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Texto: Paulo Pena
Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 02/06/2023

Uma grande estreia há muito prometida.

Azart sobre Foco: “Fiz um álbum que é tudo o que me estava a prender”

Texto: Paulo Pena
Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 02/06/2023

Não é puxar a brasa à sardinha, porque isto nunca é sobre nós. Mas não deixa de ser legítimo levantarmos a bandeira do “nós avisámos” quando já há mais de uma década projectávamos o que hoje, finalmente, se concretiza: o álbum de estreia de Azart tardou em chegar, mas justifica agora essa demora. Não só porque o talento, sem trabalho, não chega, mas também porque o trabalho, sem condições, não adianta.

Isso explica que, desde a crença da Clutch Gang Records (com Alfama e Brunuxu à cabeça) até à aposta da Sony Music Entertainment Portugal, os sucessivos recomeços tenham levado Karma virar Foco, num disco que reflecte a longa jornada preliminar de Sebastião Oliveira. Agora sem falsas partidas, determinado a inaugurar a AZ season, Azart apresenta-se — a quem não havia entretanto esbarrado neste segredo bem guardado — como um artista que se formou no rap, mas que almeja ser bem mais do que um rapper, como as 16 canções do seu novo longa-duração, acabado de editar, transparecem.

A confirmação desse velho prenúncio aclarou-se, porém, dias antes da inauguração do primeiro trabalho a solo do cantautor de 27 anos, numa listening party circunscrita a um núcleo familiar alargado e bem composto. Momentos antes do arranque desse evento, tivemos a oportunidade de nos sentarmos, novamente, à conversa com o MC de Lisboa, desta vez em registo de entrevistador e entrevistado. Depois, deixámo-nos ficar para testemunhar o contentamento geral das dezenas de pessoas que, manifestamente, acreditam tanto no valor deste artista quanto deste lado — isto enquanto o visado cantava o álbum de uma ponta à outra uma mão cheia de vezes. Não é um mau barómetro de sucesso para quem está agora a começar.



A primeira vez que ouvi uma música tua foi há dez anos, é possível?

É provável.

A primeira vez que escrevi sobre uma música tua foi há cinco anos…

E foste a primeira pessoa que escreveu sobre mim.

… e o teu primeiro álbum sai em 2023, portanto estás a fazer música há pelo menos dez anos. Porquê tanto tempo para apresentar um primeiro projecto com pés e cabeça?

Eu acho que foi muito por inconsistência minha, porque eu comecei tão cedo… eu comecei a escrever e a cantar por volta dos 12 anos. Foi tudo tão precoce que eu próprio não confiava assim tanto. E, sei lá, era miúdo, era adolescente, e tinha imensa coisa a acontecer — os meus problemas de crises existenciais de teenager. Sempre quis, sempre foi um sonho e uma coisa que eu queria mesmo fazer, mas nunca houve um compromisso tão forte quanto isso — que só começou mais tarde, por volta dos 18. Só que entretanto, aos 18, eu fui-me aperfeiçoando e comecei a sentir que a cada música que escrevia estava muito melhor do que a anterior. Estava sempre a querer fazer o meu melhor possível. E acho que só me foquei em fazer um projecto quando percebi que o meu melhor possível é uma coisa longínqua, que ainda vou ter de suar muito para atingir, que isto é um progresso e uma coisa constante. E condições financeiras para poder fazer um álbum, também. Ter uma história para contar, alguma coisa que, para mim, fizesse efectivamente sentido. Isto pode ser uma metáfora um bocado rebuscada, mas para mim uma música é um filme, e um álbum uma série: precisas de mais tempo para contar, para detalhar as coisas. E eu queria entregar uma série que tivesse um bom plot, não me apetece juntar uma data de sons e chamar àquilo um álbum, como já vi imensa gente a fazer.

Num videojogo, fazer um álbum é chegar ao boss.

É o primeiro boss.

Mas podias ter feito checkpoints até lá.

Sim, sim. 

Aliás, chegaste a fazê-los, mas mais tarde retiraste-os.

Esse checkpoint foi uma mixtape que não terminei.

Tinhas quatro faixas.

Tinha quatro sons publicados, e faltavam-me mais três, que ainda não estavam gravados — só escritos. Depois, deixei de estar no estúdio onde estava a gravar na altura e, entretanto, surge a cena com a Sony e quis começar do zero.

Queria falar primeiro na tua label, a Clutch Gang Records, mas podemos ir já à Sony: como é que isso aconteceu sabendo que tinhas tão pouca coisa cá fora?

Vamos à Clutch primeiro, porque é a partir da Clutch. Então, a Clutch surge porque o Alfama, que é o meu manager, era videomaker e fez um clip do Ziki Ks [“Rude boy”] onde eu entrei. E numa noite em que nos cruzámos ele disse que estava a pensar criar uma label e que queria ter-me como artista. Disse-lhe logo que sim, só queria fazer música. Então, aceitei, ele criou a Clutch comigo ainda como primeiro artista, em que na altura era eu, o Alfama e o Brunuxu — artista, manager e produtor. Depois, as coisas foram crescendo, o Alfama conseguiu uma reunião na Sony — que eu nem fui avisado — onde acho que ofereceram só um contrato de distribuição, e ele disse que não queria e que voltava depois para o licenciamento. Mandaram-no ir trabalhar no álbum, voltámos uns tempos depois e conseguimos um contrato de licenciamento. Mas vem tudo do início da Clutch. 

Mas mesmo para a primeira proposta de um contrato de distribuição, como é que provaram o teu valor com tão pouca coisa palpável?

O Alfama, quando foi lá, apresentou quatro artistas. Eu fui o último artista apresentado e ele mostrou um som que é o “Karma” — que fiz para o meu pai e que tu até já escreveste sobre ele por causa do concerto na Casa do Capitão —, e eles adoraram e quiseram logo a distribuição.

Vamos, então, falar do Karma: esse era para ser, desde o início, o título do teu álbum, e até tens um verso no “Paris Freestyle” que diz “Se ponho o meu body no álbum e o nome até virou tattoo” em referência à tatuagem que tens no braço a dizer “Karma”. Porque é que na recta final mudou para Foco?

O álbum mudou por várias razões, mas acho que a principal foi porque eu senti que não estava capaz de contar a história que queria contar. O meu objectivo para o Karma era contar o meu percurso mais pessoal, onde ia abordar família, amigos… uma coisa mais introspectiva, os meus defeitos, falhas que reconheço em mim. E, depois de ter o “Karma” no meio, virem então as faixas onde tenho o overcome de todas essas coisas e onde eu me supero.

Que não é assim tão diferente do que sobressai no Foco.

A pequena diferença do Foco é que eu falo do meu percurso artístico e no Karma eu falo do meu percurso pessoal. E eu senti que ainda não estava preparado, e que ainda não tinha, também, as condições todas reunidas, para conseguir fazer o álbum da melhor maneira possível. Porque é uma coisa tão pessoal que senti que, psicologicamente, não estava preparado para o fazer da melhor maneira possível. E eu já tive o Karma a dois sons de estar pronto antes de cancelar tudo e mudar, porque senti que aquilo merecia mais de mim. E uma coisa que eu estava preparado para falar e para mostrar era o meu percurso artístico, que era o que eu estava a sentir mais naquele momento. O álbum Karma é uma coisa que me vai exigir viajar um bocado no tempo e ir sofrer coisas que já foram há uma data de anos.

Mas tudo o que fizeste para o Karma ficou guardado?

Não, algumas coisas foram adaptadas porque, independentemente de serem para o Karma, fazem parte do meu percurso artístico. Deixei algumas de parte, inclusive o “Karma” — e essa é a base de todo o álbum —, porque eu vou fazer o Karma

O Karma é o segundo boss?

O Karma é o segundo boss. E é um boss mais difícil, esse. Eu não cancelei a ideia, eu adiei a ideia. Porque tenho uma visão do que eu quero fazer tão sólida que, enquanto não tiver tudo propício para fazer isso, prefiro não fazê-lo.

Para além da preparação emocional, o que é que faltava neste momento para fazeres o Karma?

Faltava eu descobrir certas coisas. Todos criámos, a certa altura, memórias selectivas, e eu tive, ao longo da minha adolescência, várias coisas por que passei que o que eu sofri nessa altura me fez apagar certas memórias. Então, eu não me lembro de tudo, lembro-me do que me quero lembrar. Há certas coisas que me faltam, e eu tenho de ir reconstruir isto — tenho que ir fazer uma terapia, ir para o psicólogo, qualquer coisa, porque eu quero desenterrar estas coisas. Porque esta história tem de ser contada exactamente como foi, e não só da minha perspectiva, porque isto não é uma história que é só minha: é uma história que é da minha família, dos meus amigos, de pessoas que deixaram de ser minhas amigas, mas que em tempos foram. E eu não quero ser faccioso nisto, não quero ser parcial, quero contar a história exactamente como ela é porque quero abordar não só as coisas que eu fiz bem, mas principalmente as coisas que eu fiz mal.

Quase um álbum jornalístico.

[Risos] Mais ou menos… E queria que fosse meio cronológico, até. Porque, a certa altura, houve um turning point em que eu comecei a tornar-me uma pessoa melhor, ou a preocupar-me mais com as outras pessoas à minha volta, e não só comigo. E é uma coisa que vai exigir um bocado mais de mim.



A tua génese é o hip hop e as tuas referências no rap são os rappers que mais privilegiam a escrita e que distinguem claramente o artista da pessoa. Essa separação para ti não existe?

Às vezes faço essa distinção, mas Azart não é um alter-ego meu — sou eu noutra forma, noutro terreno. Mas sou sempre eu. Não sinto que haja essa coisa de ser outra persona ou de uma máscara minha. Se calhar, ainda estou numa fase inicial da minha carreira — e essas pessoas de que estás a falar têm anos e anos de carreira —, e daqui a uns anos vou querer ter alter-egos e encarar isto como uma persona e poder contar histórias. Porque às tantas contas a tua história e, quando ela está contada, vais falar do quê? Mas, para já, eu quero falar só de mim e do que eu me relaciono e do que é a minha vida. 

Ainda tens pano para mangas aí.

Ainda, ainda. E a verdade é que o tempo não pára. Enquanto eu estiver a viver vou ter coisas para contar. Mas, a certa altura, se calhar vou querer também — e por acaso já tinha pensado nisso, é uma coisa que eu gostava de fazer — ter dois ou três sons das histórias de vida de alguém próximo de mim, que eu posso contar na terceira pessoa. 

Mas não deixa de ser o Sebastião a contá-las.

Não, não, exacto! Sou eu a eternizar a história de alguém que me é querido.

E por falar nas tuas referências no hip hop, a presença do Tilt num álbum como este, que vai muito além do rap, diz muito. Como é que essa colaboração surgiu?

Eu vou-te dizer uma coisa: felizmente tenho o prazer de conhecer a pessoa para lá do artista, e é tão bom artista como pessoa — e isso diz muito da pessoa que ele é, porque é um artista absurdo. Eu conheci o Tilt na Casa do Capitão, uma ou duas semanas antes do meu concerto, num concerto de ORTEUM. E na altura conheci-o e convidei-o para ir ao meu concerto. Ele foi e ele no final do concerto veio ter comigo de sorriso na cara e diz: “Não te vou dizer que adoro tudo, mas sei que és bom no que fazes”, como quem diz, “Isto não é bem o meu estilo, mas sei reconhecer o que estás a fazer”. E a verdade é que existe uma mística à volta do boom bap e do que é ou não ser “real” que eu acho que nem todos os artistas conseguem fazê-lo da forma que o Tilt consegue fazer: primeiro é seres o melhor e teres moral suficiente para dizer tudo o que te apetece porque vais dizer da melhor maneira possível.

E ter um grupo que se chama “O Rap Tuga É Uma Merda”…

[Risos] Pronto, tens que live by that. A verdade é: ele não gostar de um gajo que se afirma rapper e hip hop head e que faz música comercial não significa que ele não goste da pessoa, e ele está disposto a trabalhar com essas pessoas — ele está disposto a trabalhar comigo, caraças… Eu tenho o “Nós”, tenho o “Sol a Sol”…

Mas ele não trabalharia só por gostar da pessoa, presumo. 

Não, não. Ele tem de encontrar skill. A minha questão é: eu, não sendo um artista de boom bap — ou que não o faço tão regularmente, porque já fui, em tempos, um artista só de boom bap —, se eu for uma pessoa que ele gosta e lhe apresentar um projecto de boom bap que ele gosta, ele vai entrar. Não interessa se tudo o que eu faça posteriormente àquilo é a minha cena. Ele quer fazer boa música e tem os parâmetros dele do que é fazer boa música. Se eu lhe apresentar uma coisa nesses parâmetros, e for uma pessoa que ele goste, a coisa rola. E para mim é um privilégio enorme, porque é uma coisa inesperada para mim, como vai ser, provavelmente, para qualquer pessoa que oiça o álbum. Foi ter o carimbo de uma pessoa que eu respeito imenso, tanto pessoalmente como artisticamente. E é um daqueles que eu acho que é — senão o melhor — um dos melhores liricistas que este país tem.

No top um e meio, se calhar.

[Risos] Sim, no top um e meio.

Mas conheceram-se na Casa do Capitão e desde aí como é que chegaram a fazer uma música juntos? E porquê o “20.000 maneiras”?

Então, eu tinha o “20.000 maneiras” já pronto, com primeiro e segundo verso, mas estava em dúvida com o segundo verso. Lá no concerto, foi dessa que ele obviamente gostou mais, e eu estava naquela, “O que é que eu vou fazer com este segundo verso? Vou mudar, não mudo, assumo isto assim…” — já estava naquela fase, até, de ouvir outros beats. Já me estava a irritar tudo [risos]. E, às tantas, comecei a falar com a minha namorada a dizer, “Quem é que ficava bem nisto? Eu curtia bué de ter o Tilt ou o NERVE neste som — isto é a cara deles, é ESCALPE, é o que eles estão a fazer…”. E por coincidência — ou não —, no mesmo dia em que eu disse isto, recebo uma chamada do Tilt a dizer, “Olha lá, aquele som que cantaste, e que eu disse que curtia, já saiu?”, e a coisa desenrolou e ele fez o que faz melhor, que foi matar-me [risos].

E como chegaram ao terceiro verso?

Eu quis fazer um back to back. Ele alinhou, deixámos aquilo a marinar um bocadinho, esteve ali em “águas de bacalhau”, para perceber se íamos avançar ou não. A certa altura, o Tilt até disse que queria mudar a parte dele, e eu disse para irmos para estúdio, porque estava a gravar o álbum e tinha mais três sessões para o fechar. Porque o back to back chega a uma altura em que é quase, eu digo uma palavra e ele diz outra, e eu acho que isso não ficou bem gravado quando nós estivemos a escrever e estruturámos a cena. Mas, depois, em estúdio, a coisa desenrolou. 

Isto leva-nos a um ponto que é a variedade do teu álbum. Isso foi uma coisa que procuraste deliberadamente, ou é algo que te sai naturalmente?

Estou numa fase de procura, também. Eu nunca vou querer ser uma coisa específica. Isso significa tu estares cingido sempre ao mesmo e seres sempre o mesmo — mesmo quando deixas de querer. E isso não é uma coisa que eu esteja à procura. Se tenho a possibilidade de ser livre, porquê trancar-me?



Focando agora no Foco, a tónica da superação sobressai muito neste álbum e, sobretudo nas letras, fica a ideia de que sentes que tens algo a provar. Essa necessidade é mais em relação a ti próprio ou aos outros?

Não é que eu sinta que tenho alguma coisa a provar. Eu tenho sonhos e expectativas muito grandes, tenho pessoas à minha volta que acreditam muito em mim, e tenho uma necessidade de corresponder — tanto a nível pessoal como a nível artístico. Eu saí da escola mais cedo do que é suposto para focar-me na música, e o que é que isso me trouxe de mau? Eu não tenho nenhum plano B. Ou isto ou isto. Foi uma decisão que eu tomei que pode…

Tem um risco.

Tem um risco enorme. Eu vou fazer 27 anos agora… Por isso há uma necessidade de suceder, não de provar alguma coisa. Eu quero que isto dê certo porque eu quero fazer disto a minha vida. Tenho pessoas à minha volta, inclusive os meus pais, que passado algum tempo conseguiram apoiar a minha decisão de largar a escola para me dedicar à música — que é uma coisa difícil para um pai —, tive todo o apoio de toda a gente, sempre. E sinto que eu suceder deixou de ser uma coisa só para mim. Claro que no final do dia as consequências disso vão ser minhas, mas há muita gente que fez muito por mim, que sofreu muito por mim, para eu poder ter oportunidade de fazer isto resultar. Portanto, é ingrato da minha parte não levar isto tão a sério e não pensar tanto no que seria não suceder. Porque não é uma opção, mas é uma possibilidade.

Ainda assim, sinto que há uma boa fatia no álbum de tu a falares do teu valor artístico.

Sim, tenho várias fases. Acho que todos os artistas têm isto. Já tive várias fases em que pensava, “Será que sou tão bom como acho?”. E o álbum todo é uma luta comigo próprio, eu a provar-me a mim próprio, sem dúvida — não é aos outros —, que eu consigo.

Neste momento sentes que essa pressão ainda se atravessa no teu caminho?

Eu senti até há muito pouco tempo que essa pressão se metia no caminho. O que aconteceu foi que eu decidi agarrar toda essa pressão que eu tinha no caminho e transformar isso em algo que é o que eu preciso — e, então, fiz um álbum que é tudo o que me estava a prender. Foi uma prática que eu tive muitas vezes ainda adolescente, que era quando tinha bloqueios de escrita ou criativos, quando não tinha nada para escrever, escrevia sobre não ter nada para escrever, para poder escrever qualquer coisa.

Entre essas fases, já sentiste a do deslumbramento?

Eu acho que a grande fase de deslumbramento que eu tive foi assinar o contrato com a Sony. De longe. Eu assinei o contrato com a Sony e achei que estava feito, a minha carreira já está — made it

Como nos Estados Unidos da América, quando um rapper consegue um record deal.

E foi duro perceber que, a partir do momento em que estás numa major, o trabalho é a triplicar. Então, deixei-me encostar um bocadinho, explorei um lado mais… comercial não é a palavra que eu gosto de usar.

Abrangente?

Mais abrangente. E, se calhar, na altura não era bem o que eu estava a querer fazer. Adorei fazê-lo, mas não era o que eu estava a precisar para mim. Não parei para pensar em mim. Pensei, “Como é que eu vou fazer isto andar o mais rápido possível?”. Essas músicas em questão entram no álbum, porque fazem parte do percurso e contam essa parte da história. Eu tenho três skits no álbum, como já pudeste ouvir: o primeiro representa a assinatura do contrato com a Sony, e as músicas a seguir representam aquela coisa mais comercial e aquela tentativa de chegar ao mais abrangente possível, passar na rádio e fazer isto lucrar para poder pagar a despesa; depois, há o interlúdio, que é uma mudança para músicas como o “Sufoco”, o “Self Love”, o “On & On”, que sou basicamente eu a pensar no que estou a fazer. Não que eu esteja arrependido do que eu fiz, atenção. Não quero deixar essa imagem, não é isso. Eu deixei-me levar, efectivamente, pela possibilidade de fazer dinheiro da música, porque preciso e porque é esse o objectivo. Mas, depois, nas outras músicas a seguir, sou eu a ficar mais consciente do que está a acontecer e que essas músicas não chegam, e que essas músicas abrangentes não vão ser o que vai resolver a minha vida. E a seguir vem o terceiro skit, que é aquele sinónimo de “foco”, de eu ver com mais clareza e perceber que eu posso fazer cenas mais abrangentes, cenas mais underground, posso fazer o que me apetecer desde que eu perceba e tenha a consciência de que eu tenho de fazer isto como eu sou, na minha língua, para os meus, e da melhor maneira possível. Então, nessa terceira fase vem uma parte mais neo soul — e fica, desde já, a promessa de que vai ser um estilo que eu vou querer explorar muito. 

E agora, no reverso da medalha, apesar de transpareceres confiança em grande parte das faixas deste disco, tens versos como “quem diria que eu viria um dia a ser tão inseguro assim? De puto com a mania a um homem que não acredita em si”. Essa confiança é mais mecanismo de defesa do que inata?

Tem muitas fases. Eu, efectivamente, sou uma pessoa confiante. Mas todos temos as nossas fases, e eu estou muito habituado desde miúdo a encobrir os meus medos e a encobrir momentos… eu não tenho awkward moments. Não existe na minha vida, nunca, um momento constrangedor. Nem que eu tenha de falar sobre as solas dos meus sapatos, eu arranjo maneira, porque eu não gosto de estar nessa posição, não gosto de estar desconfortável, não gosto de me sentir com falta de confiança. Então, transbordo um bocado o excesso de confiança, as piadinhas, e vou buscar todos os mecanismos que conheço para encobrir, de certa forma, os nervos que me estão a passar.

Mas eu até queria explorar essa tua vertente mais a nível artístico, como é o caso da tua experiência em palco — que ainda é pouca. E das poucas vezes que te vi sempre me pareceste muito confiante para a experiência que tinhas.

Mas eu estou completamente borrado… [risos] No palco, principalmente, é quando eu tenho mais vezes. Uma vez, fui com um amigo meu, o Ésse Print, dar um concerto na Queima das Fitas, e estivemos a beber uns copos, mas não foi suficiente para eu ficar mais solto. E o que é que aconteceu… Antes de entrarmos para o palco, os nervos eram tantos que eu vomitei antes de subir. Isto nunca me aconteceu antes, mas assim que cheguei lá acima passou. 

Passa sempre quando entras?

Sempre, sempre. Assim que eu piso, assim que eu começo a cantar, a coisa acalma. Isso aconteceu-me sempre em todos os concertos que eu tive.

E consegues perceber, racionalmente, o que é que te faz acalmar assim que entras?

É assim, o meu coração nunca pára de estar a duzentos à hora. Eu, depois de sair do palco, ainda preciso de uma meia hora, pelo menos, em que ainda estou com o coração a palpitar, e suo e fumo um cigarro — e não conversem comigo que eu não estou capaz de ter conversas decentes [risos]. Mas, durante o concerto, é o ápice da minha felicidade. É uma adrenalina gigante, há uns nervos e um palpitar, mas é saudável. É como saltar de pára-quedas: estás em pânico e com o coração a mil, mas estás a adorar cada segundo.

Estás, literalmente, high.

Exactamente. High on life. E é um bocado isso que me acontece em palco: estou bué nervoso antes, durante e depois, mas durante há ali qualquer coisa em que a minha alegria e a minha felicidade superam a minha ansiedade.

E estás auto-consciente nesse momento?

Sim, eu penso. Tenho alguma clareza para, apesar dos meus nervos, perceber, “Não saltes aqui, controla a respiração, não comeces a correr, não é fixe saltares para o público, porque ainda não tens nome e não te vão agarrar…” [risos]

Mas não chega a um ponto de excesso de racionalidade que seja contraproducente?

Excesso de racionalidade não acho que seja uma coisa que eu tenha. Eu improviso muito, não tenho um discurso decorado. Mesmo quando estou a falar, as coisas saem-me naturalmente e corre bem, digo o que sinto naquela altura, não é uma coisa super-pensada. São os tais mecanismos de defesa: um deles é falar muito. Enquanto resultar, óptimo. Se não, vou ter de arranjar outros. A última coisa que eu quero é ter momentos constrangedores em cima do palco e bloquear.

E em relação aos palcos, como é que estão os planos ao nível de concertos para apresentar este álbum?

Vou começar agora a preocupar-me com os palcos. Realisticamente, vai haver um concerto daqui a pouco tempo, para eu fazer a apresentação, em Lisboa. Um dos sítios que eu gostava de ir, que me mostrou muito carinho ao longo destes últimos tempos, é Évora. Mas ainda não estou a pensar muito nisso. Quero pôr o álbum cá fora, entregar isto às pessoas, ver como as pessoas recebem isto e fazer concertos de apresentação. Não estou com pressa. A dica é longevidade. É o que o Nipsey Hussle diz: é uma maratona. Não vale a pena andarmos aqui todos à pressa. Quanto mais depressa tens e mais rápido ganhas, depois perdes e não sabes o que é não ter. É preferível passar todas as etapas para que, no dia em que eu desça uma ou duas, sei o que é estar lá.


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