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Texto: ReB Team
Ilustração: Riça
Publicado a: 19/04/2018

São bons de rima e ágeis na programação, desenham pérolas com palavras e respirações, com batidas e coração.

Caderneta de Génios: 12 mestres das rimas e das batidas que fazem a nossa história

Texto: ReB Team
Ilustração: Riça
Publicado a: 19/04/2018

Produtores capazes de rimar ou MCs que também dominam as ferramentas de produção? Esta dúzia que o Rimas e Batidas aqui destaca equilibra a rara e dupla capacidade de surpreender tanto no microfone como na MPC, tanto no caderno de rimas, como na programação de kicks, snares e hi-hats.

Como qualquer lista, esta também é imperfeita, desde logo porque é limitada e portanto incapaz de albergar todos os nomes que gozam dessa dupla condição que aqui se destaca. É também uma lista que nasce do compromisso de diferentes ideias, diferentes opiniões, diferentes visões daquilo que se compreende fazer a grandeza de qualquer artista.

Mais importante, no entanto: estes 12 nomes ajudam o Rimas e Batidas a celebrar três anos de vida, 3×365 dias cheios de paixão por uma cultura que por esta altura conhece dias entusiasmantes de alargado reconhecimento e de generalizada visibilidade. Não era exactamente assim quando, a 20 de Abril de 2015, tornámos públicos os conteúdos de uma revista em que já vínhamos a trabalhar há alguns meses, convictos de que esta cultura de vozes e de ritmos, de hip hop e de muitas electrónicas, de cantores, rappers, DJs, produtores, músicos, fotógrafos, designers, realizadores e tantos outros agentes criativos merecia mais atenção, exigia espaço de pensamento, crítica, divulgação, e que iria, se a deixassem, muito mais longe. Cá estamos, em 2018, três anos depois, com a mesma vontade de continuar a documentar o que de melhor reconhecemos nestas diferentes culturas que por aqui abordamos.

Com estes 12 MCs que também produzem, com estes 12 produtores que também rimam abrimos da melhor maneira que sabemos os nossos festejos por estes três anos de vida que sabemos serem ainda só o princípio. Ainda está tudo por fazer: e isso é o mais importante.


[ALLEN HALLOWEEN]

Allen Halloween joga num campeonato só seu, e a sua identidade bem vincada é o resultado de uma travessia por vários universos musicais que, à primeira vista, nada teriam que ver uns com os outros. Se, por um lado, aquilo que fez e continua a fazer está no topo daquilo a que podemos chamar rap de rua – cru, sujo, lo-fi (mas por não haver alternativa e não como opção estética), a falar sobre vivências difíceis, e muitas vezes criminosas, nas vidas de um subúrbio; por outro, e com os temas acústicos em Unplugueto, podemos vê-lo como um cantautor da música popular portuguesa, ao lado de gente como Samuel Úria, B Fachada, ou até podemos almejar que chegue ao estatuto, por exemplo, de Sérgio Godinho, de quem, aliás, fez uma cover. Além destas duas dimensões aparentemente opostas na música de Halloween, encontramos ainda um universo que junta o que há de mais negro e real nas ruas à arte mais abstracta e imaginativa. Há distorções grunge na sonoridade única de Halloween, vozes berradas e sentidas que nos lembram de Kurt Cobain e que são, na verdade, de todos os fantasmas do passado e monstros debaixo da cama que habitam este Halloween.

Não é difícil salientar a qualidade das suas letras, quando o próprio Halloween as adapta para temas acústicos, tocados apenas com uma viola, onde ganham outra vida, mas sem nunca parecerem fora de contexto. Nunca ninguém diria que seria possível fazer aquilo a “S.O.S. Mundo” quando ouviu a faixa pela primeira vez, em 2006. O slang e os estrangeirismos convivem pacificamente com as cordas da guitarra. E nem estranhamos que a sua entourage de Youth Kriminals em palco possa estar lado a lado com este lado mais sereno e maduro de Allen Pires.

É um storyteller do século XXI, das realidades que não são passadas nas televisões – e sobretudo daquela perspectiva. É alguém que se tem tornado uma voz de sabedoria das ruas, um ancião que já passou por muito, e através de histórias e personagens (Híbrido está cheio delas) tem contado a sua perspectiva sobre dramas sociais e urbanos, com verdadeiras lições para quem ouve, mas sem uma posição paternalista. Curioso que essa voz chegue tanto aos bairros, a quem se identifica mais com os temas tratados, como a toda uma outra camada da população. Nos seus concertos também encontramos o público dos concertos de música alternativa, que até nem tem por hábito ouvir rap. Também por isso Allen Halloween rima num altar apenas seu.

Há ainda um dado curioso em relação a este artista. Durante anos, não se soube – pelo menos não o público em geral – que era o próprio Allen que produzia a maior parte dos seus beats, sob o nome Maradox Primeiro. Instrumentais enferrujados (no bom sentido) tirados a ferro da MPC, com a marca da Bruxa. Nos créditos dos discos, é habitual vermos beats de outros produtores “trabalhados” por Maradox Primeiro, que toca ainda notas de baixo quando a faixa pede isso mesmo – como um verdadeiro produtor executivo dos seus álbuns. E apercebemo-nos ainda melhor de toda essa coesão artística quando constatamos que é totalmente canalizada para a sua obra, para um propósito específico – Allen Halloween nunca assinou um beat para outro rapper.

– Ricardo Farinha


[KACETADO] 

Falemos agora d’O Kacetado, cognome que acompanha Skunk desde a altura em que todos o conheciam por Shakhim e que entretanto ganhou estatuto de nome próprio, especialmente depois das colaborações com Bomberjack e da edição de Ontem, Hoje & Amanhã, clássico de 2003 com que se estreou a solo. A sua faceta de produtor, presente mas adormecida desde o álbum de Esquadrão 8 (colectivo de Kacetado, imortalizado em disco com Alta Konspiração), ganhou contornos visíveis em 2008, com Rusga: Diggin Nos Arkivos, mas ainda não era claro se os nomes e os projectos do rapper Kacetado e do beatmaker Skunk iriam convergir ou seguir caminhos distintos.

O que Kacetado conseguiu com o primeiro CD de Skunk continua a ser um feito sem precedentes. Depois de um trajecto marcado pelas rimas e, sobretudo, pela entrega com que debitava as palavras, nada fazia prever que esta primeira tentativa de se equilibrar entre o microfone e a MPC trouxesse tantas e tão boas surpresas. O seu Diggin Nos Arkivos ajudou a revelar os dotes que escondia há mais de uma década mas também fez sobressair os flows de Keso, Zuka ou Sir Scratch, habitualmente associados a outras sonoridades. Surpreendeu todo um movimento português que, compreensivelmente focado na evolução da técnica, ainda não tinha visto nascer um fenómeno semelhante ao de Madlib, em que a sujidade intencional se assumisse como característica essencial. Bebeu em J Dilla, seguiu a escola de Sam The Kid e fez lembrar Kilu, sem nunca defraudar quem ousou comparar-lhes os estilos.

O tempo e a prática trouxeram-lhe novas valências, fizeram de Skunk um produtor de mão-cheia e, depois de uma Marcha em que voltou a assumir o papel de anfitrião, dando espaço para que Xeg, Show No Love, No Money ou Wordsworth brilhassem, foi na saga Bar Aberto que se afirmou finalmente como rapper e produtor em medidas iguais. Tributo Ao Homem, LP de 2012, voltou a reunir os dois a.k.a. pelos quais todos o conhecem e, muito por culpa do single “Voilà”, virou para si alguma da luz dos holofotes que então incidiam sobre o movimento. Hoje, depois de um processo gradual a que poucos se sujeitam, todas as dúvidas se dissiparam. As rimas de Kacetado soam melhor nos instrumentais do próprio mas os beats de Skunk servem qualquer um que se mostre capaz de fazer bom rap, não havendo melhor indicador de que Shakhim é, certamente, um dos melhores a desempenhar esta dupla função em território nacional.

– Moisés Regalado


[NERVE]

Haverá melhor altura para sublinhar a versatilidade de NERVE? AUTO-SABOTAGEM acaba de sair do forno e é o seu primeiro projecto de sempre em que assina toda a produção dos temas. Zé Quintino — aka DWARF — deu “apenas” uma mãozinha em todo este processo, ficando encarregue da meticulosa tarefa de “puxar” para cima todos os volumes, não esquecendo, claro, Mestre André — aka Notwan — que ofereceu uma vertente mais orgânica a alguns dos temas através de linha melódicas de saxofone em quatro das seis faixas. Como se não bastasse, NERVE ainda gravou, misturou, desenhou a capa…

A sua inclusão nesta lista estava, no entanto, predestinada. Apesar de ser na arte da rima que melhor o conhecemos, a produção tem sido uma vertente que teima em não deixar de lado, assinando, aqui e ali, alguns dos temas que compõem as suas obras. Desde ENPTO que Tiago Gonçalves imprime a sua própria estética sónica nos trabalhos que edita, demonstrando o gosto por uma veia mais alternativa que não o mais “quadrado” do beats.

Como fiel seguidor da escola Definitive Jux, o lado poético do Sacana Nervoso sempre demonstrou uma forte apetência para abordar os assuntos mais obscuros e fora-da-caixa que habitam na mente humana. Das inquietantes viagens de transportes públicos retratadas em “Autocarro do Inferno” à fobia da metodologia e processos utilizados no “Trabalho” em call center. Sempre com uma visão bastante negra de cada situação, NERVE chega ao ponto de se tornar uma espécie de bobo da corte de si mesmo, apontando versos à própria cabeça. “O meu nome é Andy Kaufman”, rima em “Subtítulo”. Espremendo todo o sumo do seu “eu”, NERVE consegue arrancar-nos sorrisos ao ridicularizar-se em cada sessão de auto-terapia.

Apesar do valente ego, o autor de T&C/AVNP&NMTC também exerce o vocabulário para falar dos outros. O rap combativo foi desaparecendo com o amadurecimento de Tiago Gonçalves mas, para a história, ficam versos agressivos como “Foge”, a sua participação em De Volta ao Serviço, de DJ Cruzfader, ou a “briga” com X-Tense. “Plâncton”, do seu mais recente AUTO-SABOTAGEM, faixa que tem tirado o sono aos restantes competidores, que já se tornou até no tema mais tocado do EP.

Nas batidas, NERVE evoluiu a olhos vistos desde o seu último álbum pela Mano a Mano, abandonando cada vez mais as sonoridades mais tradicionais do hip hop e colando-se num registo que mais se aproxima dos dois produtores com quem mais trabalhou ultimamente — Notwan e VULTO.. Admirador confesso de Hot Sugar, uma das suas sugestões musicais quando, em 2015, foi editor honorário do Rimas e Batidas, é nesse doce limbo — entre a melodia e a distorção — que os beats de NERVE moram. É ao norte-americano que vai buscar o conceito de “música associativa”, tendo confessado recentemente num post, através do Facebook, a aquisição de um gravador portátil para o efeito.

– Gonçalo Oliveira


[FUSE]

“Prestem culto ao som que vos incuto como um sopro”

Membro fundador dos Dealema, figura-chave do rap do Norte e senhor de uma carreira que conta com mais de vinte anos, Fuse, também conhecido por Inspector Mórbido, é um dos artistas mais aclamados e acarinhados do movimento graças ao seu inegável carisma, assente numa sonoridade nunca antes ouvida no hip hop nacional, aliada a impressionantes dotes líricos, que desde sempre o separaram dos demais, colocando-o numa liga à parte.

Conhecido pelo seu amor ao cinema fantástico (cujos diálogos e bandas sonoras povoam as suas músicas) e pelo fascínio com o paranormal (que o afiliam no estilo horrorcore), é antes de mais um habilíssimo battle rapper, sempre pronto a cuspir punchlines violentas como “Levas uma foda auditiva sem encargos de IVA”, “Quebro hímenes com preliminares metálicos” e “Rebento pleuras com fonemas”.

Mas não se deixem enganar: por detrás de tamanho negrume esconde-se um exímio liricista, escultor de versos que espelham bem o seu amor à língua portuguesa. A sua escrita é complexa, visual e visceral, rica em vocabulário exótico (acantocéfalo, psicofonia, almicídio) e metáforas imprevisíveis (“Narrador da voz do diabo agasalhado na mortalha do teu desânimo”), que fazem dele um autêntico poeta. Dono de um discurso próprio, cunhou expressões como “quilhão fonético”, “autonómico abstémio” e “iconoclasta de casta incógnita”.

E se as suas letras impressionam pela imagética negra que evocam, o mesmo se pode dizer das suas produções. O seu álbum de instrumentais, Inspetor Mórbido – Instrumentais, de 2004, é a banda sonora para um filme de terror imaginário, com vinte batidas pesadas, cavernosas e lúgubres (com nomes como “O Pacto” e “Evocatore Diabolu”), que usam o cinema fantástico como principal inspiração, “sinfonias tóxicas” repletas de loops de cordas sinistras, coros satânicos e efeitos sonoros de correntes e o afiar de facas, entre samples de poetas portugueses como Al Berto e Mário de Sá-Carneiro.

Ecléctico tanto lírica como musicalmente, Fuse está tão à vontade como battle rapper agressivo e intimidante, no horrorcore que lhe deu fama, ou enquanto contador de histórias mais intimista, em faixas como “Mais Um Dia” e “Bons Velhos Tempos”, num lado mais luminoso que explorou sobretudo no seu último álbum, Caixa de Pandora, de 2016, ou ainda mostrando o seu lado de crítico social, como em “A Outra Face” e “Prémio Nobel”.

Canções como “Psicofonia” e “Alquimia” ilustram bem o talento de um artista que consegue escrever letras inteiras puramente em torno da beleza das palavras, evitando clichés do rap como a luta de classes ou a violência gratuita.

A sua longa carreira inclui alguns dos momentos mais memoráveis do hip hop português, como “Prémio Nobel” e “Eterno No Teu Ouvido”, e dois clássicos incontornáveis: Informação ao Núcleo e Sintoniza.

– Diogo Pereira


[KESO]

Keso escolheu para a capa daquele que ainda é o seu mais recente trabalho uma foto de uma escultura em terracota de uma MPC que ele próprio fez, como se tivesse querido moldar com as suas mãos a ferramenta que tantos produtores reclamam como uma extensão de si mesmos. Quando questionado por Bruno Martins sobre a especificidade de trabalhar com a histórica máquina da Akai, Keso procurou explicar como é diferente: “Só ficamos focados no que estamos a tocar: não se vê nada, só se ouve. É o que se ouve, o que se sampla, conheça-se ou não as notas. Tocas as coisas como se fosse um instrumento qualquer!”

Na verdade, não é um instrumento “qualquer”: mas o perfeito instrumento para desenhar os cenários em que evoluem as suas histórias, os seus agudos retratos, as suas viagens ao fundo de si mesmo.

O artista do Porto conta três álbuns – mais um curto conjunto de “epifanias” que parecem, na verdade cartas de amor especialmente endereçadas a gente como Biru, Maze, Nerve ou Blasph – no seu reportório, o primeiro dos quais, Raios Te Partam, data já do distante ano de 2003, quando ainda assinava KSXaval. E nestes discos adivinha-se uma crónica do seu crescimento como duplo artista: não apenas aquele que se revela em frente ao microfone, mas também o que se constrói através da MPC ou do computador, que terá sido o artefacto com que Keso primeiro começou por trabalhar os seus beats – na já citada entrevista a Bruno Martins revela que só pegou pela primeira vez numa MPC quando assinou “Oportunidades” para Minus.

Enquanto produtor, Keso parece sempre ter procurado o espaço da memória: samplou guitarras de fado na “Muralha Invicta” do registo de estreia ou, já em Revólver Entre as Flores, o segundo álbum de 2012, samplou Eduardo Nascimento e frases de filmes como o clássico de 1964 Belarmino de Fernando Lopes, retrato de um boxeur português que é também retrato de um tempo.

Quando chegou a KSX2016, a obra prima que revelou ao mundo em 2016, Keso era já um artista completo: escultor de uma imagem de capa, pintor de auto-retratos de todos nós, poeta de alma dorida e funda, escritor de romances negros, músico apaixonado por espectrais sonoridades que, definitivamente influenciadas pela paisagem pós-dubstep da capital britânica de meados desta década, serviam de forma perfeita todas as suas palavras, respirações, ideias. Keso sabe que sons o melhor servem, que texturas acomodam a sua voz da forma mais eficaz, que melodias são as adequadas para carregarem as emoções que quer explorar em cada momento. E isso é obra. Das maiores.

– Rui Miguel Abreu


[SAM THE KID]

Logo no primeiro álbum, editado de forma totalmente independente, Sam The Kid recorreu aos arquivos do fado para compor alguns dos seus temas. Uma jogada arriscada, por ser uma sonoridade difícil de casar com o hip hop, mas totalmente pertinente, que o levou a assinar o seu primeiro de muitos hinos — “Que Estranha Forma de Vida” tem a presença de Dulce Pontes no sample retirado de uma cover do tema histórico de Amália Rodrigues. Seguiu-se Fernando Tordo num dos temas fortes de Sobre(tudo), que viu a sua “Tourada” abrir o caminho para as rimas de Samuel Mira em “Q Mal Tem”. Em 2003 homenageou-se Carlos Paredes com a compilação Movimentos Perpétuos e STK assinou aquela que viria a ser uma das melhores combinações de sempre entre fado e hip hop — apenas ombreado pela remistura de “Verdes Anos”, dos Beatbombers. Amália Revisited saía três anos depois e Sam The Kid lá estava uma vez mais. Carlos Paião idem…

Nas rimas dispensa qualquer tipo de apresentação. Dono de uma fórmula infalível, STK pode gabar-se de ser o MC mais consistente em toda a história do hip hop português — Pratica(mente) é o culminar de toda a maturidade lírica que foi adquirindo. Além do disco ser flawless e a mais brilhante (e unânime) pérola nos arquivos da música urbana portuguesa, é exactamente a partir dessa época que o artista entra numa incansável jornada de rimas de primeira categoria, ao participar em inúmeros dos projectos de outros artistas e, consequentemente, roubando-lhes todo o protagonismo da forma mais saudável possível. Pedindo emprestadas as palavras ao mais recente e memorável verso de GSon: O Sam The Kid não faz feats., mas faz “sons dentro de sons.”

Num rápido exercício mental, poderíamos colocar esta equação de 12 melhores rappers/produtores no mercado norte-americano. O nome de Samuel Mira só poderia dar lugar ao de Kanye West. E se Yeezy se pode gabar de ser mais inventivo e vanguardista no que toca à produção, o “nosso” Sam tem “barras” de sobra para ajudar a equilibrar as contas. Sem recorrer à sua própria discografia: “LX”, “O Nomeado”, “Faixa 8” de Kara Davis, “Faixa 7” de Lisa Chu, “És Onde Quero Estar”, “….”, “Solteiro”, “Resistir à Tentação”, “Sexta-Feira” ou “Politica-mente” contêm versos de STK ao mais alto nível, que davam até para um possível sucessor de Pratica(mente).

Parte importante do sucesso dos Orelha Negra, o rapper e produtor não abrandou o ritmo e ouvimo-lo fresco na produção de “Pay Day“, de Regula, ou em “Brasa”, tema colaborativo com Mundo Segundo em que “cospe” um dos versos mais dilacerantes da época transacta.

– Gonçalo Oliveira


[KILU]

Em 2002, o hip hop era ainda um continente por desbravar, um espaço de dramáticos gestos de invenção de um futuro que se desejava, mas que não se vislumbrava nitidamente e que, à distância de já mais de década e meia, não ousava sequer sonhar com a realidade que hoje todos conhecemos. Nesse ano, surgiram alguns importantes registos que ajudaram a sustentar, como compete às obras fundacionais, a história entretanto erguida: Microlandeses dos Micro, Beats Vol. 1 – Amor de Sam The Kid, Educação Visual de Valete, Suspeitos do Costume dos Mind da Gap… Mas talvez nenhum outro registo tenha revelado uma visão tão complexa e tão perfeitamente formada como Um Outro lado da Versão, trabalho de estreia de Kilu que, exceptuando o tema “Apocalipse”, contributo para TPC de Boss AC, parecia ter surgido sem que praticamente nada tivesse servido antes de aviso (Micro, Sam ou Mind da Gap já tinham obras anteriores).

Com uma nítida propensão soul e jazz, essa estreia de Kilu apoiava-se em beats sofisticadíssimos que bebiam na escola que nos 90s nos tinha dado Gang Starr, Tribe ou Digable Planets, capaz de samplar “Manhã de Carnaval” e ecos de fado no mesmo beat e de sequenciar kicks pesados, tarolas cortantes e baixos sinuosos com total classe e mestria quando, à época, o sampling exibia em boa parte a natural inocência e fascínio de uma geração que ainda media o alcance de tal técnica sabendo que estava a desbravar um caminho que, por cá, nunca se tinha trilhado antes.

Kilu logo aí ganhou um lugar na nossa história. MC capaz de cuspir como os melhores, era também um produtor de absoluta mão cheia. Assinou depois beats para trabalhos de J-Cap e em 2011 lançou Motivo de forma discreta, combinando, uma vez mais, flows sofisticados, uma dicção muito particular, rimas cheias de rua e de peito cheio e beats plenos de personalidade, com muitas soluções melódicas e tímbricas pouco usuais. Essa propensão para a originalidade manteve-se em Frequência, último álbum em nome próprio, datado de 2014, mas longe de ser o seu derradeiro trabalho: aí Kilu ensaiou o seu próprio crescimento como produtor e, como nos explicou a propósito da sua reinvenção como Dellafyah, que no final do ano passado lançou Flame, álbum de instrumentais, a sua arte “foi sempre evoluindo”: “porque vou sempre matando a curiosidade com algo que desperte a minha atenção. Uso há 3 anos o sistema operativo IOS no iPad, daí a AKAI I MPC Pro, entre imensas apps de todos os tipos”. E não esquecer, que para as suas contas ainda há que contabilizar o espantoso OPROCESSO, álbum de 2016 em que serviu as rimas de Beware Jack e Blasph de forma absolutamente prodigiosa…

– Rui Miguel Abreu

https://www.youtube.com/watch?v=NLWsAJT0QcI&list=PLSkWfZOU5torZ4bYkeibnbQN3owPOX15J


[SP Deville]

Sou Quem Sou, álbum editado em 2015, trouxe SP Deville para o centro da discussão: afinal, onde é que andava este Pedro Sousa? A resposta não é simples, mas o avançar da idade, alguns infortúnios e a experiência adquirida na preenchida carreira — fez parte de grupos bem-sucedidos como SP & Wilson ou Makongo — levaram-no até à sua verdadeira identidade, conjugando as melodias, a acidez e os instrumentais superlativos para criar uma fórmula orelhuda e sonicamente ambiciosa.

Filho de pai angolano e mãe portuguesa, Deville nasceu no Porto, mas foi criado entre Portugal, Reino Unido e Angola, bebendo de três culturas diferentes que serviram como base para a sua construção como indivíduo e músico. Aquando do lançamento de It’s Deville Bitches Vol.2, Rui Miguel Abreu definiu-o na perfeição: “Tudo indica não haver linguagem que SP não domine com o à-vontade de quem parece ter nascido numa série de diferentes culturas ao mesmo tempo. Como se SP Deville tivesse nascido muitas vezes. No Bronx e em Atlanta, em Lisboa e em Londres, em Odivelas e em Compton. SP é de todo o lado porque não é daqui. É alienígena do espaço.”

“Negociantes”, de Sam The Kid, “O Crime do Padre Amaro”, de STK & Pacman, “O Meu Quarteirão”, de Blasph, ou “Quero o Mundo”, de NGA, são quatro exemplos da capacidade de escrever refrões memoráveis para outros, uma qualidade inata que também transporta, como é óbvio, para o seu trabalho a solo. Quando é hora de mostrar que também tem “barras”, SP não se encolhe: a cadência do primeiro verso de “Kamasutra” é tão libidinosa quanto o tema da canção; o storytelling de “Olha para Tras” é comovente e é fascinante vê-lo a desdobrar-se em diferentes flows, fomentando dessa forma o imaginário visual da história.

O seu estilo de produção é bastante maleável: é possível ouvi-lo a fazer boom bap clássico (“Vizinho de Cima”, de NERVE), híbridos em que une elementos electrónicos com pedaços jazzísticos (“Para Fora”, de Black Gipsy) ou trip hop (“Fantasmas”, de Black Gipsy), tudo com o mesmo cuidado e elevado nível de exigência.

Seja a dividir os holofotes com Phoenix RDC, a tornar ainda mais marcante o regresso dos Micro ou a “viajar” até Wakanda, SP Deville não pára de evoluir. É um dos mais imaginativos e dotados MCs/produtores que escolheram o hip hop como a espinha dorsal da sua expressão musical. Se têm dúvidas, fiquem com uma promessa do próprio: “Não tenho views como o Drake/ mas tenho uma certeza/ que toda música que terei feito/ um dia será major”.

– Alexandre Ribeiro


[PRASO]

É impossível distinguir o percurso de Praso e do seu colectivo Alcool Club. Os seus trabalhos individuais são indissociáveis dos projectos em grupo. E é importante olharmos para o trajecto da crew de Sines para percebermos como tudo funciona – e que Praso é a grande força-motriz. Aquilo que começou como um grupo de amigos a rimar por cima de beats, de forma despreocupada, por diversão, foi ganhando cada vez mais peso, conquistando mais público e tornando-se mais sério. As mixtapes boémias – com letras sobre festas, drogas, álcool, crime (tanto o real como o mais hollywoodesco – o imaginário da máfia italiana na América está muito presente nos Alcool Club), dramas de família – deram lugar a álbuns cada vez mais pensados. O primeiro passo nesse sentido foi quando o grupo, num disco a três – Praso, Montana e Harte – lançou Club 120º. Depois, chegou Rap Proibido, só com os irmãos Montana e Praso: os dois homens-fortes do grupo. Praso sempre foi o responsável pela gravação e mistura no estúdio caseiro Artesanacto e, além disso, o grande produtor do colectivo.

Em paralelo, e ao contrário de qualquer outro membro de Alcool Club, Praso tem uma carreira a solo prolífera, com vários discos no currículo – mesmo que a maior parte não tenha a mesma popularidade do trabalho que faz em grupo. Praso poderia não estar numa lista dos melhores rappers em Portugal, ou até na dos melhores produtores (listas também são apenas listas, não é? Valem o que valem), mas numa destas nunca poderia faltar.

Afinal, de todas as pessoas brilhantes que estão nesta lista, Praso é um dos que melhor equilibram o seu trabalho enquanto rapper e enquanto produtor. Praso é um rapper? Sim. Praso é um produtor? Claro que é. Mas nunca o imaginaríamos a fazer uma coisa sem a outra e é isso que o torna um verdadeiro MC/produtor, duas funções criativas numa perfeita relação de simbiose.

Nas rimas, pode ser um storyteller, mas também falar de corrupção na sociedade capitalista ou de uma aventura romântica. Nos beats, deixou a sua marca identitária no esqueleto sonoro dos Alcool Club: o jazz entranhado nos beats, as guitarras de alma portuguesa, o recorte clássico e requintado — tal como os mafiosos de Chicago ou Nova Iorque, contrabandistas da Lei Seca, que são tantas vezes evocados. E nós só ganhamos por Praso manter sempre a sua sede por mais rimas e batidas.

– Ricardo Farinha


[SLOW J]

O MC e produtor mais novo desta lista é também aquele que apresenta o currículo mais curto — e isso diz muito sobre a sua presença aqui. De Setúbal, Slow J pisou muito território (físico e sónico) antes de se tornar num dos nomes mais fascinantes da nova geração de músicos portugueses. Depois de estudar Engenharia do Som em Londres, o primeiro pontapé no ângulo chegou com The Free Food Tape, EP que apareceu com a força e ambição de quem quer o mundo (ou fazer ao Rui Veloso o que o Ronaldo fez com o Figo).

Como MC, o seu talento deixa poucas dúvidas: “Comida”, a remistura de “Caravana” ou a mais recente “Fome” são exemplos da sua mestria quando é hora de “cuspir”. Porém, é bastante redutor resumi-lo a rapper: a sinceridade desarmante de canções como “Cristalina”, “Beijos (Interlude)” ou “Serenata” revelaram o enorme potencial de um cantautor que nunca quis ser colocado em “caixas”.

Em 2017 e 2018, a sua qualidade como produtor, na verdadeira acepção da palavra, foi posta à prova em dois momentos: The Art of Slowing Down, o seu álbum de estreia, e Deepak Looper, o primeiro disco a solo de Papillon. Das duas vezes, venceu com larga maioria e mostrou que entende todos os momentos da música, desde a concepção até à execução, passando por uma série de processos que misturam técnica e emoção. Sabe o que quer e ajuda outros a encontrarem-se. Reunir todas estas qualidades numa só pessoa é, obviamente, caso raro.

“Nascido” no punk rock e metal e “criado” no hip hop, é natural que João Coelho não pense em géneros quando inicia o processo criativo. O rock de “Arte”, o boom bap de recorte clássico de “O Cliente” ou o afro-house de “Mun’Dança” vieram todos do mesmo sítio: Slow J, artista imprevisível que tem tudo para continuar a surpreender nos próximos anos. Não é de admirar que nomes como NERVE, Richie Campbell, Papillon, GSon, Holly, Fumaxa, Beatbombers, Valete, Carlão ou NBC já tenham trabalhado com o autor de TAOSD

Felizmente para Slow J, o hip hop vive um momento de grande fulgor (comercial e artístico) que lhe permite chegar a um público enorme. Depois de dominar a arte de abrandar, o artista de Setúbal acelerou para o topo da pirâmide no complexo mapa musical português.

– Alexandre Ribeiro


[MUNDO SEGUNDO]

No início do século XXI, altura em que o rap português se encontrava dividido entre edições major e trabalhos independentes verdadeiramente caseiros, Mundo Segundo foi o mais revolucionário dos MCs/produtores emergentes. Figura central em Dealema, principal colectivo no underground de Porto e Gaia mas sem a expressão dos populares Mind da Gap, entrou nos anos 2000 decidido a virar a página.

Gutto não tinha evoluído de modo a quebrar barreiras. Em Boss AC já se via uma confirmação e não um passo em frente. Kilu tinha algo a dizer, Sam The Kid também mas nem todos sabiam, e foi nesse contexto que Mundo sobressaiu. Depois de editados o álbum 1º Assalto, com Ex-Peão, e a compilação Roka Forte, Ace e Serial deixaram de ser, respectivamente, os únicos a fazer multies de forma consistente e a cortar samples com um ouvido no passado e outro no futuro.

Com ou sem intenção, a verdade é que Mundo se assumiu rapidamente como responsável maior pelo ponto de viragem em que o rap amador se tornou a vanguarda da técnica, ainda longe das condições que tinham os artistas da NorteSul, por exemplo, e foi depois dos lançamentos já referidos que a norma se fixou. Desde então que os melhores flows/instrumentais e as novas tendências/estéticas surgem na base da pirâmide, influenciando posteriormente os artistas já consagrados e que se movem no topo da mesma. A evolução da cultura passou a estar cada vez menos dependente do que faziam os nomes fortes dos anos 90 e a diversidade, pilar de toda a cultura, ganhou um novo fôlego mas também uma pronúncia do norte mais carregada que até então.

Ao produzir não só os próprios temas mas também grande parte da nova escola do Grande Porto, Mundo inventou a sua própria sonoridade e reinventou o rap de toda uma região, deixando marcas que ainda hoje perduram – os samples frios ou melancólicos, equilibrados pela presença de uma bateria seca e agressiva, são apenas algumas dessas características. A filosofia do it yourself, habitualmente associada às estreias de Micro e Sam The Kid (e bem), foi outro dos pilares fundamentais. Mundo provou que era possível fazer em casa mas, mais do que isso, deu provas de que era possível fazer melhor que os outros sem sair de casa.

Depois da estreia oficial dos Dealema, em 2003, e do seu primeiro álbum a solo, a produção e a entrega de Mundo Segundo estabilizaram (compreensivelmente, até porque os objectivos e as motivações se vão transformando e sucedendo). Mas, passados largos anos em que nunca largou a bandeira, parece ter recuperado o apetite com que mudou toda uma história, especialmente depois de formada a parelha com Sam The Kid. Os beats e flows com que Mundo se apresenta em 2018 são a perfeita evolução do que começou há duas décadas, não havendo maneira mais bonita ou natural de continuar a escrever a história.

– Moisés Regalado


[BOSS AC]

Será, de todos os nomes que destacamos nesta dupla condição de MCs e produtores, aquele que exibe a mais vasta discografia: cinco álbuns em nome próprio, para começar, e inúmeras e variadas participações – de Gutto e Rui Veloso a Tito Paris ou Shout! muitos foram os artistas que quiseram, em determinado momento, ter Boss AC por perto. O que é natural e compreensível: o artista que se estreou em 1994 no alinhamento da compilação que marcou o big bang desta cultura – Rapública – haveria de assinar um dos primeiros clássicos da discografia hip hop nacional com Mandachuva, de 1998 (antes disso talvez só mesmo os Mind da Gap com Sem Cerimónias e os Da Weasel com 3º Capítulo , ambos do ano anterior).

Seguiram-se depois Rimar Contra a Maré, trabalho de 2002 que incluía o hit “Baza, Baza”, e, sobretudo, Ritmo Amor Palavras de 2005, talvez o primeiro álbum sem argumentos extra-hip hop (os Da Weasel nunca dispensaram a energia rock do seu arsenal de argumentos) a lograr alcançar as marcas platinadas que a indústria sempre perseguiu, com “Hip Hop (Sou Eu e És Tu)” a assumir a verdadeira condição de hino geracional com tremendo impacto de vendas.

Enquanto boa parte do hip hop evoluía de forma muito discreta nos subterrâneos da cena musical nacional, Boss AC não se escusou a assumir a condição de astro pop, habituado a pisar os maiores palcos do país e não só, equilibrando ambição e saber. MC capaz de assinar sempre rimas bem estruturadas, com flows imaginativos e uma das melhores dicções do panorama hip hop nacional, AC foi sempre e igualmente um produtor de mão-cheia, na verdade, talvez um dos primeiros reais produtores do nosso país, por oposição à ideia do beatmaker: AC não apenas dominava a construção de beats através do sampling, como desde cedo se revelou exímio orquestrador, capaz de no mesmo tema gerir recursos digitais organizados através da MPC e matéria orgânica debitada por músicos e outros cantores – teve, por exemplo, Mariza ao seu lado num “Alguém Me Ouviu” que foi pioneiro no cruzamento do hip hop com o fado. Mas essa não foi a única ponte que AC soube cruzar, ele que logo na origem da sua discografia, em 1998, juntou a sua voz à da sua mãe, a cantora Ana Firmino, para reclamar com o clássico cabo-verdiano “Tunga, Tunguinha” uma identidade africana que hoje parece marcar parte relevante da nossa modernidade pós-Buraka Som Sistema.

AC é, enfim, uma figura tutelar desta cultura, facto que justifica que NGA tenha tatuado o seu nome como gesto de sentida homenagem, ou que Sam The Kid o tenha chamado para o fenómeno com marca TV Chelas que foi – e é… – “Caravana”. É que AC é clássico como o pitéu das nossas avós.

– Rui Miguel Abreu

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