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Fotografia: Hugo Lima & Igor Aboim
Publicado a: 09/06/2023

Um serão em cheio, sem cheias.

Primavera Sound Porto’23 — Dia 2: danças e abalos emocionais com ROSALÍA, Fred again.. ou Arlo Parks

Fotografia: Hugo Lima & Igor Aboim
Publicado a: 09/06/2023

A chuva continua sem nos dar tréguas, mas o estado depressivo de Óscar parece desvanecer-se à medida que o festival se desenrola. Talvez a elegância de Arlo Parks, o pulso de Gazzi, a entrega de Fred again.., a paixão de ROSALÍA e a verticalidade de VTSS e LSDXOXO tenham contribuído animicamente para o alívio da precipitação ao longo da noite. E ainda a romaria no Parque da Cidade do Porto vai a meio. Hoje, se tudo correr como esperado e o cenário meteorológico não mudar de figura, as contas serão quase a dobrar. Mas até ver o saldo tem sido, apesar de tudo, francamente positivo.



Se a música é uma das manifestações mais poderosas através das quais todo um universo de narrativas podem ser transformadas, podemos confirmar que Arlo Parks se tornou (a uma velocidade praticamente incalculável) dominante daquela que é a arte de trazer luz nos momentos de maior profunda escuridão.

A cantora, reconhecida e premiada com um Brit Award em 2021 por ser a Melhor Revelação Britânica, e anteriormente vencedora também de um Mercury Prize com o seu álbum Collapsed in Sunbeams,  subiu ao palco principal do Primavera Sound na passada quinta-feita/ontem para nos guiar por um caminho através do qual é possível conquistar e ultrapassar os maiores obstáculos. Arlo Parks é, antes de mais, portadora de todo um semblante e voz inconfundíveis, manifestantes de uma ingenuidade que não lhe pertence. A artista de apenas 23 anos revela, não só através das suas músicas mas também da própria atitude em palco, uma maturidade emocional única, que explica o facto de tantos artistas terem notado a sua presença e a tenham apoiado na estrada que percorre atualmente como uma das artistas que melhor estão a transformar o r&b britânico.

Se qualquer membro do público, durante todo o concerto, decidisse fazer a viagem de olhos fechados, conseguiria perfeitamente tê-lo feito apenas ao comando da voz da cantora – podia ter sido a capella e teria sido mais que suficiente, Parks podia ter estado sozinha em palco durante toda a performance e não teríamos dado conta da falta de nada.

Pelo percurso calmamente percorrido através de canções como “Weightless”, do seu mais recente álbum My Soft Machine, e revisitando o seu mais aclamado trabalho através de “Caroline”, Arlo Parks provou ser uma storyteller nata que transforma tempestades em oásis, cujo timbre acompanhará para sempre os cenários mentais mais idílicos que podemos visitar quando ouvimos qualquer um dos seus álbuns. Agradecida e em total estado de sinergia e entrega para com o público que permaneceu diante de si durante toda as gotas de água que caíram ao longo aquela hora, a cantora, antes de terminar em “Softly”, admitiu que era o melhor espetáculo que alguma vez tinha dado e, segundos imediatamente a seguir, as nuvens passaram para deixar entrar um arco-íris que cruzou todo o recinto e nos trouxe a confirmação de que a esperança é empatia no seu estado mais puro.

— Maria Carvalho



Às portas de uma pandemia mundial e de dois anos de pura transição entre “dentro” e “fora”, “poder” e “não-poder”, Gazzi trouxe até nós In The Club – um álbum de música de dança pronto a tocar em qualquer formato rave, carregado de breakbeats e de valor incalculável (principalmente por, bem perto do momento em que tracks como “Stay With Me” chegaram até nós, o clubbing ter parado de funcionar).

Com um portfólio em produção trabalhosamente inigualável e bastante eclético, o produtor andaluz faz-se ouvir como Gazzi desde então e tem vindo a cruzar todas as culturas e estéticas sonoras que o mundo tem para oferecer. Para nós, tê-lo a abrir o palco BITS foi a honra que qualquer entusiasta da música eletrónica procura ter. Eram onze horas da noite quando o produtor subiu ao palco para fazer um DJ Set moderado na dose de BPMs, no entanto pronto para abrir uma pista que, a seguir, receberia ainda artistas como Uniiqu3, Teki Latex, e LSDXOXO.

Apesar dos visuais terem variado entre estados naturais e figuras anatómicas, foi na própria estética matricial que o DJ set se fez mais destacar. Entre o future garage que lhe conhecemos, por soar bastante aproximadamente de produtores como Burial e Four Tet, Gazzi trouxe para o Primavera Sound uma seleção refinada de misturas que fizeram ouvir desde a voz de Laurie Anderson em “O Superman”, como também um glimpse de Tokischa em “KILO”. Por vezes, as profundezas do electro foram um lugar rapidamente interrompido pelas batidas latinas e mais suadas – claramente o warm up perfeito para aquilo que estaria prestes a acontecer no palco principal.

— Maria Carvalho



Vamos ser claros: Fred again.. está bem longe de ser o average produtor/DJ que por aí anda na estrada. Na verdade, e contra algum tipo de expectativa menos positiva, inglês nem DJ foi na noite de ontem — teve o grande Tony (we love you Tony!!!) ao seu lado a desempenhar esse papel e vestido a rigor com uma camisa da selecção nacional de futebol portuguesa. Foi fácil perceber ao que vínhamos: a entrada foi auspiciosa, com o também músico a sentar-se à frente de um teclado e de um microfone, acompanhado pela projecção de algumas mensagens escritas em português, nas quais dava conta da importância destes últimos três anos na sua carreira e agradecia a todos os presentes que ali se juntaram para o ver. Às 23h20, no palco Vodafone, a chuva ainda caía com muita intensidade, embora fosse dando algumas tréguas a breves espaços, que nos iam permitindo retirar os carapuços para melhor escutar a música.

Olhando ao nosso redor, a moldura humana era imensa e parecia ter apanhado toda a gente de surpresa, incluindo o próprio artista. Parecíamos estar diante um espectáculo de palco principal. Entre temas, Fred não se fartou a de agradecer pela nossa presença, e nós nunca nos cansámos de o aplaudir e de o acompanhar, cantando e dançando como se não houvesse amanhã. A certo ponto refere o que lhe chegou a passar pela cabeça horas antes do espectáculo: “Estava andar de carro pelo Porto e ao ver esta chuva pensei mesmo que não ia cá estar ninguém para me ver.” Mas nós não só estivemos como aderimos em massa. E embora aquela multidão cheia de amor para lhe dar tivesse o seu quê de inesperado, a verdade é que até casa bem com o estatuto daquele que foi, provavelmente, o músico cuja cotação mais subiu em plena pandemia. Desde 2020, Fred esculpiu uma data de temas de dança conceptuais, em jeito de diário, que combinavam com o clima de isolamento social que o mundo atravessou; colaborou com gente tão distinta, desde Headie One a Brian Eno; e passou por alguns dos maiores palcos físicos e digitais, entre eles o Coachella e o Boiler Room — neste último, imagine-se, ultrapassou até o número de visualizações de KAYTRANADA (que há 10 anos assinou um dos melhores sets de sempre da plataforma) em apenas 10 meses. É obra.

Em palco, o londrino gozou de uma área de acção bastante grande. Além do já referido teclado e microfone, teve ainda o que parecia ser uma Maschine plantada numa zona mais fronteiriça, com uma câmera bem focada na zona dos pads que transmitia para os diferentes ecrãs toda a sua perícia a montar temas ao vivo, através do disparo de samples com as pontas dos dedos. Era também nos grandes ecrãs incorporados na estrutura do palco que recebíamos muitos dos seus “convidados”. Fred é uma pessoa que recorre muito aos arquivos do YouTube para encontrar as vozes (e as frases) certas para servirem de base às suas canções e não esconde nunca as suas fontes, exibindo os rostos daqueles que, indiretamente, acabam por contribuir para o seu génio. Uma delas, a que mais ressoou deste lado, pertence a Sabrina Benaim, que num pequeno acto de slam poetry dedicado à sua mãe procura explicar os efeitos da depressão e da ansiedade — “Mom I am the party! Only I am a party I don’t wanna be at“. Sim, este tipo de música electrónica de dança vive de poucas palavras, mais de batidas, mas o criativo britânico escolhe-as todas a dedo e procurar trazer para o centro das pistas alguns dos problemas que mais assolam a sociedade actual.

Na setlist que trouxe ao Primavera Sound, não faltaram bangers absolutos, como são os casos de “Rumble” (com direito a duas versões distintas), “Jungle”, “Baby again..” ou “Merea (We’ve Lost dancing). Já as emoções vieram à flor da pele à boleia de “Kyle (I Found You)”, “Angie (I’ve Been Lost) ou, claro, “Delilah (Pull Me Out Of This)”, esta aqui utilizada como faixa de encerramento do concerto. Já perto do final, Fred pediu que acendessemos os isqueiros ou as luzes dos telefones e quase se emocionou ao ver a imagem que tinha criado diante de si. “Eu consigo ver-vos aí ao fundo!” Disse entre um riso emotivo, dando a perceber que aquele mar de gente se estendia ainda bem para além do local onde estávamos posicionados. A performance foi maravilhosa, o seu repertório é mágico e as palavras que debitou ao microfone, muitas das vezes levando a mão ao peito, pareceram sempre sinceras, tendo tornado esta actuação de pouco mais de uma hora numa verdadeira comunhão em que só faltou mesmo termos todos dado as mãos. Antes de se ir embora recebeu, garantidamente, uma das maiores ovações de todo o festival.

— Gonçalo Oliveira



Talvez vir a um festival não passe disto: apanhar num mesmo dia um lote de artistas que dificilmente veríamos em Portugal a solo, encontrar várias caras conhecidas a trezentos quilómetros de casa, ceder mais ou menos de bom grado à inflação imposta pelo custo de oportunidade de um cachorro quente em final de noite e de um TVDE de madrugada, e darmo-nos por satisfeitos no final das contas. Até há coisas piores, veja-se bem. E não ficar de medidas cheias com mais de uma hora de Kendrick Lamar em palco, ao que nós chegámos…

Talvez não se possa pedir muito mais que isto, pensávamos nós ontem. Hoje, a conclusão, como o estado do tempo, varia. Se, no primeiro dia de festival, o melhor rapper da sua geração nos deixou de água na boca e da cabeça aos pés, no segundo, na hora de ver ROSALÍA, nem sinal de chuva nem de travos amargos ou agridoces. E também tínhamos, à partida, termo de comparação de peso para o que se viria a passar na hora seguinte: não só estivemos na última passagem da cantora catalã por Portugal, como foi precisamente nesse dia que, a título pessoal, compreendemos a dimensão real que um espectáculo de uma estrela pop que não se enquadra bem no género pode ter.

Também ela de regresso (quatro anos depois) ao Parque da Cidade, o seu “Olá, Porto” soa especial pelo sotaque imaculado e pela alegria na saudação. E à semelhança do que fez em Lisboa (e presumivelmente em Braga dias antes) em Novembro passado, a artista espanhola, qual Capitã América Latina, não se fica pela meia dúzia de palavras decoradas para português ver: viria a falar-nos na nossa língua umas quantas vezes ao longo da actuação, sem nos pedir emprestado o “portunhol” por cá inventado.

Agora, quem vinha à Invicta a contar com o que viu na capital não ficou, seguramente, desiludido. Até os mais cépticos se terão rendido mal o ranger da Kawasaki anunciou a entrada da MOTOMAMI, mais oito bailarinos, todos de capacete posto. “Chica, ¿qué dices? Saoko, papi, saoko”… O resto, quem já viu este filme está mesmo a adivinhar.

O cenário não difere por aí além daquele que a tem acompanhado na tour dedicada ao seu último longa-duração. O alinhamento, as coreografias, o guião, a realização em tempo real, o contacto próximo com a primeira fila, as trotinetes, os óculos à motoqueira, a água no cabelo, a cadeira de barbeiro, o pano de fundo Windows XP, idem. É uma versão compacta das grandes paragens da Motomami World Tour, mas — e talvez por isso mesmo — mais apurada. Direito a “CANDY”, “LA FAMA” (sem The Weeknd), “CHICKEN TERIYAKI”, “HENTAI”, “BIZCOCHITO”, “DIABLO”, “CUUUUuuuuuute” ou “LA COMBI VERSACE” (sem Tokischa), mas também “Linda” (da própria Tokischa, que sobe hoje ao palco Plenitude), “Con Altura” (sem J Balvin), “LA NOCHE DE ANOCHE” (sem Bad Bunny), “Beso” e “Vampiros” (sem a cara-metade Rauw Alejandro), “Hero” (de Enrique Iglesias) ou a incontornável “MALAMENTE” (de El Mal Querer). E mais umas quantas que vos poupamos à maçada da listagem. Tudo isto em pouco mais de uma hora com muita voz, muita dança, muito vento no cabelo e muito namoro com as câmaras. Nem a chuva se atreveu a meter-se no caminho desta femme fatale.


— Paulo Pena



A encerrar o palco BITS, na primeira de três noites carregadas de nomes promissores, VTSS e LSDXOXO apresentaram a uma audiência acelerada e sedenta de festa um b2b, acontecimento improvável de acontecer por todos os clubes do mundo por onde têm vindo a apresentar o seu trabalho. VTSS, que recentemente se tem feito ouvir pelos palcos mais conhecidos da Europa, acompanhou LSDXOXO, referência internacional cuja faixa “Sick Bitch” se tornou viral por toda a comunidade queer e raver que circula pelos lugares e pistas de dança — vagueou-se pelo hyperpop, o techno industrial e, em horas mais tardias, com a pitada certa de trance misturada com algum psicadelismo.

Para quem já teve a oportunidade de ver o show de qualquer um dos dois DJs certamente não hesitou em marcar presença na tenda eletrónica do festival para, depois do set explosivo e magnânimo de Teki Latex, esperar ritmos acelerados, por vezes afrodisíacos e garantidamente intensos. No entanto, para quem não conhecia o que aí vinha, foi notória a confusão gerada entre o público. Apesar de uma seleção musical bem curada, foi notória uma performance pouco empática por parte da dupla que, principalmente por VTSS, que é conhecida por carregar um carisma inconfundível na cabine, acabaram por não cumprir as expectativas que lhes tinha sido estabelecida (pelo menos por quem já os conhecia).

— Maria Carvalho


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