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Pedro Mafama

Estava No Abismo Mas Dei Um Passo Em Frente

Sony Music Entertainment Portugal

Texto de João Mineiro

Publicado a: 10/06/2023

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Fomos Por Este Rio Abaixo, mergulho enfeitiçado que exigiu tempo, avanços e recuos, antes de nos encontrarmos com a natureza do arabesco sonoro, poético e imagético que Pedro Mafama ali moldou. Foi uma estreia de fôlego, essa, síntese de anos de experimentação, pesquisa e vivências, que lhe abriu múltiplos campos de possibilidades. Mas quando lhe enviámos um abraço de boa viagem, estávamos muito longe de imaginar que, dois anos depois, seriam as marchas, os bailes e as rumbas portuguesas os seus seguintes apeadeiros. 

Estava No Abismo Mas Dei Um Passo em Frente, ao contrário do seu antecessor, entranhou-se naturalmente, ativando memórias e imagens, convocando uma adesão instintiva. Talvez porque se no disco anterior a proposta era radicalmente nova, numa viagem tensa e melancólica pelas entranhas da história e da cidade, neste segundo álbum Mafama parece deslocar-se para o terreno comunitário da nossa memória cultural e coletiva – e quando digo “nossa”, não me refiro a uma espécie de abstração lusitana que magicamente uniria toda a gente nascida e criada neste retângulo; refiro-me, antes, a esse povo que, como quem aqui escreve, também se formou culturalmente com os compassos binários dos bailes, com a invenção da tradição das marchas populares, com o fado amador cantado em tabernas, coletividades e em excursões, com o Preço Certo e o Fernando Mendes na casa dos avós até a mãe voltar do trabalho, e agora que penso nisso, também com a música cigana portuguesa que sempre dançámos, mas cujos compositores e intérpretes, paradigmaticamente, nunca reconhecemos. 

Estamos, portanto, em terreno de lembranças e afetos, com mãos melosas do molho da sardinha, enquanto procuramos uma moeda no bolso para pagar a quermesse; mas também num lugar de conflitos, claro, que o marialvismo do balcão, afinal, também passa por aqui. O certo é que, como se dizia, o instinto é imediato assim que Mafama e seus compadres anunciam que “O Baile Vai Começar”. Quem não está farto do trabalho e de ser mal pago? Quanta beleza há na moleza que ainda assim nos leva à pista? Segue o baile, siga a roda, qual Mafama-mandador, bifana numa mão, imperial na outra, e ainda sobra para um jogo de ancas, duas rodas, três esquemas e um comboinho. A pista está aberta e a playlist prossegue, irresistível, com a rumba portuguesa e o cante (em “Estrada”), seguindo-se o vira (em “Virou!), logo depois o baile (em “Preço Certo”), a marcha “akizombada” (em “Alegria”) e até um faduncho à alegria, com golos de trivela e um bairro a festejar (com “Golo!”). Tudo engendrado ao jeito de Mafama, que novamente acompanhado pela sensibilidade e pela minucia de Pedro da Linha, aqui se afirma como um criador radicalmente livre e que não se deixa aprisionar em rótulos, estereótipos e expectativas. Mafama viveu vidas novas, reencontrou-se com a sua história, apaixonou-se, viu o futuro no olhar da filha e isso nota-se em cada pormenor deste trabalho. Cumpre-se, portanto, a profecia: só quem abre as asas vê paisagens que ninguém viu. 

Mas não se pense, no entanto, que haverá menos profundidade, ou sequer um défice de arrojo, nestes compassos de dois tempos que buscam a festa e nestas letras em ponto de rebuçado para serem decoradas e cantadas a plenos pulmões. Para além do cuidado técnico com a produção, os arranjos, a gravação e a captação, o que distingue Mafama continua a ser a natureza do seu gesto artístico, ou se quisermos, a maneira singular como a sua arte constitui um olhar sobre e para o mundo. Uma visão que, neste segundo trabalho, e apesar das diferenças, acreditamos ser mais de continuidade, que de rutura com o caminho feito. 

Estava No Abismo Mas Dei Um Passo Em Frente volta a desafiar, com subtileza, os artifícios ideológicos com que o nacionalismo cultural definiu e encaixotou essa abstração a que chamamos de “identidade nacional”. Este trabalho é, neste sentido, e novamente, a procura de um posicionamento artístico que desafia uma representação pluralista e diversa de Portugal, da história e das suas possibilidades. O Portugal que Mafama evoca e projeta continua a carregar uma busca pela identidade de um país que não é, nunca foi, nem nunca será apenas branco: foi e é negro, mestiço, árabe, cigano, migrante. É essa, aliás, a força instintiva de “Estrada”, combinação sonora que também ela nasceu do instinto, e onde Mafama procura vínculo onde outros exacerbam conflito; mas é também o que singulariza a identidade sonora de “Santo”, “Alegria” ou “Vida Airada”, onde felizmente a tradição se deixa contaminar pelas diferentes sonoridades que hoje povoam e constroem a cidade.

Mafama convoca, uma vez mais, um olhar para o mundo inteiro que existe entre nós. Só que, agora, há um passo que é dado em frente, ao procurar reafirmar e projetar o protagonismo popular inscrito em estilos, sons, discursos, símbolos, rituais e cerimónias que, durante décadas, viveram em tensão com essa “política do espírito” que António Ferro idealizou como pilar do “prestígio” e da “identidade” da nação, e que haveria de moldar a história que enquanto comunidade contamos sobre nós próprios. Lembremos, aliás, que foi Leitão de Barros quem organizou as primeiras marchas populares de Lisboa, para oito anos depois dirigir a Exposição do Mundo Português. 

O fascismo, é preciso não esquecê-lo, especialmente nestes tempos, nunca prescindiu da cultura como instrumento de discurso e de poder. Mas também nunca a controlou completamente. É preciso recordar, por isso, que se olharmos para uma história social e cultural avessa à cronologia política, percebemos que o povo sempre marchou, antes e depois de 1932, para lá e apesar dos regimes políticos que tentaram conduzir a marcha. E ainda que o baile, mais que alienação hedonista, foi espaço de sociabilidade e resistência dos corpos, mesmo nas alturas de maior repressão. E também que o fado, antes e depois da longa noite do fascismo, nunca deixou de ser espaço de tensão, confronto e conflito. E que o povo, afinal de contas, sempre teve agência, produzindo e manipulando os seus símbolos, mesmo quando a liberdade ainda era um país estrangeiro. Todos esses estilos, géneros e símbolos, com a sua história específica, viveram de confrontos e invenções que os atualizaram e renovaram. É por isso que, com este novo gesto artístico, Pedro Mafama se inscreve na linhagem daqueles que reconhecem às classes populares um protagonismo cultural que jamais pode ser reduzido à sua instrumentalização ideológica. E que, afinal de contas, antes como agora, o baile pode ser um espaço de sociabilidade intensa, de comentário social e de conquista da alegria, isto é, pode ser um lugar de profunda expressão política. 

O baile de Mafama é diverso, cosmopolita e livre, torcendo as demarcações do popular com mais misturas, com muitas colagens e com muita e bela confusão. O seu segredo foi saber observar, deixar-se contaminar, captando as mudanças que já se sentiam nos bailes que frequentava, na música dos carros que passavam, nas colunas bluetooth que constroem as paisagens sonoras da cidade. Ao fazê-lo, foi colando as peças da sua própria festa, que é também um espaço de disputa sobre a história do país, as suas múltiplas heranças e o seu futuro. Mafama não quer apenas reconhecer as diferentes histórias que fazem a história do país. Ele sente-se verdadeiramente parte das suas múltiplas heranças. Tal não quer dizer que, por exemplo, misturar rumba portuguesa com cante alentejano, como fez com “Estrada”, seja em si mesmo, autoexplicativo. Mistura sem posicionamento pode, aliás, soar mais a estratégia mercantil, que a compromisso ético. O relevante, neste caso, é o facto dessa mistura ter nascido de um lugar de escuta, procurando conhecer pessoas, rodear-se de aprendizagens, aprender o seu lugar de fala e o seu lugar de escuta. Não falar “em nome de” mas “com”. E, acreditamos, foi esse lugar de escuta que fez com que este seja um álbum que recusa uma visão puramente mercantil, alienada e despolitizada da música popular. 

Antes perdido numa cidade melancólica e cheia de borboletas da noite, foi também nos seus becos e ruelas que encontrou o corpo encantado das ruas, de que fala Luiz António Simas. As ruas escondem tanto quanto relevam e antecipam. E foi com essa descoberta que Mafama deu ainda mais um passo em frente, inclusive em termos líricos, onde a um olhar interior e confessional agora acrescenta uma dimensão observacional sobre a cidade, a sua gente e os seus prazeres. Um olhar sobre “esta cidade esquecida sempre em festa e sempre em crise” (em “Marcha Bonita”); sobre a estranha magia de “cada noite de luar” onde se sentem “as árvores a dançar”, “o carro passa a dar kizomba” e os barcos “serpenteiam o mar” (em “Estranha Magia”); sobre as brigas das ruelas da cidade a cujos defeitos também fazemos juras de amor (em “Alegria”); sobre a cidade que se observa à penda no 28 (em “Golo!) e onde ainda se pode alcançar o prazer das “bolhas do vinho verde” e das “conchas a abrir” (em “Vais a Ver”).

Mafama é um observador realmente curioso e é por isso que o seu olhar sobre as culturas populares não padece nem da doença infantil do elitismo, nem do vício estéril da condescendência. Primeiro, porque a sua celebração do que é popular é avessa às supostas fronteiras entre alta e baixa cultura, estabelecidas numa ideia de virtuosismo que sempre viu o povo como uma manada inculta e destinada a ser guiada aos destinos da elevação cultural. Mas também porque não há aqui um olhar condescendente, ao estilo de “Deixem o Pimba em Paz”, como quem de cima observa, inebriado, o exotismo dos de baixo. E se a melhor prova do pudim é comê-lo, observar o carinho com que foi recebido em Alfama, no showcase de apresentação do álbum, é a prova de que aqui se fala de igual para igual, ombro a ombro, com um sorriso genuíno pela força de cada abraço.

Aproveitando os sabores da vida, o prazer da viagem e a generosidade dos outros, Mafama está feliz e empenhado em arrastar-nos consigo. É claro que todos sabemos do risco do dia seguinte, que isto da melancolia sempre regressa quando se lembram e se limpam os vestígios da festa. Mas ainda assim avançamos, sempre confiantes, porque se o baile vai começar, não há outro destino para onde ir. Às vezes, perante o abismo, só resta dar um passo em frente, olhando para o lado e sorrindo, porque vamos acompanhados.


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