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Fotografia: Filipe Barreiro
Publicado a: 17/11/2022

Mover para desobedecer.

Space Festival’22 (Montemor-o-Velho) – Dia 2: desenhar pontos de fuga

Fotografia: Filipe Barreiro
Publicado a: 17/11/2022

Na segunda noite do Space Festival, no dia 12 de Novembro, para Montemor-o-Velho estavam programados Ricardo Jacinto (em violoncelo solo) e Ry Vuh, trio para guitarra eléctrica, bateria e retroprojector.

O palco do Teatro Esther de Carvalho volta a ser a sala onde tudo tem lugar e onde continua a haver lugar para quem aparecer. A meio cenário, um amplo címbalo de bateria, pendurado ao estilo de gongo, tem sensores e cabos que levarão sinal até a uma central receptora; deitado está um violoncelo, também ele apetrechado de mais sensores, e um espigão metálico extra que desce desde a base das cordas. A meio de tudo isto está uma cadeira vazia para receber Ricardo Jacinto. Violoncelista explorador que se apresenta em Montemor-o-Velho, músico que no Verão passado vimos e ouvimos, também a solo, no meio da refrescante cisterna da Faculdade de Belas Artes em Lisboa. Como também noutras ocasiões no seio do Medusa Unit, ensemble de música exploratória em que se ocupa de igual modo na procura incessante do som do violoncelo e no ressoar de objectos. Seria, portanto, esse o caminho da música a esperar ver e ouvir ali a juntar à sempre inesperada acústica envolvente. No decurso do ensaio de som, momentos antes, deliciou com excertos de Johann Sebastian Bach, mas seria apenas para aquecer… a música haveria de ser improvisada e de exploração do lugar. Crescia na sala a expectativa para ouvir aquela escultura em palco a interagir com o som. 

Após o ranger do soalho do teatro, pelos últimos ocupantes de lugar (não os ocupantes dos últimos lugares, infelizmente) começa o ataque sonoro de Jacinto ao instrumento. Com arcadas rompantes faz dos arredores da ponte do violoncelo o lugar tímbrico primordial, soa ao metal frio, ressoam as primeiras notas no dispositivo montado. O pé direito do violoncelista ocupa-se de uns quantos pedais que modulam o com que já por si é aguçado. Notamos o fio e sensor que lhe percorre o braço até ao arco, e parece haver um propositado binómio instrumentista-instrumento, ou pelo menos um circuito fechado, que conta para além destes dois com, continuemos a designar, escultura sonora. Ainda que o som primeiro surja do violoncelo, imediatamente entra em circulação entre a escultura, que é ressonante, a sala e de volta à alma do instrumento. A base do arco entre adiante a tilintar entre as cordas e daí emergentes adicionam-se às camadas que pairam no ar. Há uma construção cumulativa do som. Lugar estranho aquele, nunca estivemos ali. No entanto, há um conforto latente que se prende na aventura do impulso para o que há por vir. As arcadas nas ilhargas trazem espectros orgânicos ao lugar, e sentimos certo reconforto adiante com o pulsar através de acordes feitos. 

O ouvido de cada um é irremediavelmente a peça ressoante fundamental em tudo aquilo — aos estímulos sentidos em palco. Logo ali perdemos a noção do lugar, cada um terá o seu espaço, o colectivo esfuma-se. Estabelece-se um certo paradoxo, a experiência é conjunta na sala, porém a evasão é um processo em curso e individual. Há uma desfiguração que decorre do exercício pontual de fechar os olhos para ouvir e não ver a música a acontecer. Vemos um violoncelista a tocar e sem escutarmos o que pensamos ser um violoncelo é exploração sonora no seu lugar mais radical. À partida isso é um ponto estimulante, mas sem que isso seja um fim, apenas um meio para chegar a outro lugar. Jacinto alcança essa dimensão no decurso da sua prática, num processo construtivo assente na desconstrução sonora do instrumento. Decompõe, fragmenta, torna o som elementar para disso fazer uso simultâneo em colagens adicionais. É uma música que pede concentração e devolve abstração em doses iguais.  

Surge um aparente hiato sonoro na boca de cena, ainda paira som na sala, espectral, parasita talvez. Mas para Jacinto ocorre uma mudança para uma abordagem mais confortável e expectável para violoncelo. É claramente um segundo andamento, composto por fraseados quentes, de acordes que convocam à vibração todas as cordas. São agora melodiosas incursões a espaços familiares de aconchego. O pé direito de Jacinto fica em repouso e efeito sonoro fica somente refém do circuito  ressoante montado. Estabelecem-se diálogos entre o toque do instrumento e o que acústica devolve. É o músico a auscultar o espaço, a tatear por onde onde pode prosseguir. O caminho leva a uma certa encruzilhada, onde surge tensão. Nisto o ataque centra-se nas cordas graves, insistentemente, procurando o que podem aguentar daquele embate sonoro. Jacinto intensifica o gesto das arcadas devolve um estado feérico, o som do instrumento ruge com carnívoros em ameaça. À medida que a tensão das cordas é desprendida das cravelhas, ressoam para além da medida. Desmesura-se a situação e o braço do violoncelo serve também de estrutura ressoante. Imaginamos um ponto de fuga diante daquele cenário escancarado a ressoar tornando-nos presas, apenas daquele som. 



E como recuperar de tal embate? Com um Alvarinho (não é publicidade paga, prometemos), pois então. Lá dentro, em palco, preparava-se um retroprojector, guitarra e bateria.

Ry Vuh têm tanto de enigmático no nome como de incomum na formação, que conta para além da parte instrumental sonora (guitarra e bateria) com um outro instrumento, visual e imprescendível, um retroprojector. Para manipular tais dispositivos audiovisuais contam com Jorge Coelho nas cordas, Jorge Queijo nas peles e címbalos, e João Guedes na imagem. Definem-se como “um grupo de trabalho sobre beleza tranquilizante”. Premissa para retemperar o fôlego, depois da catarse sónica servida por Ricardo Jacinto momentos antes.

Há um ponto de luz enviado pelo retroprojector a meio do palco, projectando a quadratura do círculo na tela ou apenas um círculo num quadrado.  Seria o ponto de partida enigmático para o concerto. Entram os músicos e o desenhador-projeccionista. Ouvem-se os primeiros rasgos sonoros vindos de uma pequena guitarra amplificada com sinal sonoro em latente tensão, que Coelho se ocupará em diante. Nisto, Guedes destapa o círculo e coloca um acetato com uma silhueta humana ortogonal. Já Queijo empenha-se num ritmo apertado, produzido no tímbalo com recurso a umas baquetas com bolas de feltro. À medida que o som progride, avança o operador da imagem, desenhando a tinta permanente novelos de riscos contínuos com que emaranha a figura humana. Há dois canais sonoros que convergem na imagem, o da guitarra por um lado e da bateria por outro. No registo que o grupo disponibiliza no seu Bandcamp, lançam semelhante exercício de fruição para as peças A e B. Dois lados distintos também para se ouvirem em simultâneo. Tema adiante, com a progressão da guitarra a desenhar uma toada pós-rock pontuada em certas doses de languidez, a dar azo para a tal figura humana ser envolta numa neblina que resulta do esfregaço de dedos sobre as linhas desenhadas. Isto remete para uma atmosfera a fazer lembrar outros fumos em palcos.  

Tempo de mudar de quadro, para uma fotografia de raparigas a dançarem com arcos.  A preto e branco com aliás seriam todas as projecções. A guitarra passa para um registo, sem perder de todo a veia trazida, mais intrigante, a que as baquetas postas a deslizar em riste sobre os címbalos ajudam a potenciar. As figuras das raparigas começam a ser anuladas, uma a uma, sob borrões de tinta que o desenhador vai impondo. Esfumam-se sob o que resulta parecerem nuvens. É uma sublimação daquelas vidas em diversão, diz-nos o subconsciente tentando racionalizar o que vemos. Mudanças de cenário para um terceiro quadro em branco, ou melhor acetato em imaculada transparência que se vai alterando às mãos de Guedes por colagens de camadas negras. É a expressão do que a música devolve, dada a afluência com que riffs do guitarrismo de Coelho se espraiam no manto percutivo vindo do baterismo de Queijo. Chegam mais adiante a uma confluência, com a sobreposição absoluta das camadas resultando num quadro opaco. No derradeiro acetato sonoro da noite começavam por chover pingos grossos de tinta-da-china, gerando derrames numa desbunda aventura sonora que se havia transformado o acetato aos ouvidos do desenhador projeccionista. A música desenha-se em meandros e em curvilíneas trajectórias que derivam dos charcos negros acumulados. É um período de abundante movimento sonoro, e o acetato vai-se preenchendo pelos caudais trazidos pelos dedos a deslizar a tinta até que a fluidez estanca. Depois é o estio que perdura, e mais tarde permite que canais erosivos se estabeleçam. A paisagem por isso é efémera, transitória, fecham-se ciclos e surge um círculo maior, desenhado pelo vazio deixado ao passar do dedo que levou a tinta seca. Há nisto um fim de princípio. Aqueles traçados, movimentos de linhas levam ao artista e poeta Henri Michaux, que escreveu tão bem a propósito em Émergences/Résurgences (1972): “Eu o que vejo é sobretudo o movimento deles. Sou dos que gostam do movimento, do movimento que rompe a inércia, que enreda as linhas, desfaz os alinhamentos, que me livra das construções. Do movimento como desobediência, como novo arranjo.”

É inegável que a imagem é um agente facilitador quando presente na música de raiz improvisada, de carácter exploratório e abstracto. Confrontando reflexivamente ambos os concertos da noite temos a evidência disso mesmo. Aceitamos “a beleza tranquilizante” que tenta descrever a acção de Ry Vuh à partida, contrapondo com o outro belo, inquietante porém, trazido por Ricardo Jacinto. Mas devemos acrescentar que as imagens desenhadas em Ry Vuh podem ser experienciadas, pela sua natureza abstracta efémera, como um elemento cumulativo e, nesse caso, facilitam, assim como na música, o alcance de pontos de fuga.  


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