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Fotografia: Garras / Outros Ângulos
Publicado a: 29/11/2023

Da comunidade para todo o lado.

La Família Gitana: “É na nossa cultura que está a nossa diferença, o nosso valor e a nossa força”

Fotografia: Garras / Outros Ângulos
Publicado a: 29/11/2023

Não foi fácil ir ao encontro de La Família Gitana no bairro do Fim do Mundo, no Estoril. Não pela dificuldade de os encontrar — na dúvida, basta seguir a “estrela-guia”, que é como quem diz o majestoso mural de Camarón de la Isla, gravado num dos prédios à direita de quem sobe a Avenida Gago Coutinho. Foi o que fizemos e logo encontrámos o Ângelo Quintino (mais conhecido por BA), o Ângelo Vasques e o Ari Monteiro, que de braços abertos nos receberam. A verdadeira dificuldade, porém, foi acompanhá-los num bairro em que em cada esquina há um cumprimento, um abraço a um amigo, uma breve conversa para pôr em dia, um conselho para dar a um dos jovens que passa, um gesto para todas e todos com quem se cruzam.

La Família Gitana são uma verdadeira família e isso nota-se em todas as ruas do bairro que representam, que cantam e onde são verdadeiros líderes comunitários, profundamente enraizados na comunidade. Falamos da comunidade do atual Bairro do Fim do Mundo, no Estoril, um lugar que nasceu depois da demolição do antigo bairro autoconstruído onde cresceram os seus mais velhos. Foi deles que haveriam de beber o exemplo, tanto nas práticas de partilha, solidariedade e atenção aos outros, como também na área musical, onde recolheram inspiração e muitas aprendizagens.  

Quando percorremos as enciclopédias da música portuguesa, a referência a grupos, compositores, músicos e intérpretes ciganos é praticamente inexistente. Não se estranha, por isso, que quase não haja referências aos Soul Gipsy, a banda dos seus pais e tios, e que foram uma fonte de inspiração para o grupo. O certo é que esta ausência de referências à história da música cigana portuguesa não significa que ela não tenha existido, sendo antes um reflexo da invisibilidade histórica, social, cultural e política a que têm sido votadas as comunidades ciganas em Portugal. Talvez estas sejam razões mais que suficientes para se ouvir a música e a história de La Família Gitana, aqui contada pelos próprios. Uma história com raízes profundas, em construção e com muitos futuros por conquistar. Acompanhados pelos maravilhosos manjares da Dona Palmira, foi no Centro Comercial da Galiza que esta conversa começou, à qual também se juntou João Garrinhas (Garras), que a partir da Outros Ângulos, tem ajudado a construir as imagens desta história e de muitas outras. São dele, também, as belíssimas fotos que acompanham a entrevista que se segue.



Queria começar pela vossa história e pela origem de La Família Gitana. Vocês nasceram e cresceram aqui no Bairro do Fim do Mundo? Como é que se conheceram? 

[BA] Nós somos naturais de Cascais e crescemos todos maioritariamente no Bairro do Fim do Mundo, em São João do Estoril. 

No bairro atual ou no antigo bairro autoconstruído e demolido no âmbito do PER? 

[BA] Eu sou de 1996 e quando nasci já estava a ser estruturada a reabilitação do bairro. Havia um bairro antigo de barracas, mas o Ângelo, como é mais velho, se calhar tem mais lembranças que eu. 

[Ângelo] Eu nasci em 1993, apanhei essa mudança em criança. Tenho memórias do bairro antigo, das barracas, mas ainda como criança a brincar. E também temos a memória dos mais velhos, aquilo que nos passaram. 

Em que altura foi essa transição? 

[BA] A transição terá sido ali pelos anos 2000 e nós viemos todos para aqui. Os que não cresceram nas barracas, cresceram no bairro que sucedeu as barracas. Nós somos praticamente todos da mesma família. Foram quatro irmãos que vieram aqui parar, oriundos de Espanha, passaram pelos Algarves, e acabaram nesta zona. Depois desses quatro irmãos vem a família inteira e felizmente ainda cá estamos todos. 

Esses quatro irmãos são os vossos avós?

[BA] São os nossos avós sim, que agora já são bisavós. 

E que memórias têm da vossa infância aqui no bairro? Já te ouvi dizer, BA, no Cidade Invisível da Antena 1, que a dinâmica comunitária do bairro vos ensinou desde muito cedo a partilhar

[BA] Sim. Ao fim e ao cabo, nós viemos destas realidades meio duras. Graças a deus, os tempos foram avançando e as coisas foram melhorando. Houve o realojamento, a parte financeira também foi melhorando, mas no sentido comunitário sempre houve muita partilha. Muitos de nós se calhar tinham mais hipóteses do que outros e sempre partilharam. Crescemos com esse sentido comunitário, acho vem do nosso ADN enquanto ciganos: ajudar o próximo, estar atento, garantir que os mínimos nunca nos faltam. Seguindo essa forma de viver, tudo o resto se vai construindo e orientando. 

Como é que era o bairro nessa vossa infância? Tinham perceção dessas dificuldades quando eram mais jovens? 

[BA] As principais memórias eram as da brincadeira, de partilhar momentos com os meus primos e com os meus amigos. Mas é claro que conseguíamos perceber que as coisas não eram tão fáceis em relação a outras coisas que íamos vendo, e que fazem com que nós nos vamos comparando. 

O bairro atual, tal como o anterior, está inserido numa zona rica da Grande Lisboa, cheia de vivendas e moradias à sua volta. Sentiam esse contraste ou não era uma questão para vocês? 

[Ângelo] Fazia alguma diferença, sim. Muitas pessoas pensam de forma muito diferente de nós, pensam que vivemos numa zona rica, mas não. Não tem nada a ver. 

[Garras] O bairro de autoconstrução anterior era mesmo no vale e virado para as mansões do Vale de Santa Rita. 

[BA] Quando passámos por isso não éramos suficientemente maduros para entender. Mas a visão que consigo ter através dos meus antepassados, que graças a deus, ou ao universo, ainda não nos deixaram, é que nesta área sempre conseguíamos ver esse grande desnível. Felizmente, com o tempo as coisas foram evoluindo, houve o realojamento e todo esse processo comunitário que ajudou muito. 

Vocês estudaram todos aqui na Galiza? Na vossa escola havia malta que vivia aqui no bairro, mas também pessoal de fora. Como é que era essa relação?

[Ari] Sim. Eu estudei aqui na Galiza e no Liceu de São João do Estoril. Eu acho que nunca senti diferença entre a malta do bairro e de fora. Eles interagiam bem connosco. 

[BA] Havia um ambiente saudável. Claro que há sempre casos mais complicados, pessoas que estão em piores situações. Mas falando de um modo geral, acho que foi uma cena super tranquila. 

Vocês mantiveram uma relação com a escola mesmo depois de saírem. Como é que se tornaram mediadores escolares e comunitários? Foram os professores que mantiveram essa ligação convosco ou foram as vossas profissões que vos levaram para esse caminho? 

[BA] Talvez isso tenha acontecido por causa da malta técnica que tem vindo a acompanhar os jovens desde esses primórdios do PER e do realojamento. E na verdade, a comunidade teve sempre atividades, como os campos de férias, em que os mais velhos eram monitores e nós os, os mais novos, éramos participantes. Isso criou um exemplo e até ao dia de hoje isso tem acontecido. Entretanto, também foi criado um projeto comunitário importante, o Take.it

[Garras] Quando estive a trabalhar nesse projeto, o Ari apareceu lá com 14 anos para gravar pela primeira vez. E o Moisés Montoya também. 

[BA] Todos os projetos comunitários que se foram sucedendo através do Take.it fizeram com que o nosso interesse continuasse a passar por aqui. Muitos de nós, como primeiro emprego, começámos por ser mediadores escolares na nossa comunidade. Acredito que isso criou este nosso interesse de passar o nosso conhecimento e partilhar a nossa viagem para os mais novos. Como muitos dos meus colegas, sou neste momento um dinamizador da comunidade, ou um líder comunitário. Acabei o curso de Ciências e Tecnologias no Liceu de São João, mas estava sem saber o que ia fazer.

Não querias ir para a faculdade?

[BA] Queria, mas não queria. Não sabia se era o tempo certo. Acabei por ficar como mediador, tal como o Ari, e mais tarde atribuíram-me mais responsabilidade. Tive a oportunidade de chegar a gestor de mediadores do meu território. Ser o dinamizador comunitário foi a minha licenciatura, aprendi bué com a equipa que tinha ao meu lado. Entretanto aconteceu uma nova geração do programa “Escolhas”, do ACM, surgiu a oportunidade de poder passar a monitor e agarrei a oportunidade. Mas hoje em dia os salários que conseguimos receber sem ter uma licenciatura quase que nos empurram a ter outros trabalhos para pagar a renda, a comida, os filhos, tudo e mais alguma coisa. Por isso tenho muitos outros trabalhos. 

[Ari] Eu também sou mediador. Tirei o curso profissional de cabeleireiro e barbeiro aos 17 anos. Quando saí, abri um barbeiro no Centro Comercial da Galiza, só que precisava de mais alguma coisa. Havia este projeto chamado Educa, falei com a responsável e comecei a trabalhar com eles numa escola. Depois veio o COVID, tive de fechar as minhas lojas e fiquei a trabalhar nas escolas a tempo inteiro num outro projeto. 



Voltando à vossa infância, quais são as vossas primeiras memórias musicais? 

[BA] “Se eu fosse um peixinho…” [risos]. Acho que essa deve ser a primeira música que me lembro de cantar, era uma música de infância que nós todos cantávamos. 

[Ari] A minha mãe teve-me a ouvir o Camarón… Estou a brincar, mas podia [risos].

[BA] No ATL da Galiza aprendíamos muitas músicas também. O ATL foi muito importante porque ajudou muito a comunidade depois do processo de realojamento. Pessoas como a Maria Gaivão, que era a pessoa responsável pelo ATL da Galiza, e a dona Elvira Nadais, que era a responsável pela capela, foram muito importantes na ajuda à comunidade desde a altura das barracas. Os projetos sociais da Câmara vêm depois com o PER, mas havia coisas antes disso. Esses projetos foram muito importantes para nós enquanto crianças, porque eram sítios onde passávamos muito tempo. Davam alimentação, coisas básicas que eram necessárias, tinham respostas como creches para as crianças e para as que já estavam noutra escolaridade davam apoio e muitos tipos de respostas. E também aprendíamos músicas. 

E com que músicas é que vocês cresceram? Não vale dizer o Camarón. [risos]

[Ari] [risos] Eu praticamente só ouvi música cigana. Ouvi muito Israel Fernandez, o Canelita, Parrita

[BA] José Mercé, Diego El Cigala, Niña Pastori… Hoje há muito mais mulheres também, ou se calhar na altura não nos chegavam tanto. Também o YouTube não existia há uns anos atrás.

Como é que vos chegava essa música?

[Ângelo] Eram cassetes, CDs…

[Ari] A mim já foi com o YouTube [risos].

[BA] Mas o mais importante era o que se ouvia em comunidade, nas nossas festas. 



Como é que vocês começaram a aprender instrumentos, a tocar e a cantar? Como é que começa essa relação com a música? 

[BA] A minha relação com a música vem do facto de haver uma banda anterior que foi uma grande influência e que era constituída por várias pessoas, incluindo os nossos pais. 

Os Soul Gispsy? 

[BA] Exatamente. Muito provavelmente foi por aí que veio esta ligação. Era a banda dos nossos mais velhos. 

[Ari] A minha relação com a música também vem do meu pai [Bernardo Monteiro].

[BA] Nós somos ciganos e estamos muito relacionados com a música e com a alegria que ela transporta. Existe muita musicalidade em nós, mesmo que às vezes nós não saibamos cantar, tocar ou dançar. Acredito muito nisso. E depois há estas personagens como o José Luís Quintino ou o Bernardo Monteiro, que faziam parte desse grupo e que acabaram por ser uma influência.

Quais eram outros membros desse grupo? 

[Ari] Era o Bernardo Monteiro, o José Luís Quintino, o Tomás Fernandes, o Sandro Fonseca, o Micael “Micas” Fernandes, que aprendeu com eles a tocar… Eles eram uns quantos. 

Davam concertos fora do bairro ou tocavam mais na comunidade?

[Ari] Davam concertos em todo o lado. Andaram mais do que nós até agora. Eles praticamente todas as semanas tinham concertos, nós ainda não chegámos a esse ponto. 

[BA] Na verdade, isto parece um ciclo que se vai repetindo. Eles também estudaram juntos no liceu. O meu tio sempre gostou de cantar, o pai do Ari sempre gostou de tocar guitarra e tocavam muito. Essa é a nossa cena, é o nosso dia-a-dia. Tal como nós nos fomos juntando, também eles se foram juntando, andaram por aí e tocaram em muitos, muitos sítios. 



Contem-me então o início de La Família Gitana. A música é algo muito presente em família, na comunidade, mas como é que começa este projeto? Quando e como é que decidem fazer uma banda?

[Ari] Eu aprendi a tocar com o meu pai, que é guitarrista. Ele foi-me ensinado e a primeira música que fiz foi com o Garras [João Garrinhas], que me gravou só com a guitarra. Tinha uns 13 ou 14 anos. Depois de fazer essa música, houve uma festa de Natal no [Auditório Senhora da] Boa Nova, organizada pelo Take.it e chamaram-me para tocar. Era eu na guitarra e juntei um cajón para uns ritmos. Só que o Ângelo [Vasques] apareceu lá no Take.it, perguntei-lhe se não queria cantar também e lá fomos os três. 

O que é que cantaram? 

[Ari] Tocámos bocados de músicas, refrões, não tocámos nenhuma música original. Nesse primeiro concerto não era uma banda, mas depois do concerto decidimos criar o grupo porque havia um rapaz chamado Leonardo que também queria entrar com cajón. Eu fiquei na guitarra, o Rui Marques ficou na outra guitarra e a voz era o Ângelo Vasques e outro vocalista que era o Alexandre. 

Começaram a construir temas originais? 

[Ari] Começámos por criar duas músicas, uma que é o “O ritmo do cigano” e outra que é o “Ó meu amor”. Mas fomos também agarrando músicas de outros lados e interpretando.

As músicas que agora estão a lançar em vídeo são também composições vossas?

[Ari] Sim. Lançámos duas em vídeo até agora: “À porta de uma cabana”, que é composição nossa, e “Saber o que queremos”, que foi escrita pelo José Luís Quintino, foi ele que nos deu a letra. 



Onde é que ensaiavam, no Take.it

[Ari] Nessa altura não. Ensaiámos na rua, na casa do Ângelo, no quarto do Alexandre. Mas era basicamente sempre pela rua, na praia…

[BA] Era como nós gostávamos também. Nós não eramos uma “banda”, éramos um grupo de amigos que gostava de tocar e cantar juntos. 

[Ângelo] Na altura não havia carros, andávamos todos a pé [risos].

[Ari] Começámos assim e antes de fazermos alguma coisa com a OPA – Oficina Portátil das Artes, ainda tocámos aqui no bairro. Depois disso, ensaiámos, ensaiámos… Gravar músicas foi há pouco tempo, mas tocar em palco foi mal fizemos a banda. Mal nos juntámos demos logo o nome La Família Gitana. Todos os dias ensaiávamos, não falhava um dia.

Depois de nascer a banda e começarem a ensaiar com essa regularidade, como é que surgem os convites para tocar ao vivo? De repente, num curto espaço de tempo, estão a tocar na Gulbenkian, no Centro Cultural Olga Cadaval, no Cinema São Jorge, no MEO Sudoeste, no Terreiro do Paço… 

[Ari] A Ana Carapinha, que trabalhava no Take.it, perguntou-nos se gostávamos de trabalhar com a OPA – Oficina Portátil das Artes. Dissemos que sim, a OPA aceitou-nos e chamou-nos para nos ensinar. 

O Francisco Rebelo já estava envolvido? 

[Ari] Sim, foi ele que nos acolheu. Ele ensinou-nos como estar em cima do palco, como ser uma banda, deu-nos uma formação a sério. 

[BA] E continua a estar connosco! Dia 26 deste mês [novembro] vamos estar a gravar com ele.

[Garras] Como o Take.it era um projeto de intervenção comunitário, tínhamos um estúdio em que trabalhávamos a música como ferramenta de ocupação dos tempos livres. A OPA começou desde cedo a ser uma parceira nossa. O pessoal vinha aqui ao estúdio e a gente tinha contacto com o Francisco Rebelo, com o pessoal da OPA, e acabou por haver esse estreitamento. 

[Ari] A OPA é uma referência. Aprendes muito e quando sais dali se calhar já tens pessoas a conhecerem o teu trabalho. Nós só começámos a ter coisas a partir da OPA e através do Take It. Se não fosse o Take.it, se calhar não chegávamos à OPA.

[BA] E se não fosse a OPA, se calhar não tínhamos feito “A música cigana a gostar dela própria”. Se não tivéssemos feito isso, se calhar não tínhamos ido tocar ao Cinema São Jorge [no âmbito do Festival Política]. Se não tivesse sido isso, se calhar não tínhamos chegado ao programa da Bienal de Artes Contemporâneas



Como foi para vocês chegar a esse tipo de espaços? São espaços e lugares centrais, alguns mainstream e de uma certa cultura hegemónica. De repente vocês, uma banda nascida em comunidade, no Bairro do Fim do Mundo, começa a ocupar esses lugares. Como foi e tem sido essa experiência? 

[Ari] Era tudo novo para nós. A primeira vez que tocámos num palco grande foi com a OPA, também no Terreiro do Paço por acaso [no Lisboa Mistura, em 2017]. Era um palco enorme, com montes de luzes. Para nós foi uma coisa nova, se calhar até foi um bocadinho assustador. Pela primeira vez num palco grande, estava mesmo muito cheio e com pessoas que não eram de etnia cigana. Mas foi bom, espetacular, muito tremer de pernas [risos]. Trememos muito, muito receio, mas sabíamos que as bandas que lá estavam não eram melhores nem piores que nós. Andámos todos na mesma formação, estávamos no mesmo sítio, então também estávamos tranquilos. 

E o concerto da Gulbenkian, com o António Pope? Foi um momento importante?

[Ari] Foi, claro, mas isso já foi depois. O John Romão chamou-nos através da “Música portuguesa a gostar dela própria”. Esse contacto dá-se através da Ana Carapinha e do Tiago Pereira. 

Queria perguntar-vos sobre essa relação. Existe o projeto “A música portuguesa a gostar dela própria” e o projeto “A música cigana a gostar dela própria”. Por um lado, parece ser interessante haver um projeto específico para a música cigana portuguesa porque lhe dá maior visibilidade e alcance. Mas por outro lado, não pode gerar uma certa contradição? Afinal de contas, a música cigana portuguesa também é música portuguesa. Vêem utilidade na criação dessa diferenciação? 

[BA] Nós queremos acreditar que o que é feito e direcionado à população cigana é feito com boas intenções. O Tiago Pereira veio ter connosco, apresentou “A música portuguesa a gostar dela própria” e passou-nos uma mensagem muito fixe. Disse-nos que nós, ciganos, também nascemos em Portugal e que a nossa música também é portuguesa e devia fazer parte da “A música portuguesa a gostar dela própria”. Na altura iam andar a fazer uma tour por Portugal sobre “A música cigana a gostar dela própria”, com esta vertente de quebrar barreiras e estereótipos. Acho que foi esse o sentido e por isso nós acreditamos que essas iniciativas são feitas com boas intenções. Estamos aqui todos em prol do mesmo, queremos todos evoluir, mas não queremos deixar as nossas raízes. Acreditamos que é na nossa cultura, na nossa raiz, que está a nossa diferença. E é na nossa diferença que está o nosso valor e a nossa força. 

Vocês são uma banda jovem com conhecimento e respeito pela tradição da música e da cultura das comunidades ciganas, mas também trazem a evolução dessa cultura, com as vossas estéticas e temáticas. Como é que se posicionam nesse debate entre a tradição e a inovação? 

[BA] Nós começámos o projeto porque éramos todos amigos e já fazíamos isto todos juntos. Já ouvíamos o Ari tocar há muito tempo, já ouvíamos o Ângelo cantar há muito tempo. Acredito que a nossa cena vem muito daí, das nossas vivências e do nosso crescimento neste sítio, com este contexto, na nossa etnia. Tudo isso faz com que a tradição esteja muito presente. 

Mas quando compõem têm mais essa preocupação de respeitar a tradição da música cigana ou trazer também um contributo e uma estética própria?

[Ari] Quando compomos, temos muito respeito e atenção com o que vamos dizer e com o que vamos escrever. Somos de etnia cigana e não podemos falar de tudo e de todas as formas, por exemplo em relação às mulheres ou no uso de asneiras nas músicas. Isso pode ser considerado uma falta de respeito para connosco e com os nossos valores. Temos de ter respeito pela comunidade. 

[BA] Crescemos com este mindset e acreditamos que é um mindset fixe. Gostamos de passar isso também e acredito que quando chegamos a estes palcos, a estes sítios, isso também serve para quebrar barreiras.



Têm estado a gravar músicas em estúdio. Como foi esse processo? Planeiam fazer um álbum? Falem-me um pouco dos projetos para o futuro.

[Ari] Neste momento a banda tem seis membros: um teclado que é com Moisés Montoya, uma guitarra que sou eu, Ari Monteiro, outra guitarra que é o Rui Marques, um cajón que é o Ângelo Quintino (BA), outro cajón que é Hugo Fonseca, e um vocalista, que é o Ângelo Vasques. Queremos gravar um EP, de sete músicas, e estamos a caminho para isso. 

Há uma música que cantam ao vivo que é a “Ciganos do Estoril” em que no refrão falam dos ciganos de Portugal. Na vossa perspetiva, há uma diferença entre a música cigana feita em Portugal e música cigana feita noutros contextos? O que é que distingue a música cigana portuguesa? 

[Ari] Eu acho que há uma base e uma origem comum. Mas existe uma diferença porque a música cigana feita noutros lados se calhar é feita mais a partir de referências flamencas. A música cigana portuguesa não é tão flamenco como a música de Espanha, por exemplo. A música de Espanha faz-se mais através de fandangos, bulerías ou mesmo flamenco puro. Nós aqui não fazemos flamenco puro. 

Então o que distingue a vossa música, o vosso estilo musical? Sentem-se identificados na categoria de rumba portuguesa?

[Ari] Sim. Fazemos música cigana, rumbas. Acho que a nossa banda se identifica mais como rumba portuguesa do que se calhar com flamenco. Flamenco era se tivéssemos algumas músicas com bulerías, fandangos, com notas flamencas. Nós fazemos tudo à base de rumbas. 

Quando lemos os livros da história da música portuguesas não há praticamente referências a bandas, cantores ou compositores ciganos. É impressionante este não reconhecimento dessa herança como parte da cultura e história portuguesas. Hoje em dia temos fenómenos como o Nininho Vaz Maia ou referências como o Diego el Gavi. Sentem que a música cigana está numa nova fase de reconhecimento? 

[Ari] Acho que atualmente a música cigana está mais avançada e a evoluir. O Nininho Vaz Maia e outros, se calhar há uns anos não faziam músicas para o mundo português que não era de etnia cigana. As nossas músicas eram quase só tocadas e partilhadas entre nós, porque se calhar não se ouvia música cigana tanto como hoje em dia. Há uns anos não éramos lançados por uma produtora, como o Nininho hoje em dia é. Nós não temos editora ou produtora. Somos só nós à procura do nosso caminho. Mas acho que hoje há mais abertura e dá para sentir isso. Até a nossa banda, muito do que fazemos é para fora da etnia cigana e da nossa comunidade. Se calhar antes isto não acontecia.


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