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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 01/11/2020

10 anos depois e aproveitando o reaparecimento dos SALEM, Rui Miguel Abreu recupera dos seus arquivos uma peça sobre a banda sonora dos nossos pesadelos.

Terreiro das bruxas: dos SALEM aos Mater Suspiria Vision

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 01/11/2020

São as imagens que normalmente nos assombram e teimam ficar gravadas na memória, quando acordamos repentinamente de um pesadelo. Nessas ocasiões é raro recordarmos um som, menos ainda uma melodia ou um ritmo. E no entanto, na delicada economia do arrepio, a música, como tão bem compreendiam Alfred Hitchcock e Bernnard Herrmann, é um recurso absolutamente fundamental que amplifica emoções, coloca sentidos em alerta e descreve sem necessidade de qualquer palavra sentimentos como o desespero, a ansiedade e o medo.

Em 2010 surgiram na imprensa especializada diversos artigos que davam conta da emergência (palavra que pode e deve ser lida nos seus dois sentidos, neste caso) de um novo género musical. Sob a designação de witch house – ou drag – agruparam-se uma série de projectos que pareciam sobretudo interessados em explorar essa dimensão emocional e psíquica da música, reorganizando algumas coordenadas subterrâneas do hip hop de recente memória, sobretudo a escola de DJ Screw, mestre da cena chopped & screwed. Screw morreu em 2000, vítima do abuso de xarope para a tosse. Os opiáceos presentes nessa substância ajudam, provavelmente, a justificar a técnica de produção que Screw aprimorou no Texas, criando uma cena particular: beats lentos e arrastados, vozes com o pitch desacelerado, atmosfera alucinatória…

Uma década depois do desaparecimento de Screw, uma nova geração adoptou essa mesma vertigem pelos beats de progressão lenta, encharcando a música que cria em autênticos oceanos de reverb e eco, forçando a descolagem da realidade através de um total desrespeito pelas regras da fidelidade sonora – esta música é suja, carregada de ruído, distorcida. Não é nada fácil encontrar esta música cujos métodos de distribuição desafiam as ortodoxias da indústria, mesmo a mais alternativa: vídeos estranhos no YouTube com colagens efectuadas a partir de títulos obscuros da dimensão já esquecida do VHS, cassetes de circulação absurdamente limitada, nomes impossíveis de googlar – alguns recorrendo a símbolos impronunciáveis. Como um culto, parece que esta “cena” se quer manter secreta.



Os SALEM de King Night afirmaram-se como a mais óbvia referência desta cena que na idade da Internet não possui um foco geográfico definido. O álbum de estreia deste projecto, lançado na recta final de 2010, condensava as pistas do som screwed & chopped, um certo fascínio pelo r&b de brilho mais digital e acrescentava-lhes oceanos de sintetizadores sempre à beira da distorção, criando, em câmara lenta, sequências de poderosíssima carga emocional. O som de pesadelos saturados com milhões de frames retirados ao assalto constante de que somos alvo – na rua, na TV, nos ecrãs dos nossos computadores e smartphones. (Dez anos depois, os Salem, originalmente um trio agora reduzido à parceria de Jack Donoghue e John Holland, lançaram, de forma discreta e através do seu Bandcamp, um novo álbum. Fires in Heaven foi editado no passado dia 30 de Outubro e merecerá atenção da Oficina Radiofónica).

Na verdade, a “cena” witch house surgiu num momento particular da história e ligou-se a uma série de outros subgéneros e artistas e editoras – como a hauntologia ou as incríveis e densas viagens nas margens do dubstep e do techno conduzidas pelos Demdike Stare ou pelos Raime da Blackest Ever Black ou ainda pelo mergulho nos drones conduzido por projectos assombrados como Black Mountain Transmitter. Se juntarmos ainda a este quadro a influência (que em 2010 era mais visível do que nunca) das marcas aurais exploradas por John Carpenter nas bandas sonoras dos seus filmes ou pelos italianos Goblin nos “slash flicks” de Dario Argento – influência essa reclamada por gente como Steve Moore dos Zombi (cujo projecto paralelo Gianni Rossi cria bandas sonoras para filmes imaginários) ou pelos Ensemble Economique da Not Not Fun (editora cuja visão particular de psicadelismo é também informada pelas experiências de desaceleração da realidade enunciadas por DJ Screw) – começa-se a obter uma imagem da electrónica contemporânea carregada de negro.

Será esta a banda sonora de um planeta à beira do colapso político, económico, ecológico, religioso e moral? A cena witch house e as edições podem funcionar numa escala microscópica, mas a verdade é que toda esta música parece traduzir um momento menos luminoso da história da humanidade. E talvez em nenhum desses projectos, a negritude e as sombras sejam tão densas como nos misteriosos Mater Suspiria Vision. A Wire de Janeiro de 2011 descrevia-os como um colectivo norte-americano com “uma predilecção especial pelo cinemático”: “Enquanto as faixas arrastadas e desaceleradas dos MSV trincam no queijo bolorento das últimas três décadas, os seus vídeos colocados no VIMEO rebolam nos arrepios decadentes do horror dos anos 60 e 70”, escrevia Joseph Stannard num artigo em que a Wire reconhecia o horror como uma das forças criativas da música em 2010.



Os Mater Suspiria Vision editaram muita da sua música em cassetes, CD-Rs e DVDs de circulação extremamente limitada, muitas vezes com poucas dezenas disponíveis (tendo, entretanto, nestes últimos 10 anos, expandido bastante a sua discografia). No início de 2011, o grupo apresentou Crack Witch numa reduzida tiragem em LP (upgrade de uma edição originalmente disponibilizada em cassete efectuado pela label Living Tapes operada por um dos membros do grupo de black metal Yoga!) e ao mesmo tempo a Boomkat disponibilizava o single “Exorcism of the Hippies” (de idêntica micro-tiragem) enquanto os próprios MSV anunciavam na sua página oficial o lançamento de mais 300 cópias de Inverted Triangle, um outro LP disponível também numa reduzida tiragem de 50 exemplares que incluem, entre outros artefactos, uma Polaroid da aura do grupo…

Com o lado dois de Crack Witch ocupado inteiramente por um épico de 24 minutos de título “Trip 2012”, os Mater Suspiria Vision investem a sua música de uma qualidade cinemática pronunciada e de camadas pesadas de sintetizadores que escorrem pelo tema como lava na encosta de um vulcão. Sem estruturas definidas, esta música consegue ser livre, inventiva, profundamente criativa e traduzir de forma plena o tempo que a vê nascer. É música de agora, mesmo se parte das suas referências remetem para uma determinada memória cinematográfica. Esta música importa porque desafia convenções, porque encerra mistério e desconforto, porque nos obriga a fechar os olhos e imaginar outras realidades, porque mexe com as nossas entranhas, porque nos assusta e nos obriga a reflectir. Poderemos dizer isso de toda a música que nos rodeia?

Entretanto, um dia antes dos SALEM terem disponibilizado o novíssimo Fires in Heaven, os Mater Suspiria Vision apresentavam Crack Witch 3 que, obviamente, só podia mesmo arrancar com uma reinvenção do tema de abertura do já mencionado primeiro álbum, que aqui é retitulado como “Trip 2021”, uma espécie de versão dub do som dos nossos piores pesadelos, o som da reverberação do próprio medo, talvez uma banda sonora mais do que apropriada para os pandémicos tempos presentes, num momento em que o mundo se prepara para saber se a loucura prossegue ou se ainda haverá esperança do regresso a algo que se possa identificar com a cada vez mais difusa ideia de “normalidade”.


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