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Publicado a: 02/06/2017

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[TEXTO] Rute Correia

Não é um disco cheio de singles. Não é um disco construído à volta de brutos refrões ou com melodias extraordinariamente orelhudas – não é que não tenha bons refrões nem melodias mais ou menos orelhudas, mas não é essa a sua premissa maior. Também não é um disco daqueles que chega assim de rompante e nos arrebata instantaneamente. Para lá do que não é, Língua Franca assume-se como um disco de reflexão, em que os pontos de vista se cruzam para lá do óbvio e a palavra revela-se como ponte entre os dois lados do Atlântico.

Para começar, importa situar o projecto. Ainda que a música tenha surgido de modo relativamente orgânico, Língua Franca começou como um desafio (ou devia dizer desejo?) da Sony Portugal e da Sony Brasil, duas importantes editoras nos seus respectivos territórios que procuravam lançar um álbum de rap luso-brasileiro. A equipa maravilha compôs-se com três produtores – Fred Ferreira, Nave e Kassin – e quatro MCs – Emicida, Rael, Capicua e Valete. Juntar talentos em supergrupos nem sempre corre bem. As valências e percursos incrivelmente distintos são, à primeira vista, os ingredientes perfeitos, mas sem receita para o sucesso o resultado deixa, na maioria das vezes, bastante a desejar. Felizmente, não é o caso aqui.

 



Com “Amigos”, o registo é inaugurado com uma ode aos mais chegados. A declaração de amizade é sentida e, apesar de não se debruçar propriamente sobre a relação entre os intervenientes, acaba por estabelecer uma entrada que faz apetecer mais. Afinal, lança um mote certamente partilhado com poucos outros álbuns – estamos prestes as assistir ao desenvolvimento de uma amizade. “Aos meus amigos de verdade / Seja no sol ou tempestade / Só age na sinceridade / Sempre por inteiro e nunca na metade”. De facto, o resultado é de uma honestidade como já se ouve pouco por aí. Não deixa de ser digno de nota que este seja também um dos poucos temas do disco em que se ouvem as vozes de todos os MCs.

Rimar a várias vozes é sempre um repto acrescido, ainda para mais quando não estamos habituados a isso. Com a excepção de Rael, que esteve uma década no quinteto Pentágono, os trovadores que aqui se apresentam estão mais acostumados às lides da singularidade, mas parece que isso não foi obstáculo à execução. A gestão de estilos e cadências chega bem orquestrada e, a julgar pela polidez com que uns e outros se entregam às rimas do jeito certo, ninguém diria que o disco foi praticamente gravado em apenas 10 dias. Ainda assim, é importante realçar que nem todos aparecem na mesma proporção: Capicua e Emicida aparecem em nove dos dez temas, Rael em oito e Valete em apenas três.

 



Sem ser um registo particularmente disruptivo tanto a nível lírico como sónico, Língua Franca estabelece-se desde o início como um registo focado numa abordagem positiva, ao invés de vincar críticas moralistas. Esta proposta do rap consciente não é nova, claro. Desde a sua génese – mesmo em contextos como o português, em que os rappers surgiam vindos de uma classe média – que o hip hop se definiu como um estilo ligado à intervenção. É sobre esse tom clássico do movimento e Língua Franca se ergue e demarca. Apesar de trazer uma invulgar fusão de géneros, mantém-se fiel à missão primordial de denúncia da injustiça social. Entre o funk carioca, as influências reggae e até uns toques de pop primaveril, o trabalho de Fred Ferreira é particularmente exemplar. Homem forte no estúdio, conseguiu a proeza de fazer com os que versos assumissem o protagonismo num disco recheado de instrumentais que em qualquer outro registo facilmente ofuscariam os versos. Isto não descurando, logicamente, o contributo dos produtores brasileiros, nem a direcção executiva de Evandro Fióti (irmão e produtor de Emicida).

Valete e Capicua explicaram ao ReB como os mundos em que o hip hop português e o brasileiro existem são quase paralelos. Mesmo com um oceano pelo meio, contudo, o português aproxima realidades que, não fosse um passado em comum, dificilmente se julgariam relacionadas. Sem grandes pretensões, mas com uma força que só talentos maiores têm, Língua Franca é à partida um álbum de culto. Assim, mesmo que a ideia de uma aproximação a convite seja mais lisonjeadora para os convidados do que para o público, não podemos deixar de agradecer pela concretização de um dos momentos mais ímpares do rap cantado em português.

 


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