Experienciar, respigar, guardar, compilar. Houvesse um pássaro criterioso que sobrevoasse os caminhos do rap, migrasse pela música de Angola, Cabo Verde e Moçambique, que fosse capaz de escolher o que de melhor encontrou por esses voos altos e rodopiantes: esse pássaro poderia chamar-se Plutonio. O autor de Histórias da Minha Life (2013), Preto & Vermelho (2016) e Sacrifício: Sangue, Lágrimas, Suor (2019), acaba de lançar um novo álbum duplo: Carta de Alforria. Em 22 músicas, as asas de Plutonio sobrevoam o que de melhor existe e existiu no mundo do rap. Respigou, acumulou, misturou e fez nascer o brilho sonoro que, pensando em José Mário Branco, vem de longe, de muito longe, e vai para longe, para muito longe, quer no som instrumental, quer no teor da palavra, ambos ricos de significado. Carta de Alforria, editado pela Bridgetown Records, é um mundo interior imenso que se liberta para a vida e, por isso mesmo, é um disco que não poderia ter melhor nome.
Se Sacrifício: Sangue, Lágrimas, Suor (2019) consagrou Plutonio enquanto artista, Carta de Alforria é o álbum que eleva o rapper do Bairro da Cruz Vermelha (Cascais) para a categoria de “especial”, com caraterísticas invulgares que demonstram a capacidade muito criativa e extremamente sensível deste músico. Sob determinado prisma da história e a esboçar um retrato social e psicológico, Carta de Alforria é o encontro com o mundo de Plutonio e também com muitas outras vidas que aqui vão sendo desenhadas, uma grande parte do país que segue com as suas angústias, amores e desamores, injustiças, limitações: as que se viram privadas dos seus mais elementares direitos, as que lutam diariamente para sobreviver.
Nos dias de hoje, em que é menos comum ouvir algo do início ao fim, escutar de uma assentada o álbum duplo com as suas 22 faixas é um risco que vale a pena correr. Não há tédio ou repetição, de uma para outra faixa o disco segue por diferentes ambientes, desde melodias a aproximarem-se a uma forma de balada, até diversas estéticas musicais dentro do rap — trap, drill, afroswing — mas também com a presença de géneros como o funaná, kizomba, kuduro, breakbeat, drum n’ bass ou mesmo alguma influência do gospel (em “Dissabores”) — a fusão perfeita que realça ainda a grande versatilidade de Plutonio enquanto intérprete. Aqui, um importante destaque para os produtores musicais presentes: Charlie Beats, DJ Dadda, Migz, Progvid, Ariel, Sebz Beats e X10, a contar ainda com a participação especial de Sam The Kid, no “brinde” final, “Carta de Alforria”.
O álbum abre com um verso muito forte, a sublinhar e denunciar um problema estrutural que existe em Portugal — “Eu fui discriminado no País das Maravilhas…”, e segue para outras frases como “Mas só fica no barco quem aguenta / Pois, depois de ver o Cabo das Tormentas / Eu cheguei à conclusão / Liberdade é ilusão… Igualdade é uma lusão…”; e “liberdade é só uma vaga sensação”, aqui através da voz de Chullage, num sample da música “Igualdade É Uma Ilusão”. Segue-se “Casa Melhor”, onde Plutonio demonstra o flow dinâmico que o caracteríza e a sua versatilidade, ao explorar fonemas, linguagem mais caraterísticas do trap. “Interestelar” é um elogio ao amor, uma declaração e um ato de sedução, um apelo à autenticidade e intuição, através do uso de várias metáforas alusivas ao espaço.
Em todo o disco existem momentos para refletir, questionar, mudar. Constatando a sua excepcionaldade, e pensando o rap de uma forma abrangente, lanço o desafio ao seu autor, Plutonio, e a outros rappers, para pensar se não é o momento de questionar e seguir outro caminho relativo à construção de algumas das letras que, por vezes, no seu conteúdo e de uma forma geral, inferiorizam a mulher.
A essência da mensagem deste álbum é de poder, nomeadamente para aqueles que vêm de um lugar semelhante ao deste artista. É um espaço de afirmação, de frases muito ricas e diversificadas, com especial destaque para “Como 1 Rei”, cuja letra, analisada ao pormenor, levanta várias questões e temas, construindo um verdadeiro tratado:
“Longe de tudo aquilo que um dia me tirou paz
Fazendo o meu dinheiro, dinheiro a mim não me faz
Tenho objetivos e com Deus vou prosseguir
Mentira, se eu disser que não achei que eu era incapaz
Lembrei, brodas de infância que eu não vi mais
Uns presos, outros descansam em paz
Tristeza custa saber aceitar
Caminhando p’rá frente sem esquecer de olhar p’a trás”…
“Hoje eu ’tou aqui, tu nem tens noção
Sou herdeiro de uma luta doutra geração
Continuo aqui, dói no coração
Me’ma honra, me’ma luta, desde a abolição
Fundo do poço, vi a luz divina
Sabia, aqui a chance era de uma em um milhão
Tantos anos de história, sofrimento, humilhação
Ao me’mo tempo abençoado, sou filho da escravidão”
Estes são alguns dos exemplos da grande qualidade criativa de Plutonio. Mas, para um ouvido atento, haverá muitos mais e para diferentes gostos.
O disco termina com “Carta de Alforria”, onde Plutonio caminha em retrospetiva pela sua vida, em modo autobiográfico, sobre o traço musical e característico do sábio Sam The Kid na produção.
Carta de Alforria é um disco de mestre, pois consegue em simultâneo chegar ao grande público parecendo, aparentemente, mais leve ou mainstream, e carregar em si a densidade forte na mensagem que transmite e na sua qualidade técnica e musical, quer ao nível da produção quer da interpretação. É um grito à diversidade e à liberdade que se expressa na comunhão de diferentes estilos.
A consagrar este lançamento, o voo de Plutonio segue firme com concertos no MEO Arena — a 28 de Fevereiro de 2025, data que já se encontra esgotada e que, devido à demanda do seu público, terá direito a segunda dose no dia 3 de Março de 2025.
Experienciar, respigar, guardar, compilar — a humildade de um artista que se fez grande e termina este excelente trabalho poético de forma bonita e delicada. No final de “Carta de Alforria”, Plutonio diz:
“Yo, e embora tu não possas voltar atrás
Fazer um novo começo
Tu podes sempre começar agora e fazer um novo fim
Porque a vida é apenas um pequeno ruído
No meio de dois grandes silêncios
Um brinde a todos os meus rapazes
Que apesar de tudo se mantêm reais
Se mantêm fiéis, se mantêm invictos, se mantêm livres
You know? Às vezes a liberdade
Não é só uma questão de espaço nem de tempo
É acima de tudo uma questão de mentalidade
Eu digo isto p’a toda a gente que vem de baixo
E faz um esforço p’a se manter em cima
E ir em busca daquilo em que acreditam
Às vezes até passam por malucos
Mas tipo, não há louco que não acerte
E nem há sábio sem loucura”