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Texto: Paulo Pena
Fotografia: LucasOwnView
Publicado a: 10/09/2021

Sorte grande.

Azart e Silab & Jay Fella na Casa do Capitão: a tranquilidade depois da tempestade

Texto: Paulo Pena
Fotografia: LucasOwnView
Publicado a: 10/09/2021

Na passada quarta-feira, dia 8 de Setembro, o Capitão viu a sua Casa ameaçada por uma quadrilha de nuvens grisalhas e intimidantes que ao longo da tarde foi atormentando o Beato, já depois de o carregado céu lisboeta ter anunciado retirada da investida chuvosa que atacara de surpresa aquele que, discretamente, se revela (sempre) o mês mais solarengo do Verão. No entanto, esse foco de resistência em forma de precipitação não arredava nem por nada — injúrias, lamúrias, preces, tudo parecia vão no combate desigual contra as forças da natureza, tanto que a primeira batalha deu-se mesmo por perdida: soundcheck adiado indefinidamente, e as horas a passar. 

As portas tinham ordem de abertura apontada para as 18 horas, mas as condições climatéricas inesperadas — contra promessa celebrada com os guardiões meteorológicos — forçavam o Capitão a uma contenção esperançosa, que tinha no horizonte, cada vez mais próximo, um recolhimento fatídico perante o festim agendado — a primeira Tranqui Sesh organizada pela Tranquilow em Lisboa corria o sério risco de ir por água abaixo mesmo antes de desatracar.

A hora decisiva aproximava-se e as negociações continuavam num impasse. Porém, a aliança recém-formada entre a Casa do Capitão e a Tranquilow ganhava força na paciência e na boa vontade. O cerco pluvioso dispersava muito lentamente, mas cada centímetro de abertura era percepcionado como prenúncio da vitória (spoiler alert: alcançada), até que o momento de destapar as armas chegara. Os materiais voltaram a respirar, e o primeiro soldado foi enviado de imediato para a frente de ataque: Azart tinha sido previamente alocado para o pelotão da primeira linha e, por isso, começou a testar a calibragem do sistema sonoro enquanto os primeiros espectadores apalpavam o terreno ainda húmido.

Um clima de paz armada instalou-se, finalmente, no terraço até então bombardeado por rajadas intermitentes de chuva ora intensa, ora ligeira, e a organização chegou ao consenso final: que se desse início ao dilúvio de “rimas e batidas ao sabor do vento”.

Assim, vestido a rigor, Azart apresentou-se na sua cidade-berço com uma selecção compacta de temas inéditos, ele que mereceu a confiança contratual da Sony Music Portugal com pouco mais de meia dúzia de lançamentos efectivos, alguns dos quais entretanto retirados do YouTube. A camisola que Sebastião Bruges de Oliveira ostentava em homenagem à equipa por detrás do evento, apesar de larga, viu as costuras rebentar de talento mal se ouviram as primeiras linhas de “20.000 maneiras” — um dos vários temas que vão ter de esperar para poder ouvir, mas que não integrará o álbum de estreia ainda em desenvolvimento. 

O factor casa foi determinante para essa estreia imaculada, e o ambiente familiar  — marcado, sobretudo, pelo momento em que dedicou “Karma” ao pai, que estava presente — alavancou a confiança deste artista promissor. Não obstante, Azart mostrou ser tão artista em palco quanto em estúdio: acompanhado por Brunuxu, seu DJ e produtor (que mereceu os parabéns cantados em uníssono pela plateia, após a revelação feita pelo parceiro sobre o aniversariante, num dos vários momentos bem-dispostos da actuação), o rapper apresentou uma confiança fascinante, um à-vontade deslumbrante, uma presença de palco avassaladora, uma capacidade métrica e vocal impressionante, uma personalidade cativante, um carisma contagiante — um conjunto de características que, desde logo e sem falsas partidas, o distinguem como alguém em quem o factor estrela é flagrante e patente.



E ainda íamos na primeira parte de um concerto dividido em duas actuações — a principal estava reservada para a dupla Silab & Jay Fella, que atravessou o rio Tejo para apresentar, deste lado (depois de o fazer, do lado de lá, em Almada), o EP Ed Harris Tape, editado em 2020 e destacado pela equipa ReB como um dos melhores discos nacionais desse ano.

Nesta fase o registo descontraído ganhou alguma solenidade. Afinal, apesar desse projecto discográfico inaugural, esta parceria já tinha história no rap margem-sulense e veio desde cedo a cultivar um estatuto equiparável ao dos seus pares veteranos através das mixtapes que consolidaram o seu flavour inconfundível, o que se reflectiu na presença de várias caras (re)conhecidas do nosso panorama — de Tilt a Sensei D, o underground fez-se representar em cada metro quadrado.

Sem tempo, então, para aquecimentos ou ensaios gerais, entraram ambos com o alinhamento bem polido e começaram por percorrer grande parte do último trabalho, que chegou aos palcos em 2021. Numa troca directa, DJ Sahid agarrou os pratos, resguardado pelo guarda-sol que fez de guarda-chuva, e disparou cuts sucessivos a partir da rectaguarda. Jay Fella assumiu o comando da performance — como quem diz “mano, eu roubo o show, isso é certo” —, ele que, regra geral, é quem conduz a linha melódica de cada canção, munido de artimanhas linguísticas de orgulhar pioneiros nessa arte como Bambino e Sanryse, por cima de alguns dos beats carregados de groove e pulsante tensão fabricados pelos próprios.

Do contraste que resulta na simbiose entre os dois, viu-se, por sua vez, um Silab totalmente compenetrado na sua escrita, densa e profunda, focado em arrumar cada palavra no espaço certo, enquanto o companheiro as desarrumava graciosamente; mas a antítese estética em nada desequilibrou a química musical do par, a linguagem que juntos criaram para comunicar entre si: cada um ia amparando o outro em cada fôlego perdido, em cada respiração mal calculada, em cada ponto de encontro, passagem de testemunho de versos — mesmo na recta final em que cantaram, também, uma série de inéditos, presumivelmente pouco praticados ao vivo, mas irrepreensivelmente executados, completando o crescendo uniforme que abrilhantou um final de tarde cinzento.

A calma venceu a tempestade. Vencedor também foi o cartaz improvável e as respectivas cabeças: Azart confirmou os rumores que se vinham a intensificar e deixou de ser um segredo bem guardado, já que quem presenciou a sua actuação não terá saído com grandes dúvidas acerca do potencial explosivo que borbulha nas veias artísticas deste rapper de mão, pé, corpo-cheio. Quanto a Silab & Jay Fella, com uma confiança mais comedida, mas inabalável, confirmaram, também, o valor incalculável que o hip hop nacional lhes atribuiu e deixaram bem claro que estão à altura da barra que eles próprios elevaram. Depois de um susto prolongado até à última, as únicas águas que passaram pela Tranqui Sesh foram as do futuro. E o reflexo dessa corrente profética que separa as margens  da capital augura grandeza de parte a parte. 


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