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Fotografia: Manuel Abelho
Publicado a: 28/11/2022

Depois de uma paragem em Braga, a digressão mundial do mais recente trabalho da artista espanhola passou por Lisboa.

ROSALÍA na Altice Arena: a verticalidade de uma MOTOMAMI

Fotografia: Manuel Abelho
Publicado a: 28/11/2022

Na última página do booklet do vinil de MOTOMAMI, ROSALÍA faz uma longa lista de agradecimentos (que vão desde os pais e avó até a Pharrell e Q-Tip), mas as duas primeiras linhas são dedicadas a Deus e, mais importante e logo de seguida, à América Latina “pela sua arte e por tanta inspiração”. A primeira percebe-se por várias razões e a mais óbvia é: uma voz daquelas só pode ser benção divina. A segunda só faria sentido acontecer neste novo disco e saímos com mais certezas disso depois da actuação deste domingo à noite na Altice Arena, em Lisboa. Já sabíamos que a artista espanhola dava shows de elevado calibre — basta recordarmos o concerto no NOS Primavera Sound em 2019 –, mas agora a festa é outra e isso deve-se, em grande parte, a esses balanços latinos (do reggaeton, do dembow ou da bachata).

No entanto, o fascínio da cantora pelas culturas do mundo inteiro não tem grandes barreiras, algo perceptível em, por exemplo, uma faixa como “HENTAI” ou no tema de abertura para este espectáculo, “MATSURI-SHAKE“, da banda japonesa Ni Hao!, uma malha entre o noise e o punk que servia de introdução para “SAOKO” e a entrada dos bailarinos e da própria, todos equipados a rigor com capacetes personalizados. Os motores de uma mota invisível começam a fazer-se ouvir, o capacete sai da cabeça da protagonista e, instantaneamente, vêm colados os berros de uma arena pronta para celebrar. Depois de “Chica, ¿qué dices?”, o histerismo justificado transforma-se em palavras concretas. Estávamos todos prontos para o que se seguiria.

Quando se chega ao nível em que ROSALÍA se encontra actualmente, qualquer movimento justifica uma reacção efusiva. E isso pode ser algo tão simples como o que mencionámos anteriormente ou, claro, o momento inicial de “BIZCOCHITO”, em que simula mastigar, de forma exagerada e engraçada, uma pastilha elástica. Para quem está fora das redes sociais, o acto passará por uma mera teatralidade, e é, na sua génese, mas a verdade é que a viralidade dessa acção (que nasceu de um improviso em ensaios) numa plataforma como o TikTok é que acaba por colocá-la em destaque. A Internet também molda a realidade e há estrelas pop que percebem isso melhor do que outras, o que é o caso de ROSALÍA, que também reflecte a sua idade e o mundo em que vive na forma como é filmado e apresentado o concerto: muitas vezes na primeira pessoa e na vertical, como se quem estivesse em palco também só largasse o telemóvel em raras excepções. Quanto da vida não é experienciada assim hoje em dia?

Essa relação com as câmaras é uma das grandes diferenças em relação, por exemplo, àquilo que apresentou mais para norte há três anos, não só porque existe esta maneira de se mexer que é condicionada por esse factor, como há ainda um à-vontade diferente na hora de interagir com elas, que tanto se traduziu em cantar directamente para elas, colocar uns óculos com a maior das pausas ou, por puro divertimento, embaciar a lente algumas vezes. Este tipo de nova desenvoltura também lhe permitiu descer do pedestal e ir trocar barras de “LA NOCHE DE ANOCHE” com alguns fãs que se encontravam na primeira fila ou, lá do cimo, interpretar “HENTAI” (versão câmara frontal e fundo pastoral reminiscente do Windows XP) ao piano depois de, momentos antes, decidir molhar o cabelo e sacudi-lo. Aproveitando que se fala de instrumentos musicais em que pegou, uma guitarra também lhe caiu nos braços a certa altura. Houve espaço para tudo, até para se deitar e cantar “LA COMBI VERSACE” ou dizer o seu abecedário com um fã, Alberto.

Outra das mudanças em relação ao que vimos no Parque da Cidade do Porto foi a saída de cena de El Guincho, produtor que continua bastante presente nos créditos de MOTOMAMI, abrindo-se ainda mais espaço para que os bailarinos pudessem brilhar — e isso aconteceu quase sempre, com destaque para a moto-humana que formaram para ROSALÍA se sentar confortavelmente para nos entregar o tema-título.



Na primeira vez na capital portuguesa, a artista catalã também piscou (discretamente) o olho a El Mal Querer, causando uma erupção total, talvez das maiores da noite, com “MALAMENTE” (ou também se escutou “PIENSO EN TU MIRÁ”). Nesta estreia aproveitou para dizer que há muito que queria actuar em Lisboa e retribuir o amor que lhe dão. Missão cumprida.

De “Con Altura”, um importante momento de viragem na carreira da espanhola, a “TKN”, passando pelas mais recentes “La Fama” (o colega The Weeknd voltaria à conversa no remix de “Blinding Lights”) e “Despechá” (que trouxe bastante gente para cima do palco), uma bagagem carregada de hits deu bases para se instalar por várias vezes o baile desregrado — e interpolações de “Papi Chulo” e “Gasolina” serviram de apontamentos elegantes e uma espécie de tributo à tal América Latina que a inspira.

Como não poderia deixar de ser, o flamenco imiscui-se na conversa aqui e ali, essa cultura que a artista abordou inicialmente de uma maneira mais tradicional em Los Ángeles, disco que trouxe para o espectáculo através de “De Plata” (com guitarra eléctrica a substituir a acústica que se ouve na versão de estúdio e uma saia negra com uma longa cauda presa à anca só nessa música), e que desconstruiria um ano depois em El Mal Querer. Os jeitos, a dança, a voz, as palmas e a emoção continuam lá como no primeiro dia. Estão é inseridos noutras narrativas.

Só que ROSALÍA não é unidimensional, nem bidimensional; nela existem muitas dimensões, e todas elas cabem na de ser uma estrela pop que é verdadeiramente visionária e disruptiva, não sendo apenas regurgitadora de tendências que vão e vêm. Há um estudo cuidado para esta abordagem (bastante rap na sua origem, pensando no sampling em concreto) que implica unir sons tão diferentes, de sítios tão diversos, com tantos músicos e produtores envolvidos, e não perder a identidade. É dessa forma que se chega ao final de um disco a citar Burial (que tinha samplado Ray J nessa citação em “Archangel”, já agora) e a samplar Soulja Boy, Soytiet, entre outras tantas coisas, e mesmo assim não se deixa de sentir ROSALÍA a cada segundo.

Quando não estava a mostrar argumentos vocais para emocionar (fê-lo mais uma vez no final com “SAKURA” na companhia de um amigo de longa data), a cantora divertia-se, e muito. Ter entrado de trotinete no encore para “CHICKEN TERIYAKI” foi a maneira perfeita de antever aquilo que “CUUUUuuuuuute” confirmaria no encerramento: uma MOTOMAMI tem de saber desbundar na mesma medida que entende a necessidade de parar e comover(-se). Que consiga fazê-lo num só espectáculo é prova de que estamos perante uma artista com um talento extraordinário.


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