pub

Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 06/05/2024

Ao som do bailecore.

Pedro Mafama: “Eu sei o que quero fazer pelo meu país”

Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 06/05/2024

Pedro Mafama está a poucos dias de tomar o Campo Pequeno, em Lisboa, com o seu projeto de bailecore e há um entusiasmo notório no discurso de um artista que o Rimas e Batidas viu crescer e cujo percurso nos surpreendeu a todos. Engana-se, no entanto, quem nas próximas linhas espera apenas encontrar satisfação, euforia ou autocontentamento. A alegria é evidente, claro, mas nesta longa entrevista haverá também lugar para muita autorreflexão, dúvidas e hesitações sobre o caminho feito e o futuro. É o que sucede, geralmente, com quem leva os gestos artísticos a sério e aproveita as entrevistas para pensar em conjunto e não apenas para reproduzir respostas prontas e instantâneas. 

Aproveitando a disponibilidade, viajámos pelo caminho feito, passando pelas ideias fundadoras do seu projeto, pelos desafios que se precipitaram e pelas linhas de continuidade que o músico diz existirem numa trajetória centrada no repensar do país, da sua cultura e das histórias que contamos sobre nós próprios. Uma viagem longa, portanto, com alguém que não desiste de viver a vida intensamente, mas que continua empenhado em fazer música que passe no Citroën Saxo de alguém — e de preferência num volume bem alto. 

Pelo caminho passámos Por Este Rio Abaixo e os seus reflexos nos debates sobre a identidade nacional e na relação com a tradição; desviámo-nos pelas torções ao conceito de música popular e ao potencial futurístico da música de baile; e não ignorámos os debates difíceis, mas imprescindíveis, sobre apropriação cultural e a difícil relação com um país pelo qual queremos lutar, mas que foi e continua a ser profundamente violento. Ah, e quase nos esquecíamos que também por aqui se falou das maravilhas do azeite, do que revelam ou escondem os sorrisos e também de sons de carros elétricos que fazem lembrar naves espaciais futuristas. Afinal, como aqui defende, o seu projeto de bailecore não procura o conforto da nostalgia, mas a vertigem do futuro. E se quiserem também antecipá-lo, apressem-se a entrar na nave que parte já nesta sexta, dia 10, às nove horas, da estação orbital do Campo Pequeno.



Estás a poucos dias do teu primeiro concerto no Campo Pequeno, uma das maiores salas do país. Antes de vir para aqui, estava a ler algumas das tuas entrevistas de há 7 anos, em que dizias, por exemplo, que antes da “Jazigo” chegaste a duvidar do sonho, ou em que falavas de oportunidades fundamentais para ti, como teu primeiro concerto nos Anjos 70, o convite do Branko para tocares nos Maus Hábitos, ou o concerto no Super Bock em Stock, numa curadoria do Rui Miguel Abreu. Olhando para o teu percurso, conseguias imaginar há 7 anos que estarias aqui neste momento? Foi esta a história que imaginaste para ti naqueles primeiros anos?

Sempre sonhei que a minha música conseguiria agregar toda a gente e na “Jazigo” já tinha este projeto de tentar juntar a estética do trap e da eletrónica mundial com as referências locais e rurais portuguesas. Sinto que o sítio onde estou agora foi algo que sonhei e que se tornou realidade. Houve alturas em que estava mais descrente desse conceito de “sonho” e de “ambição”, que associava muito à forma como a ideologia capitalista nos vende esta ideia de “sonho”, de sonhar muito alto, de querer subir sempre mais. Ao longo do tempo percebi que isso também faz parte de mim, que não consigo silenciar isso, mas neste momento tento ver o sonho, a ambição e o trabalho como uma forma de viver a vida ao máximo, como uma forma de viver o mais intensamente possível nestes anos limitados que temos aqui. Quando lancei o Estava No Abismo Mas Dei Um Passo Em Frente, parei para olhar para onde estava um ano antes, a fazer ainda a tour com o Por Este Rio Abaixo, e não conseguia acreditar que só tinha passado um ano. 

O trajeto que fizeste também te surpreendeu a ti próprio? 

De certa forma sim, mas foi algo que eu sonhei, por isso não posso dizer que me tenha surpreendido completamente. Chegar aqui foi algo para o qual trabalhei, tentando juntar mundos num país pequeno e com limites incrivelmente curtos. Como é que podemos superar isso? Como é que podemos fazer o máximo aqui? Se olharmos à nossa volta, todos os prédios são pequenos, a cidade é pequena. Como é que conseguimos fazer uma coisa gigante a partir deste lugar? Uma coisa que estava a tentar fazer há algum tempo era não falar apenas para a cidade, mas para o país inteiro, e isso sinto que consegui. 

Sentes que conseguiste isso com este disco novo? 

Sim. Mas era uma ideia que já vinha da “Jazigo” e que já estava no EP Tanto Sal. Ainda agora estive a rever a caixa de comentários da “Jazigo” e alguém que escreve: “Som minhoto de raiz andaluzo-marroquina. O gajo inventou o trap-fado”. A “Jazigo” já tinha um lado rural, era Lisboa e o Minho, Marrocos com o Algarve. Sabendo que vivemos num país pequeno, eu queria pelo menos tentar chegar a toda a gente deste país. 

Há quem diferencie a música dos primeiros EPs, o Má Fama (2017) e Tanto Sal (2018), deste álbum mais recente e centrado em bailes, rumbas e marchas. Mas pelo que percebo, sentes que nesses primeiros trabalhos já estavam as ideias do projeto que agora se materializa.

Sem dúvida, estavam lá desde o início. Algumas pessoas podem não se aperceber, mas o “Preço Certo” tem as mesmas influências marroquinas e do Norte África que a “Jazigo” já tinha. A palma do “Preço Certo” é uma palma tão portuguesa como norte-africana, da música raï. Estive agora em Marrocos mais uma vez e em qualquer música as pessoas estão a bater palmas como nós. 

O corpo também materializa essa história comum? Provavelmente houve gestos que ficaram inscritos no corpo e no ritmo e que vêm dessa história partilhada.

Sem dúvida. Há quem ache que o “Preço Certo” está a alguns mundos de distância da “Jazigo”, mas não está. O algoritmo que fez a “Jazigo” é o mesmo algoritmo que fez o “Preço Certo”. Nesta fase estou a aprender como é posso chegar a mais gente e a expressar também um momento específico da minha vida. 

Olhando ainda para este percurso, sentes que a música tem sido uma tradução da tua vida ou é mais a tua vida que tem sido uma tradução da tua música? 

Acho que é um pouco dos dois. Eu tenho de falar daquilo que sinto e que vivo. Este álbum não podia ser um álbum triste porque eu já não estou nesse sítio. E também porque se fizesse outro álbum triste, a minha vida ia provavelmente parar a essa tristeza outra vez. A vida imita a arte e a arte imita a vida. Às vezes digo coisas na minha música que me permitem viver aquilo depois. 

A música quase como uma aposta no futuro.

Sim, acontece, e este álbum tem muito disso, muitas frases sonhadoras. Existe um pouco esse lado quase supersticioso de falar algo na música para que isso se materialize. Sendo uma pessoa não crente, às vezes isso pode acontecer [risos]. 

Recuando ao período em assinavas como Pedro Simmons, consegues identificar momentos e pessoas-chave que te ajudaram a construir o teu olhar, a tua identidade e o ângulo a partir do qual olhas para a cultura e para a sociedade?

Consigo lembrar-me de uma canção-chave que tenho como Pedro Simmons, que se chama “Canção do Sul”. A canção é uma espécie de imagem do Spring Breakers, do Harmony Korine, com tarraxo e kizomba numa estética trap. Fiquei completamente imerso nesse filme e tentei traduzir aquilo para a minha cidade. O filme estava cheio de referências ao sul dos Estados Unidos e eu tentei fazer uma referência ao sul da Península Ibérica. Essa canção tem uma estética que vem do mesmo algoritmo que continuo a usar até hoje. Tal como outras dessas canções que estão SoundCloud, como a “Citroen Saxo“. Lembro-me dos Citroën Saxo lá na Graça rebaixados, azuis, era um clássico do tuning. Nessa música eu disse “Clássicos da minha tuga / Citroën Saxo acelera na rua / Os meus vizinhos querem o som mais baixo / Eu quero os sonhos mais altos”. Essas músicas foram momentos de viragem e que ainda estou a reproduzir. O “Preço Certo” ainda sou eu a querer fazer música para passar no Citroën Saxo de alguém. Depois houve outros momentos-chave, como quando fiz o “Como Assim”, e em que o Pedro, O Mau, de COLÓNIA CALÚNIA, percebeu para onde eu queria ir. 

Foi uma pessoa importante neste caminho.

Quando falas em pessoas importantes, ele foi a primeira pessoa que percebeu onde eu queria chegar musicalmente. Houve pessoas que tinham pegado em mim de outras formas, como os Buraka [Som Sistema], quando me aceitaram para um estágio e tiveram muitas conversas comigo sobre música. Mas o Pedro, O Mau foi a pessoa que acreditou que a minha música podia mudar isto. Lembro-me de acordar com uma mensagem dele muito importante e é uma pessoa com quem ainda troco conselhos e inspiração. Depois houve muitas outras e haverá muitas mais. 

Quando lançaste o Por Este Rio Abaixo, defendi aqui no Rimas que por detrás do disco havia uma intenção estético-política que procurava resgatar uma discussão sobre a história e a identidade nacional, e como esta pode ser reconstruída sem ficarmos presos à história que o Estado Novo, mas também a República e a Monarquia Constitucional, foram contando sobre nós próprios. A tentativa de rutura com essas mitologias passadas foi decisiva para olhares com mais clareza para o futuro? 

Foi e ainda é algo importante. O Por Este Rio Abaixo era um disco que objetivamente se propunha a um repensar da nossa história, da nossa música e de tudo o que a envolvia. Nesse disco e nos concertos eu tinha uma bandeira portuguesa refeita com as cores de muitas bandeiras africanas e árabes e com uma lua e uma estrela no meio, substituindo a esfera armilar. Nessa altura estava em guerra com o nosso conceito de nacionalidade e sinto que chateei muita gente. Lembro-me de fazer posts no Twiter a responder a declarações do Pacheco de Amorim e mandá-lo fazer um teste de ADN. 

É incrível que um tipo racista e incendiário como ele hoje seja vice-presidente da Assembleia da República, uma das principais figuras do estado, em nome do qual diz que está desde o 25 de Abril na contra-revolução e que é preciso reconquistar a liberdade que não chegou com o 25 de Abril.

Mesmo. Eu fiz muita guerra contra isso e continuo a ser vocal em relação a isso. E procurei sempre trabalhar com símbolos dessa portugalidade, tentando encontrar novos significados. Estamos aqui ao lado do Campo Pequeno e lembro-me que, com o Por Este Rio Abaixo, usei fatos inspirados nos toureiros, mas cor-de-rosa, tentando resgatar um potencial libertador nos gestos femininos dos toureiros. Algum do meu público não percebeu esse gesto e achavam que estava a incentivar a cultura dos touros, quando tudo aquilo era uma tentativa de desconstrução. No Por Este Rio Abaixo também houve pessoas que me disseram para não lançar o disco com referências aos mares e às viagens marítimas, quando não percebiam que o que estava a fazer era o contrário da apologia dos descobrimentos, era uma desconstrução. É claro que as minhas mensagens também não são super diretas e se calhar também havia em mim algum enamoramento por uma certa cultura que estava a tentar criticar. Mas acho que para fazermos guerra com determinadas coisas, temos também de ter um certo enamoramento pelo assunto que estamos a criticar. 

Os símbolos devem ser resignificados? 

Exatamente. Não é esquecer os símbolos, fingir que não existiram, mas dar-lhes novos significados. Não há nada na cultura que não possa ser resgatado ou ressignificado. Eu acho que é possível ver beleza em muitas coisas se lhe mudarmos o significado. Se calhar agora estou numa fase em que não estou tanto em guerra ou que choque de frente com o meu país, e estou mais com uma certa ilusão de que vai ser possível juntar os mundos, falar para o Portugal rural e para o Portugal urbano. De certa forma isso acontece em músicas como o “Estrada” que pode ser dançada e compreendida por uma pessoa de esquerda dos Anjos até uma pessoa com outras visões de Trás-os-Montes. Neste momento tenho estado com uma ilusão de que consigo falar para os dois mundos e consigo juntá-los através da música. Mas se calhar vou perceber que não é possível. 

Achas que a dicotomia fundamental é essa, o rural e o urbano? 

É possível que seja um pouco sim. Há uma experiência de vida totalmente diferente, e que não tinha percebido até andar a conhecer o país inteiro, a falar com todas estas pessoas. Havia algo que não conseguia perceber na Graça ou nos Anjos… Quando tu estás lado a lado com uma pessoa de Aljustrel e a conversar com ela sobre o que ela vive e sente, quais são os problemas do dia-a-dia, tu tens uma visão completamente diferente do ideal que imaginaste. Essa dicotomia existe e não sei se o nosso país não está a provar que ela é mais real do que nós pensamos. Eu tenho estado a tentar acreditar que consigo juntar os dois mundos, mas depois quando lanço um novo single, como o “Sem Ti”, a minha caixa de comentários diz-me um bocadinho o contrário. Se calhar só podes converter mentalidades até certo ponto, porque há pessoas que não estão mesmo aí. Talvez a diferença entre o que fiz com o “Estrada” ou o “Preço Certo” e o que tinha feito no Por Este Rio Abaixo esteja mais relacionada com a postura, talvez mais focado em tentar reconciliar. Mas é relativo, porque logo a seguir a lançar o “Preço Certo” estava a dizer publicamente que Portugal tem um problema com a comunidade cigana há 500 anos e viram-se as reações.



Houve quem interpretasse o teu novo álbum como uma rutura em relação ao anterior, embora haja várias continuidades, desde logo a disputa de símbolos e práticas culturais, como as marchas ou os bailes, e que me parece também uma forma de desconstruir uma certa ideologia que, em particular desde aos anos 30, tentou manipular várias expressões culturais populares para alimentar a representação de uma suposta autenticidade ruralista do povo português. A verdade é que o povo sempre manipulou esses símbolos culturais e sempre teve um protagonismo que nunca deixou que esses objetos, símbolos e rituais fossem completamente controlados pelo regime. Quando ouvi este álbum achei que era mais um passo nessa tentativa de dizer que os símbolos populares também resistem à forma com o Estado os tenta usar e controlar. Vês os dois discos como uma linha de continuidade ou achas que, apresar de tudo, há linhas de rutura que os separam?

Acho que há uma continuidade, sim. A música de baile foge um bocado a essa narrativa, mas as marchas sim, são essa criação de uma identidade nacional, e que ao mesmo tempo estão muito vivas. Acho que no ano passado se percebeu muito bem quão importantes elas são para falar de questões da nossa cidade. Foi um ano de ouro e foi muito óbvio, com uma série de discursos, que as marchas são uma voz importante na cidade. Mas acho que a música de baile foge um bocado a isso, porque a música de baile foge a qualquer categorização. A música de baile não tem forma, pode ser uma rumba, pode ser um vira, pode ter influência minhota ou cigana, pode ter influência do techno, da kizomba, do funaná. A música de baile é uma prova de como o povo consegue fugir e encontrar sempre a sua linguagem. E é também, de certa forma, um sítio de libertação sexual.

E de marialvismo também.

Exatamente, também perpetua estereótipos, obviamente. Mas acho bonito quando uma coisa tem espaço para a rutura, para uma certa liberdade sexual feminina, e ao mesmo tempo tem uma vastidão social tão grande que encontras o oposto disso. 

Há conflito no baile. 

Há conflito, muito conflito. E musicalmente há um futurismo incrível. Parece que é música popular tradicional que continuou em linha reta e nunca olhou para trás para dizer: “Vamos soar tradicional!” A música de baile pode ser toda feita com sintetizadoras, com kicks de techno e não ter nada de folclórico. Mas é na mesma música popular portuguesa. Acho isso bonito. 

No Por Este Rio Abaixo relacionaste-te diretamente com a obra do Fausto, uma das obras maiores da nossa história musical, e com uma ideia de tradição que ele poderia representar. Mas apesar de tudo, a obra do Fausto, tal como a do José Afonso, já foram interpretadas, elas próprias, como obras que rediscutiram e reatualizaram a música tradicional e popular. Há aqui um ciclo que se vai repetindo?

Sim. Até o próprio nome deste novo disco aponta para um ciclo que nunca acaba. 

Mas sentes que esta relação com a tradição foi um gesto que para ti ficou realizado ou a que será importante regressar?  

Eu sinto que o gesto está feito. O neo-tradiconal só por si está morto e saturado. Eu acho que o que vai acontecer a partir de agora é que esses elementos tradicionais vão ser só mais uma cor na paleta de cores que temos ao dispor. Acho que já não faz sentido usares um elemento tradicional e vires dizer que a tua bandeira é “trazer a tradição para o futuro”. As pessoas não tinham drum kits de bombos populares, isso não estava na pop e agora está. Acho que agora é preciso usar isso como mais um recurso. Na “Sem Ti” já dei por mim a usar os bombos de Lavacolhos apenas como um instrumento. Precisava de um tambor forte e usei aquela pela sua materialidade e não com a bandeira de estar a “revisitar os tambores tradicionais”.  

Apesar disso, a globalização cultural não acabou e continuas a ter mercados muito dominantes e que podem ter um efeito de hegemonia sobre a diversidade das sonoridades locais. Apesar de tudo, continua a haver hegemonias do ponto de visa sonoro. Sentes que a introdução do léxico popular na música portuguesa contemporânea é algo irreversível, ou os processos de globalização e hegemonia cultural vão continuar a colocar um certo risco de homogeneização da música que será feita no futuro? 

Percebo o que queres dizer. Eu sinto que o meu trabalho nasceu da necessidade de criar uma rutura com a hegemonia da cultura americana e esse trabalho pode ser desfeito a qualquer momento. Sempre houve revivalismos da música popular portuguesa e não foi a primeira vez que repensámos o nosso passado, por isso acho que isto pode tudo voltar à estaca zero. Mas eu sinto que a semente está plantada, e por estar plantada o meu trabalho está feito. Sou uma pessoa que gosta de plantar sementes e partir para outro terreno. Sinto que hoje, mesmo as pessoas que são conscientes do nosso passado colonial e que são críticas da ideia histórica de Portugal já se sentem orgulhosas por estarem a construir uma outra ideia de Portugal. Eu acho que isso é um sintoma de que foi plantada essa ideia de um outro Portugal, que não é Portugal fascista, que não é o Portugal da mocidade portuguesa, mas que não é também o Portugal a copiar os Estados Unidos ou a Europa.

Queria voltar um pouco à ideia de música popular e às torções que sinto no teu trabalho em relação à categoria do “popular”. Na tua abordagem torces as fronteiras entre as categorias de “música pop”, enquanto versão urbana e radiofónica da música popular, de “música popular”, enquanto registo autêntico e etnografável, e da “música popularucha”, enquanto música popular considerada pimba ou menor. A recusa dessas fronteiras foi o que te permitiu num mesmo gesto juntar as marchas, as rumbas, o cante, o tarraxo, a quizomba e o auto-tune? Foi a rutura como essas categorias que te abriu essas possibilidades?

Para mim, essas fronteiras nunca existiram. Eu consigo olhar para o kick de techno de uma música popular, ou para o sintetizador de baile, e encontrar ali um interesse gigante. Consigo olhar para elementos da música de marchas e achar que há coisas em comum com outros géneros. Mas é um caminho um bocadinho perigoso, porque também tenho vindo a perceber que esses estereótipos e estigmas estão mesmo muito vivos. Há pessoas nas caixas de comentários das minhas músicas a falarem em azeite…

E logo o azeite que é uma coisa tão boa [risos]

Exatamente [risos].

É a base da culinária mediterrânica. 

Sem dúvida. E a apalavra azeiteiro também mostra a nossa relação com o local. O azeite é o mais local possível e por acaso é uma palavra que vem do árabe e nos liga ao mundo mediterrânico de uma forma muito bonita. Mas na cabeça das pessoas o local é o provinciano. 

Por isso é que te perguntava antes sobre se a dicotomia é apenas entre o rural e o urbano, porque também há aqui uma questão de classe, um olhar elitista e condescendente sobre determinadas expressões culturais populares. 

Sim, e eu sinto que as pessoas que me chamam azeiteiro são elas próprias a relevar o quão azeiteiras são, porque não estão a perceber nada. Não estão a perceber que o azeite é um ingrediente-chave do meu trabalho, com um olhar diferente. Dá para perceber o estigma que elas própria têm. Quando elas estão a usar palavra azeite, estão a associar a música de baile a azeite. Não estão a perceber que é preciso pegar no azeite, dar-lhe qualidade e subvertê-lo. Se não o quê, vamos todos temperar salada com óleo como se faz no norte da Europa? Isso é que é bom? No final do dia tenho estado a perceber que há pessoas que não percebem realmente o gesto. Às vezes tu queres fazer coisas para juntar mundos diferentes e podes acabar por afastar esses mundos. Eu sinto que estou num momento de conflito com isso. Será que é possível juntar dois mundos ou há mesmo pessoas que nunca vão perceber nada? 

A propósito disso, tive uma grande tristeza de não teres sido nomeado nos Prémios Play na categoria de “Música Ligeira e Popular”. 

[Risos]

Criou-se um prémio específico para a “música ligeira e popular”, como quem diz que de um lado estão os artistas ligeiros e menores da cultura popular e do outro os artistas legítimos da cultura instruída. 

E também prova que o que está a ser julgado muitas vezes não são as músicas, mas as pessoas. As pessoas é que são “ligeiras”, não são as músicas que são “ligeiras”. O “Preço Certo” é claramente uma música popular e de baile, mas não entra nessa categoria. Apesar de que eu também odeio a expressão “música ligeira”…

Se uma é “ligeira” o que é a outra?

É a profunda? Não faz sentido. O “Preço Certo” é uma música de baile e popular, mas o que se parece estar a julgar é a pessoa que faz a música.



Sendo o teu álbum festivo, de baile e de celebração, e ao mesmo tempo um comentário sobre o país e as suas mudanças, sentes que o teu baile é também um lugar de reflexão ou corres o risco de se transformar num ritual escapista ou visto apenas como entretenimento? 

Eu acho que a alegria é muito mal interpretada. Essa era a minha luta neste disco. No anterior, a luta era com a história. Neste, a luta era com a “saudade” e com esta ideia fadista do nosso país. Não sei se ganhei essa luta… Cada vez que apareces a sorrir numa foto, muitas pessoas pensam que és estúpido, que és burro e que estás ali para entreter. 

Mas o teu baile não foi pensado para ser entretenimento e alienação.

E não é, mas sinto que muitas pessoas confundem as duas coisas. Eu tenho no meu concerto duas artistas que admiro imenso, a Sónia Trópicos e a Lana Gasparøtti, e acabei de lhes dizer para não sorrirem em palco, porque quando sorris a toda a hora para o público, parece que as pessoas te tomam como um bobo. Só o facto de elas estarem a sorrir e a interagir com o público, faz com que deixem de ser duas músicas incríveis, para serem interpretadas como as “bailarinas do Mafama”. Mas não, elas são músicas! 

Isso não pode também ser uma consequência do desenho de palco? Tu replicas em parte esse modelo que associamos ao cantor popular com as duas bailarinas ao lado.

Neste momento, a minha conclusão é que isso tem muito a ver com o sorriso. Pensa numa pessoa, numa fotografia de alguém a sorrir enquanto faz coisas, e lembras-te logo daquelas imagens dos minstrel shows. Quando tens um sorriso aberto, parece que isso é logo um convite para te acharem um bobo que está ali para entreter. A alegria é muito interpretada como burrice e a minha luta com este álbum era muito a de provar aos portugueses que nós não somos necessariamente tristes. Até poderias tirar essa conclusão tendo em conta que o fado é a nossa maior música histórica, mas então e a música de baile? 

E mesmo o fado tem também outras perspetivas mais alegres, provocadoras, satíricas e de faca e alguidar. Nunca foi só esse olhar da melancolia e da saudade que o Estado Novo tentou fixar. 

Sem dúvida. E foi muito intencional que a única música com inspiração fadista neste disco seja o “Golo!”, que é um fadinho alegre. É mais Alfredo Marceneiro que Amália Rodrigues. A minha dura conclusão neste momento é que o sorriso é muito mal interpretado. As pessoas interpretam o sorriso como falta de inteligência: “Como é que podes estar a sorrir se o mundo está a assim?” Eu sinto que desde o Por Este Rio Abaixo que estou a tentar trabalhar o nosso país. Mais do que ser a pessoa que chega às modas primeiro, que é o meu maior pesadelo, o que queria era fazer um rebranding de Portugal. Acho que tudo isto, no final do dia, é um pouco acerca disso. Neste disco eu queria enfrentar com um sorriso essa ideia de que nós somos um povo naturalmente triste e melancólico. Se me perguntas se fui bem interpretado? É duro de sentir, mas se calhar não. 

Outro aspeto que queria abordar diz respeito à relação que existe no teu trabalho entre a primeira pessoa do singular e a primeira pessoa do plural. No Por Este Rio Abaixo há uma história coletiva que é invocada, mas tens muitos traços autobiográficos. Em Estava no Abismo Mas Dei Um Passo Frente existem mutas referências coletivas e à cidade, mas há também muito da tua vida ali. Ao ouvir o teu trabalho, sinto que não consegues deixar de falar de ti próprio, mas ao mesmo tempo não queres que seja tudo sobre ti e procuras também um sentido mais plural e coletivo para a música. Como é que se gere essa tensão? E como é que falando de ti próprio consegues manter em aberto as possibilidades de interpretação das obras?

Talvez neste álbum se percam algumas possibilidades de interpretação, porque quando digo “sem ti” ou “por ti”, as pessoas podem saber sobre quem estou a falar. Mas, na verdade, posso estar a falar para a pessoa que está comigo, ou para uma entidade mais abstrata, como um recurso estilístico. Quando olho para o Por Este Rio Abaixo, vejo-o como uma fotografia do Artur Pastor, um disco sobre nós, mas também era um disco, como dizes, com muitas narrativas na primeira pessoa, comigo a deambular pelas ruas. 

A “Borboletas da Noite” é muito interessante neste aspeto, porque tanto narra a morte do sebastianismo e da nostalgia do império, como fala sobre as borboletas noturnas que naquela fase da vida te convidavam continuamente para as noites às quais querias resistir. 

Exato. Estão lá as duas coisas ao mesmo tempo. Era um enfrentar da história, pensando sobre as caravelas e o passado, mas também era eu no meu apartamento com as borboletas da noite a chamarem-me e eu a dizer que “não me levam hoje”. 

Uma tensão entre querer falar para fora e falar também a partir de dentro.

Sim. Com este novo disco eu queria resolver esse problema da primeira pessoa do singular. Queria falar muito no plural e todos os vídeos refletiram isso. O “Preço Certo” é sobre mim, mas também sobre todas aquelas 300 pessoas que estão no vídeo. No “Marcha Bonita” sou eu a querer ter essa representação espontânea e natural da cidade, seguindo o que as pessoas estavam a fazer naquele dia. Eu queria passar para o plural e acho que consegui fazer isso. Todas as marchas do disco são um retrato quase em aguarela da cidade. Sinto que consegui desbloquear isso e que agora, com a música “Abismo ”, na versão 2.0 do novo disco, já pude partir completamente para a ficção.  

A autoficção é uma possibilidade no futuro? Ou até o recurso a outras personagens, a outras histórias mais distantes de ti próprio?

Sim. Na “Abismo”, o que tenho na cabeça é quase um livro do J. G. Ballard, uma ficção científica onde tudo dá merda. Para mim, essa música é sobre a catástrofe climática, quase sobre a queda do ocidente, e sobre violência urbana. É claramente uma pintura, um filme, uma coisa ficcional em que eu estava a querer criar uma situação, e não apenas a descrever. Há um mínimo de autobiografia, mas é mesmo um retrato de alguém que está num hotel à beira de uma piscina, a ouvir uma bossa nova, que é uma música que já tem ali um perigo e uma tensão, e de repente atravessa-se um carro com metralhadoras. Gosto que as coisas possam ser bonitas e simples e ao mesmo tempo tensas e apocalípticas. Para mim, o quadro é mesmo esse, estar um senhor de meia-idade numa piscina a beber uma caipirinha, na sua decadência urbana de um homem branco de meia-idade ocidental, e de repente entra sobre o hotel o caos, um carro cheio de metralhadoras e aos berros. 

Essa música é quase um regresso a um certo catastrofismo que estava nas tuas primeiras músicas, como a “Tomada” ou a “Terra Treme”. 

Existe esse lado meio apocalíptico, mas acho que agora tens um lado mais frio. Não é uma coisa sentimental, é um livro escrito à máquina. Quando na “Abismo” eu grito em auto-tune é sobre a catástrofe climática. Não é um desabafo, é uma constatação. É mais frio no sentido em que não é um desabafo sobre como me sinto, mas sobre como nós estamos. Mas é algo ultra contemporâneo, é um retrato da nossa vida, do sol tapado pela areia do Saara.

Na “Estrada”, e também agora na “Sem Ti”, inspiraste-te na rumba portuguesa. Recentemente estive a percorrer as entradas das enciclopédias da música portuguesa do século XX e é muito sintomático perceber que não encontras praticamente nenhum compositor, intérprete ou grupo de música cigana portuguesa. Há uma invisibilidade histórica muito impressionante. 

 Total. 

Como é que olhas para este país em que tens gerações e gerações de músicos ciganos que fazem música, não aprecem na história nem acedem a muitas salas e circuitos de concertos, enquanto uma pessoa não cigana como tu, inspirando-se nessa música, consegue a partir dela um sucesso comercial e de visibilidade que essas pessoas nunca alcançaram? O que é que isso revela sobre o nosso país e como é que te colocas nesse debate?

Este país é todo ele uma injustiça gigante. Para mim é muito claro que se não fosse uma cara portuguesa, branca, de bigode e de sorriso no rosto a levar a rumba portuguesa para os portugueses não ciganos, esta música dificilmente chegaria lá de alguma forma. O nosso país é de uma simpatia e de uma antipatia incríveis. Temos uma história multicultural que me orgulha imenso, mas ao mesmo tempo fizemos em Lisboa ou em Silves o mesmo tipo de genocídios que estão a acontecer agora na Palestina. A nossa história é de uma violência incrível. 

Não somos um país de brandos costumes. 

Não somos, de todo. E as pessoas ciganas ainda vivem essa violência. Nós criámos esta narrativa de que os portugueses são fixes e simpáticos e eu, de certa forma, a certa altura também me enamorei por esse lusotropicalismo. Mas a verdade é que a nossa história é de uma violência incrível. A imagem do bispo moçárabe, que era o cristão, a ser decapitado pelas tropas do D. Afonso Henriques é de uma violência incrível. E é esse mesmo gesto violento que as pessoas ciganas ainda sentem. As pessoas ciganas ainda sentem essa violência que para nós, não ciganos, é algo que está no passado e que nos faz dizer que “somos um país de brandos costumes”. Não é verdade. Nós simplesmente não temos memória própria de viver essa violência. Se calhar o meu avô tem essa memória quando esteve preso e foi torturado pela PIDE, mas as pessoas ciganas sentem essa vivência e essa maldade agora. Eu também sinto tristemente essa violência no contacto com o público português. Desde que abri mais os meus concertos, percebi também essa violência que os portugueses podem ter. Os portuguese podem ser pessoas muito violentas. 

Em que aspeto?

No aspeto, por exemplo, em que quando constatas o facto de que a comunidade cigana vive em Portugal há 500 anos, são portugueses de pleno direito, mas não são vistos como tal, as reações que tenho a esse discurso são mesmo muito violentas. Digo isto num sentido sentimental: é preciso nós percebemos que também somos pessoas violentas. Portugal também é um país violento. É um país capaz de atrocidades incríveis e não podemos esquecer da violência de que fomos e somos capazes. 

Mantivemos o império colonial mais tardio da história do ocidente e levámos o mais longe possível a guerra contra os movimentos de libertação dos povos africanos. 

Sem dúvida. Depois tens o 25 de Abril, que foi uma revolta relativamente pacífica, em que só cinco pessoas morreram, o que não aconteceu em Itália, em que o Mussolini acabou um cadáver desfeio na praça pública. Olhando para esse exemplo podes ficar com a ideia de que afinal somos um país de pessoas pacíficas. Mas não somos, nós já fizemos a mesma coisa em muitos momentos da história e podemos fazê-lo outra vez. É preciso perceber que as pessoas ciganas são uma evidencia dessa violência portuguesa que acontece todos os dias. 

Houve quem te acusasse de contribuíres para a apropriação cultural da música cigana, embora tenhas feito um trabalho de escuta e diálogo junto de várias pessoas da comunidade. Gostava que me falasses um pouco desse processo, porque são debates muito importantes entre nós. E é um debate não só sobre a música cigana, mas também sobre a música negra. Basta veres a forma como se higienizam e despolitizam estilos como funaná, dançados alegremente em pistas de dança de pessoas brancas e sem consciência da forma como muitos desses estilos foram instrumentos de resistência, proibidos e fortemente reprimidas pelo colonialismo português. Como é que olhas e te posicionas neste debate?

Eu sinto que me vou sempre apropriar de coisas e vou cometer infrações. Mas sei também o que está jogo, porque não é a mesma coisa apropriar-me de música cigana ou da cultura pop global. Sei a diferença de privilégio de cada comunidade e da relevância que isso tem na forma como usas cada referência. Enquanto gesto artístico, eu quero expandir a minha paleta de cores, vou querer experimentar coisas que nunca experimentei e sei que inevitavelmente posso ir parar a lados mais ou menos perigosos. Neste caso, eu queria muito que estas músicas contassem também uma história sobre as pessoas que a fazem e foi por isso que tive pessoas ciganas a cantarem estas músicas e a tocarem estes leads de teclado, seja na “Estrada” ou na “Sem Ti”. Esses leads de teclado são também testemunhos das mãos ciganas que os tocam. Estes sintetizadores, esta forma tocar o órgão ou o piano da rumba portuguesa, é um testemunho da mão cigana, que é o testemunho da sua vivência, e que é também um testemunho da nossa história. Eu queria ter esse registo documental na música. 

E também nos vídeos, onde aparece o Diego El Gavi, o Francisco Montoya ou La Familia Gitana.

Sim, nos vídeos também, mas a questão primeira era o som, daí ter o José Lebre nos teclados ou o Diego El Gavi nas vozes. Não podiam ser outras pessoas a tocar aquele som. Eu queria que este disco tivesse testemunhos, relatos e registos de pessoas que se calhar não conseguem ser representadas tão facilmente em Portugal. E este disco não tinha acontecido assim se não tivesse tido uma conversa inicial com a Maria Gil. Obviamente que eu, como artista branco, senti essa necessidade, mas claro que houve um certo desconforto em ir falar com uma pessoa como ela, no sentido em que me questionava a mim mesmo: Será que devo pedir autorização? Será que devo pedir uma bênção? Ou devo pedir-lhe informação, contexto e ajuda? Estava com medo de sair só uma aprovação, porque não era esse o intuito. 

Não pode ser um gesto burocrático, tem de ser um gesto humano. 

Exatamente. Tem de ser um gesto humano e verdadeiro. E o que aconteceu naquela conversa com a Maria Gil foi incrível, foi uma conexão gigante com ela e com a família dela. Foi uma troca genuína de experiências e de amor. Eles perceberam o que é que queria fazer pela rumba portuguesa, e eu percebi mais o que é a rumba portuguesa e o que ela representa. Se não fosse esse conhecimento tinha sido só um gesto estilístico superficial, como quem veste uma roupa nova. Acho que esse é o perigo, a música ser só uma roupa nova que vais vestir. É claro que eu gosto de vestir roupa nova, há uma excitação e um entusiasmo artístico de descobrir um novo sintetizador, uma nova sonoridade, mas não é a mesma coisa se não houver verdade e testemunho. 

E uma procura de conhecer da história que esta música conta. 

Sim, uma procura de conhecimento e também de deixar que as pessoas falem por si próprias. No “Estrada” tens este lado quase documental e de registo do Diego El Gavi a cantar a sua dor, os “ai ai” a furar o cante alentejano do hino dos mineiros. É quase uma peça documental, um registo, e sinto que eu podia nem estar lá. É um registo que queria deixar no país.



Estiveste nas celebrações do 25 de Abril na Avenida da Liberdade. Neste momento vivemos este paradoxo em que no campo da música assistimos a uma afirmação cultural de pessoas, sons e poéticas que contam outras histórias sobre o país que somos, ao mesmo tempo que temos uma extrema-direita que hoje veste fato e gravata, ocupa o Parlamento e contamina todas as nossas discussões. Que importância tem para ti o 25 de Abril e como é que olhas para esta aparente contradição entre a cultura estar a trazer narrativas novas, a questionar o passado, a conquistar espaços, enquanto o campo político e o debate público estão contaminados por ideias que achávamos que não voltariam a ter este gau de expressão? 

Eu sinto que o 25 de Abril este ano me relembrou de muita coisa. É um dia muito emocional para mim por causa de uma história familiar, como é para quase toda a gente deste país. Mas este ano lembrei-me que durante a pandemia tinha cantado a “Grândola, Vila Morena” e mudei o “jurei ter companheira” por “juro ter por companheira”. Este ano a data lembrou-me que fiz essa jura. Uma pessoa às vezes tenta agradar a diferentes mundos, tenta vencer na vida também, comprar o seu carrinho, mas foi muito importante lembrar-me desta jura, desta vontade e de que tenho um compromisso para comigo mesmo. Não há carro, nem números de Spotify que possam substituir isso. Se tu tiveres sucesso, mas não estiveres a sentir-te honesto contigo mesmo, isso não vale nada. Eu senti a certa altura que me estava a silenciar em algumas coisas e neste 25 de Abril despertei completamente e jurei outra vez, para mim mesmo, que doa a quem doer, vou ter de fazer aquilo que sinto. Eu sei o que quero fazer pelo meu país, pelas pessoas que já cá estiveram, por todas as que ainda estão para vir. E que é preciso ir conta a maré, para sempre. 

Para finalizar, o que é que podemos esperar do concerto no Campo Pequeno? Pensando em toda esta história, vais vestido com o fato de toureiro cor-de-rosa, vais com néons ou com roupa da Decathlon misturada com Armani?

[Risos]

E musicalmente vais centrar-te mais neste novo álbum ou vais percorrer esta história de que temos falado? 

O meu entusiasmo radiante está neste conceito de bailecore. Vai ser um palco preenchido de lasers e estamos a fazer um desenho melhorado de luzes e de palco. Vai ser uma sinfonia de lasers e com sons de carros, que estou a trabalhar com o Pedro Gerardo, mas desta vez será de carros elétricos [risos]. Estou fascinado pelos barulhos de carros elétricos, aquele barulho de nave espacial que é super futurista. E estamos também a trabalhar os sintetizadores de baile para serem ainda mais futuristas. Ou seja, estou a pegar neste potencial futurístico da música de baile, das rumbas, e a tentar levar isso para uma versão de nave espacial. 

Em esteroides.

Em esteroides, sim. Uma experiência de bailecore será esta mistura entre o rural e o urbano, em que a música de baile assume todo o seu potencial futurista. 

Mas não vai haver uma viagem lá atrás?

Vai sim. Vou fazer também uma viagem profunda do Por Este Rio Abaixo, com músicas que já não toco há muito tempo. Estou a ir ainda um bocadinho mais atrás do que tenho ido.

Os Deuses Devem Estar Loucos” ainda pode aparecer? [Risos]

Estive a pensar nisso, mas honestamente não sei. Quero, ao mesmo tempo, fazer uma viagem ao passado pré Por Este Rio Abaixo, mas estou também em conflito com quem quero ser daqui para a frente. Tenho estado a sentir falta de mostrar o orgulho que tenho no meu trabalho inicial e sinto que tenho de lembrar às pessoas de onde é que isto vem. Quero mesmo fazer essa viagem de uma forma genuína. Não é só dar isto para os fãs antigos, quero mesmo percorrer e lembrar de onde vim e o quão atual e importante isso é neste momento. O momento Por Este Rio Abaixo não vai ser tratado como uma experiência cínica, do género: “Está é para os meus fãs do dia 1…” Vai ser mesmo uma viagem estética diferenciada.

Este concerto vai ser um fecho de um ciclo? 

É uma boa pergunta [hesitação]. Acho que pode ser um fecho de um ciclo no sentido em que desde que lancei o disco tenho estado a desenvolver e quero deixar esta marca do bailecore, do potencial futurístico e experimental da música de baile. Mas este momento é também uma porta em aberto, porque esta edição 2.0 do disco deixa também um ponto de interrogação em relação ao que está para vir. 

Este fim-de-semana fui visitar a minha família, comentei que te ia entrevistar e foi engraçado perceber o entusiasmo da minha sobrinha de 5 anos e da minha avó de 84 anos [risos]. Como é que te relacionas com essa abrangência de público intergeracional que conquistaste? É algo em que tens pensado na preparação deste concerto ou das músicas que virão no futuro?

Dá-me muita alegria ter essas pessoas todas comigo, mas não posso pensar que tenho de manter uma certa imagem, ou que por ter um público tão novo tenho de manter uma certa ideia de “exemplo”. A única forma interessante de ser “o gajo do ‘Preço Certo’” é a seguir fazer a “Abismo” e estar aos berros de auto-tune no meio do concerto. A única forma disto ser interessante é, a seguir, fazer uma coisa totalmente oposta. Aí é genuinamente interessante, sabes? O gajo do “Preço Certo” estar agora a gritar em auto-tune sobre catástrofe climática. 

O que segue após este concerto? Será possível num futuro próximo vermos algum projeto teu fora da música, por exemplo na área do cinema, de séries ou com uma linha de roupa? 

O que eu quero fazer na música ainda não chegou ao patamar que queria. Eu sinto que tinha conquistado Lisboa, agora Portugal, e quero conquistar para lá de Portugal. Eu não vou desistir sem resolver o problema de Portugal não ter um público internacional. É uma missão de vida. 

A internacionalização é um objetivo teu?

É um objeto de vida, romper este mercado e falar para o mundo. Isso é uma prioridade para mim. E depois disso virão outras coisas que vou fazer se conseguir tempo para elas. Quero fazê-las, sem dúvida, mas a prioridade para mim é que a música portuguesa chegue ao mundo. Depois disso, e se o tempo me permitir, o objetivo é que este projeto de fazer um rebranding de Portugal possa ser feito a vários níveis. Eu vejo séries de televisão, filmes, e penso que há coisas que gostava de fazer melhor, e que há uma certa forma de nos retratarmos a nós mesmo que precisa de ser melhorada. Aquilo que já foi feito na música pop urbana, está feito, já existe, mas ainda não foi feito noutras áreas. O cinema português ainda não se reinventou e ainda não se redescobriu. As séries portuguesas estão melhores, mas ainda não estão na sua época de ouro. A moda portuguesa já teve momentos bonitos, mas acho que ainda pode ir muito longe. E a música também, claro, não estou a dizer que o trabalho está feito, sobretudo em termos de alcance, porque este mercado é muito pequeno e há que rompê-lo a todo o custo.


pub

Últimos da categoria: Entrevistas

RBTV

Últimos artigos