo profético na condução das palavras wolof, numa oratória rematada com as noites de coaxar — “If the frog’s sound keeps you up at the night, complain to the frog”. Surge a voz espiritual, e volta HPrizm na função pré-glorificadora dizendo: “Victory is coming. Glory is near / I see us winning / Triumphant / Don’t say it with me / Think it”. A voz do alto, do fundo, omnipresente na espiritualidade da vivência, que está por perto dizendo “Hypnotize your mind to let go fear”. Lehman intervalou acutilantes e afiados fraseados de alto às rimas das vozes.

“Gagaku” traz de volta Billy Higgins, baterista que a Blue Note fez tocar com quase todos, fulcral no idioma emergente e livre no jazz, desde dentro do quarteto de Ornette Coleman. Higgins no espectro do discurso directo para o ligar ao auto-confesso mergulho espiritual no Islamismo. HPrizm escutou e anuiu: “Yes, sir / I hear you / That’s the deen / That’s a lifetime mission / Lifetime journey / Take a walk with me”. Volta ao lugar do som Higgins lembrando outro fundamental músico, Jackie McLean, saxofonista e companheiro de muitos caminhos, fundamental para o chão espiritual de Higgins — cresceram juntos, e ouve-se que a primeira mesquita que entrou foi no Japão, pela mão de McLean, quando em digressão. A música terrena ligada ao invisível lugar. Prossegue HPrizm na devoção profética ao que vem: “I’m here to dissolve the bad seed / Spank’em to stop talking and work / When the mic is on, I play with it, rap becomes a hobby”. A trilogia fundamental do espaço definido em Sélébéyone na expressão jazz-rap-espiritual.

“Poesie I” e “Poesie II” justapõem, à vez, a dramaturgia vocal das palavras ditas dos dois mestres de cerimónia presentes, na escrita autoral, primeiro em inglês e de começo assim mesmo transcrito: “These words don’t fit / I’m forcin’em in / Smashin’the edges and fill’ém with gold and porcelain / Reinforc’em with truth / Tell’em who we were before things got loose”. Poema adiante, a palavra reforça o ímpeto de combate em vários planos, acção contrária: “Against wrong / Against time / Against all”. As palavras que estão condensadas, o conteúdo sob pressão. Por fim, que venha a expansão, o respirar. Vem a poesia em wolof, em sonoridade, numa língua que é atonal, inebriante e precisa em simultâneo.

Avanço na sucessão para o tema “Go In”, para escutar um par de frases da conversa de Jackie McLean com o amigo e jornalista Gil Noble por Harlem: “It changed our lives. We come down here to watch you go in”. Para Lehman, McLean (J-Mac) tornou-se uma referencia desde cedo, o seu ídolo musical desde os 12 anos. Teve a oportunidade de ainda estudar com J-Mac em 1997 no Hartt School of Music (em West Hartford). Lehman em admiração permanente na abertura do tema, que HPrizm transpõem nas palavras narradas, à procurar de eternizar o espaço: “Finding the space within it all / Reminding myself where we started for those departed”. Palavras adiante, verbaliza o como: “Uncovering, unlocking, unblocking, maneuvering, not stopping”. E finaliza na razão: “To bring it back / Somewhere in the blood is a map / To go in”.

“Lamina” é o tema que se segue, a excepção à ordem decalcada do álbum. Aqui é chegado o momento de os rappers serem personas de si mesmos, a transmitir a palavra. Avança HPrizm: “Right. Let’s tak’em upstairs, yo / Straight from the heart. It’s a metronome / You feel the pulse when I set the tone / Straight to the dome”. Também assume a missão Bandimic e transmuta-lhe o idioma, agora no francês do seu quotidiano, apresenta-se como um griot que a sua presença ali já tinha revelado: “The griots passed on the heritage of the elders / These people preserve this form of learning / (…) My rap is conscious and is a vehicle for honor / Rap today is bling-bling, riches and jewels / Today’s rap is made to create buzz”. E remata no final da sua intervenção: “There will be many obstacles on your path / Be strong, griot”. Houve uma paisagem sónica como cenário absolutamente condizente com as palavras ditas.

“Navigation” foi toda ela feita com Bandimic (em wolof) como mestre da embarcação, para falar de um mar interior, do devir do rumo interior, da viagem interior a cumprir. “The sea, here is the sea / Who can swim? / Here is the sea / Know yourself, meditate”. 

“Dual Ndoxol” arranca com um notável trabalho de escovas por parte de Reid, criando um corpo de texturas dificilmente separáveis à nascença entre o acústico e a electrónica armadilhada em associação. Abre-se caminho para o chão a trilhar pela lírica em francês, confrontando um concreto desfasamento do real: “Why was I put on this earth? / The eye does not see. Feet do not walk and the mouth doesn’t speak / And even ears do not hear / It’s your being that sees through your eyes and speaks through your mouth”. Aqui a voz de Bandimici é dual, desde uma visão terrena e noutra espiritual e vigilante, que se escutam mutuamente: “In effect, if ears could hear, the deceased would hear us speak / If we went to the cemetery, they would rise up and walk”. Depois há “Dual HP”, desta feita vinda desde HPrizm, que está aqui para se incorporar em nós, em missão precisa, sem peias nem manipulações: “Here to embody a being in you by being me fully / No puppeteers pulling the string up tight / So, when I write this kite / Follow me in for insight”. De forma explicita pede para purgar a réstia de colonizadores interiorizados: “Let it incite to overthrow the presence of colonizers inside you / I’m in my element, born under the sign of fire”. Prefere fazer uso dos estilhaços, nestes tempos de destruição, para reconstruir, ao invés de recorrer ao pânico e ao medo: “I’d rather pick up the pieces and reassemble the parts from a shattered time”. Com um claro propósito: “To continue a timeline”.

Em “Souba”, Lehman espraia uma diversidade de elementos orquestrais, com pré-gravadas sonoridades vindas de arranjos de cordas e flautas que ensombram a destreza dos versos sábios e assombrosos em wolof: “Bad tongues are starting to loosen up / Like crows all dressed in black / The lie will never triumph over the truth / They are owls at night”. Versos que urgem serem ditos, o tempo é agora: “When you were in the past, you were in the present / Tomorrow will be today / Time passes, but everything is today / There is no time, but everithing is today”, que repete, rappando velozmente. Termina deixando a pairar o aforismo: “You got to believe in yourself bro, if you want to get through this”.

“Zeraora” como derradeiro tema, o único apresentado pelo porta-voz do colectivo, Lehman, referindo-se ao nome como vindo da figura do universo Pokémon, a da felina personagem que tem o poder de electrificar as suas garras com que ataca o seus oponentes. Com garras que estontearam, e de que maneira, foi também Reid neste tema, absolutamente em sonoridade propulsora. Fica entendido o fecho de alinhamento no que respeita à música, um fim de portas abertas. Volta o diálogo entre os dois mestres da oralidade. HPrizm expressa: “I mean, they never caught up. Bars as an axis point keep me supported / Kept these lines as a cross. The game is haunted / Everything is tilted. Only the real felt us”. Para Bandimic retorquir em wolof e finalizando a prestação, encorajado: “Make your enemies scared when they see you coming / It’s Bandimic / Work is like riding a bike / It won’t be easy today / Lead the prayer”. Ficou dito.

Um disco a tocar em palco no final de tarde, numa prestação ao vivo que se aproximou mais do registo discográfico do que da intensidade de um concerto com cinco músicos em palco. Para ser claro, esperava-se um concerto além da escuta de um disco, mas que se aceita na medida do impossível para esta música. A contida emoção vinda do encontro com o momento da música ao ser tocada, na transposição do risco do vivido, condicionou logo ali a total dimensão do escutado. Remeteu-se para uma escuta dedicada e complementar em disco a dimensão das palavras wolof que o concerto teve em grande dose, e que ali se ouviram inevitavelmente apenas como um instrumento mais. Afinal o caminho faz-se caminhando, por isso este voltar preciso às palavras sublinhadas que ficaram como centelhas da tarde profética num comemorativo Abril, pisando um chão que ensina, e de que maneira, a andar.


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