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Fotografia: Marta Bento
Publicado a: 16/12/2023

Projectar a beleza de forma radical.

Ry Vuh no SOMA’23: soar à imagem do desenhar

Fotografia: Marta Bento
Publicado a: 16/12/2023

A fechar o ciclo SOMA, no Salão Brazil, que cruzou imagem e som na oferta de diversas formações técnicas, da fotografia, ao videoclipe, ao design gráfico, passando pela produção de conteúdos, com credenciados protagonistas — Vera Marmelo, André Tentugal, Vasco Mendes, Joana Monteiro, Laetitia Morais e Ana Viotti —, teve lugar um concerto corolário da pertinente temática com o “grupo radical de trabalho sobre a beleza” Ry Vuh. Assim se apresentam João Guedes, Jorge Coelho e Jorge Queijo, para uma expressão visual-sonora de retroprojector, guitarra elétrica e bateria, respectivamente. Que outra formação poderia servir tão bem o propósito? Volvido um ano, retomar esse encontro, depois da passagem por Montemor-o-Velho no Space Festival’22. Ficou-nos o impacto do primeiro encontro, o encanto do vivido, socorrido das palavras de Michaux: “Sou dos que gostam do movimento, do movimento que rompe a inércia, que enreda as linhas, desfaz os alinhamentos, que me livra das construções. Do movimento como desobediência, como novo arranjo.” Dia da certeza do segundo encontro. Sabida a razão do nome: “Ry” de Ry Cooder — guitarrista e extenso compositor de bandas sonoras; “Vuh” de Popol Vuh — banda formada por Florian Fricke, Frank Fiedler e Holger Trülzsch, precursores do krautrock, associada à filmografia de Werner Herzog, Nosferatu: Phantom der Nacht (1979), entre outros. Ligar a imagem ao som, musicar o desenho, premissas maiores no trabalho radical em Ry Vuh.

Concerto com(o) poucos, (a)presentações singulares, em cumplicidades experimentadas. Palco cheio, num dispositivo tríptico a propósito, meia tela, formato quadrangular à razão da imagem em espelho de retroprojector. Coincidentes com a memória do vivido, guitarra à esquerda, bateria à direita, foco ao centro, trindade em palco estabelecida. Concerto para músicos sentados e operador gráfico de pé, de costas voltadas à plateia, em modo maestro, suportando canetas de acetato, fita adesiva, dedos apagadores, “batutas de condução à música desenrolada desde a imagem a preto e branco, no jogo permanente de opacos e transparência. Campo de trabalho em volta de vinhetas de acetato, em seis actos imagético-sonoros distintos:

#Máscara–Homem

Silhueta, como estátua/ baquetas de feltro percorrer as peles, som do amplificador convocando a guitarra diminuta/ lavrar desde o chão a imagem, pinceladas na textura conferindo um preenchimento sucessivo em redor da silhueta/ melodia em harmonias eléctricas desde a guitarra que adensam a imagem/ auréola feita protectora, imunizando a figura humana/ tapete suave desenhado nas baquetas/ toma lugar o fumo/ nuvem de som/ entorno sufocado não fora a bolha desenhada a propósito/ despertar radiante expresso em sulcos/ estriados desde a máscara humana/ mudança radical de cenário/ luz a entrar/ a guitarra serve o momento

#Miúdos

Lembras-te de dançar com arco?/ Projectada memória, crianças na felicidade do momento/ segue o som a feltro, a lembrar a suavidade do balanço/ são muitas, quase gracejam no olhar/ um a um somem dali/ imposição dos borrões de feltro de tinta branca/ mancha tornada negra/ a inversão da imagem/ lembrar a ilusão da cor branca/ Avante desafia a guitarra, amparada pela bateria, ao marcador obliterador/ são cada vez menos/ poucos restam no jogo do dançar/ inunda o opaco/ adensa o som a imagem/ negro final

#Círculo

A suspensão na leveza de um círculo/ A acutilância das baquetas no toque/ finura do traço/ palhetar das cordas/ aguda visão das notas alinhadas/ Tiradas opacas/ preenchimento centrípeto/ crescimento mineral/ Idas aos címbalos retemperam de cristalinidade a luz/ geode a cristalizar/ tensão amplificada/ olhar centrípeto no centro lumínico/ Desenha-se pós-rock/ ouve-se o cristalizar mineral da intervenção/ que finda em rodela negra

#Gotas

Esguichar súbito/ tinta opaca em derrame sónico/ espraiar, espreguiça-se a música/ anseia-se a secura no plano de acção/ Matéria à mercê do tempo/ Erosão contemplativa/ “Retiro pelo risco”/ e outra vez Michaux na memória/ sulcos, estrias desde o canal seco/ guitarrismo incisivo, obturante/ fulgor num baterismo a olhos fechados/ acetato tornado em placa de “xilogravura” na aparência do fazer/ Escavar em círculos/ tirar para deixar passar/ voltar à visão do circulo recorrente/ som e imagem circulares

#Quadrados

Mudar na forma/ quadrados desenhados/ ouvir a finura da linha que os desenha/ só por ver/ Rede enraizada na imagem em construção/ Enredo sonoro/ bateria tricotada, baquetas que soam a encontros de agulhas na passagem do fio/ guitarra que arpeja em construção/ efeito de remendos suspensos no éter/ Crescem como raízes/ opaca rede entrelaçada/ construção subterrânea

#Estrelas

Voltar ao de cimo/ ver as estrelas a formarem o plano/ levantar do chão/ A bateria desprende-se mais, quer fazer olhar alto/ as estrelas, são quase tantas/ perder a conta/ Ordem estrelar/ geometria celeste/ Supernovas, recém desenhadas/ Efémera visão/ a nova ordem da matéria/ Camadas interestelares/ a morte das estrelas/ ouve-se o som que paira desde o toque final dos instrumentos/ finda-se o firmamento/ respira-se o último fôlego/ apenas poeira cósmica restante no plano projectado

Ry Vuh é uma proposta para ser vista, reduzir ao apenas ouvir é perder a dimensão visual assumida.  No primeiro registo homónimo de 2022, disponível no Bandcamp, podem ser “apenas” escutados, como desafiam, em modo de instalação DIY efémera. Esperemos pelo anunciado segundo registo, em nova editora, que 2024 trará ao ouvido.


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