pub

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 21/12/2021

A provocação consciente e inventiva.

Pedro Mafama // Por Este Rio Abaixo

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 21/12/2021

Há discos que, mal nos são apresentados, suscitam ideias imediatas e um impulso instantâneo para as passar a escrito. Outros que nos revelam, logo à primeira escuta, que pouco ou nada temos a dizer sobre eles. E depois há discos com os quais estabelecemos uma relação muito menos imediata, muito mais imprecisa e, portanto, potencialmente mais fértil. São discos que ora chamam por nós, ora deles momentaneamente nos divorciamos; ora nos fazem avançar para a escrita, ora nos fazem apagar tudo o que escrevemos; ora nos suscitam reflexões, ora nos baralham o fio do pensamento. Por Este Rio Abaixo, de Pedro Mafama, é um desses discos raros que nos impõe um tempo longo de escuta e reflexão. Um objeto complexo e com o qual é saudável manter uma relação em aberto: por vezes mais próxima e afetiva, outras tantas mais distante e analítica. No fundo, uma relação em construção permanente e que, portanto, exige compromisso e dedicação. 

Esta será, porventura, a sua primeira conquista e uma das mais importantes. Num tempo social marcado pelo imediatismo, pelo presentismo, pelo consumo rápido e instantâneo, onde obsessivamente se procura o próximo estímulo, quantos são os discos capazes de nos provocar uma relação longa, de diálogo, escuta e descoberta permanente? Não são assim tantos e, arrisco dizê-lo, são esses mesmos discos que, para lá das luzes da ocasião, e dos seus momentos promocionais, mais impacto e lastro alcançam. 

No caso de Pedro Mafama, o que motiva a necessidade deste tempo longo não são tanto as proezas técnicas ou estéticas do seu autor, mas algo mais importante, duradouro e universal: a natureza do seu gesto artístico. Quer dizer, essa substância fundamental que determina a relevância de uma obra, para lá do seu consumo e reconhecimento imediato. E o gesto artístico de Mafama, esse programa estético-político de que aqui falaremos, é o que torna tão rica e relevante a viagem que nos propõe. Uma viagem que não avança Por Este Rio Acima, mas que corajosamente mergulha Por Este Rio Abaixo. E é para lá da superfície, nesses lugares onde moram os despojos das epopeias, que vai encontrar os sons, os signos, as imagens e os corpos que ampliam todas as possibilidades que o passado, o presente e o futuro convocam. 

Por Este Rio Abaixo não está interessado na história da expansão marítima e imperial portuguesa, nas viagens e nas partidas, nos seus relatos e significados. Aliás, o título provocatório do álbum é uma clara demonstração de intenções, ao sugerir que o que vamos ouvir se construiu, em certo sentido, a partir de uma relação de alteridade com a obra de Fausto Bordalo Dias de 1984. E apesar da obra de Fausto, ao contrário do que se tem dito, e para lá das suas infelizes declarações recentes, nunca ter sido uma glorificação dos chamados “descobrimentos”, a verdade é que o seu gesto artístico, pelo menos da trilogia da diáspora, é o olhar dos portugueses sobre a partida, a viagem e a chegada a África. Ora nesse aspeto particular, a viagem de Pedro Mafama avança noutra direção e é movida por uma outra intenção. É uma viagem que, ao fugir da epopeia ideológica dos “descobrimentos”, nos convoca para que olhemos para esse mundo inteiro que sempre existiu entre nós, mesmo no tempo em que as caravelas partiam à procura de outros lugares. 

Como quem fica no estaleiro a ver os barcos partirem, Pedro Mafama perde-se na cidade e encontra-se com um país que é um mundo muito mais diverso, popular, rebelde e miscigenado do que as epopeias narram. Um mundo gravado nas imagens, na arquitetura, nas calçadas, na tradição musical e oral, que define essa comunidade imaginada a que chamamos Portugal, e que foi ao longo dos séculos alvo de um apagamento histórico. 

Neste sentido, esse Portugal que a música de Mafama convoca é muito distinto, ou até diametralmente oposto, daquele que é reproduzido e naturalizado nas narrativas hegemónicas sobre o país, a sua história, a sua gente e a sua música. É, nas palavras do seu autor, uma “homenagem” e uma “carga de ombro” à tradição. Mas é também um programa estético-político que, de forma mais subtil ou mais direta, desconstrói os artifícios ideológicos com que, desde a Monarquia Constitucional, também com a I República e sobretudo Estado Novo, definiram e ergueram as fronteiras dessa abstração a que se costuma chamar “identidade nacional”. E, mais importante ainda, constitui-se como um convite a que olhemos para o Portugal de hoje, no século XXI, para lá dessas narrativas nacionalistas e lusotropicalistas que, em grande medida, continuam a ser reproduzidas acriticamente nos livros de História. Narrativas puramente ideológicas e que apagam a identidade de um território que não é, nem nunca foi “apenas” branco: foi e é negro, mestiço, árabe, migrante. 

Ora a relevância do gesto artístico de Pedro Mafama é também o que amplia a exigência de quem escuta o seu trabalho e com ele estabelece um diálogo. E se, do ponto de vista puramente sonoro, este é um álbum pleno de sentido e relevância, cruzando géneros, sons e ritmos que traduzem e projetam a diversidade do país, da sua gente e da sua história cultural, nem sempre o mesmo acontece do ponto de vista narrativo com o mesmo fôlego, alcance e significado. 



Não que o seu autor, por ter escolhido um título provocatório, que suscita inevitáveis comparações com a obra de Fausto, tivesse que lhe seguir as pisadas, construindo um objeto onde os elementos rítmicos, melódicos e harmónicos se combinassem com uma extensa, complexa e poética abordagem aos textos e às histórias de época. No entanto, vale a pena questionar se o seu gesto artístico não podia ter ido mais longe, ampliando o alcance de toda a história que está subjacente e implícita à música. 

Pode argumentar-se, legitimamente, que os instrumentais do álbum já são, em si mesmos, uma tradução dessa história que o autor evoca. No entanto, não deixamos de nos questionar sobre quanto o disco beneficiaria de uma tentativa de dar mais substância narrativa a muitas das inspirações que o estruturam: a história desse povo descalço que canta para lá da vida; dessas guitarras de três cordas de onde saía o som das gentes que não aparecem nos livros; desse mistério que é a voz e o corpo de Catarina Chitas filmada por Giacometti; dessa herança negra e árabe que construiu o país que somos; desse fado que é filho da presença africana e negra em Lisboa; desses cantares de alardo dos pescadores do sul; desse cante profundo e fundado na dureza do trabalho; dessa boémia de faca e alguidar de onde brotaram tantas das inovações artísticas que hoje reivindicamos como “portuguesas”. Será que toda essa história, largamente desqualificada e dominada, não merecia, aqui, uma maior visibilidade e tratamento poético? Será que não teria sido útil desmaterializar narrativamente o próprio arabesco sonoro que tão sabiamente soube construir? Percorre-se o disco de fio a pavio, e fica-se com a sensação de que a própria obra, pela sua ambição, pedia uma abordagem menos centrada na primeira pessoa do singular, quando tantas vezes nos convida a pensar na primeira pessoa do plural. Neste sentido, Por Este Rio Abaixo tem ainda traços de uma certa ingenuidade de alguém que, com o coração do lado certo, procura fazer provocações férteis, mas que ainda está a tentar descobrir como fazê-lo com propriedade.  

É claro que um comentário deste tipo só pode ser feito perante uma obra cuja relevância e o propósito estão a léguas da forma hegemónica como os álbuns são pensados, construídos e comunicados. E, em certo sentido, temos de admitir que construir desse espaço narrativo nunca seria uma tarefa fácil num disco que, para lá do seu gesto artístico, de que temos falado, é também um trabalho profundamente íntimo e autobiográfico. 

Há no disco muita verdade pessoal e um certo abraçar da fragilidade, posicionamento que só podemos valorizar. Mas também por isso, este é um álbum que vive numa tensão fundamental entre falar para “dentro” e falar “para fora”, onde o seu autor parece empenhado em falar de si próprio ao mesmo tempo que canta a cidade, a sua história e os seus símbolos. Há um enorme potencial nesse encontro, mas a ligação entre a viagem biográfica do autor, e a viagem coletiva da narrativa, sobretudo num álbum conceptual tão desafiante, seria sempre difícil de concretizar na plenitude. Talvez por isso acabemos por saber mais sobre Mafama na cidade, do que sobre a cidade em si mesma. Há momentos, como em “Estaleiro”, “Ribeira” ou “Contra a Maré” onde esse encontro é muito feliz. Mas também há outros lugares onde ele não é nada claro: “Cidade Branca”, por exemplo, coloca-se num lugar tão encriptado que deixamos de perceber que “cidade” é essa de que se fala, ou a que se refere esta “branquitude” que a define; em “Leva” ou “Que o Céu Não Caia” mergulha-se de tal forma numa narrativa pessoal e autoconsciente, que por vezes nos afastamos do objeto artístico no seu conjunto. 

Nada que, no entanto, belisque o essencial da proposta, até porque essa viagem interior, tirando em alguns momentos, é muito bem trabalhada do ponto de vista estético. Por Este Rio Abaixo é um disco onde o seu autor caminha na distopia do declínio, mas em que, ao mesmo tempo, já só quer “abrir as asas, ver paisagens que ninguém viu”. Em “Estaleiro” perde-se num mundo que se desmorona, da mesma forma com que, acompanhado de Ana Moura, canta com extrema sensibilidade esse paradoxo poético e esperançoso que é uma “Linda Forma de Morrer”. Em “Algo para a Dor” mergulha na depressão pelas ruas da cidade, da mesma maneira com que, em “Barca”, ou em “Ribeira”, reencontra o sentido da viagem e se projeta no mundo. Em “Borboletas da Noite” grita com Tristany no meio da fúria, da força e da tempestade, no mesmo gesto com que, em “Mar Morto”, deixa todo o futuro em aberto. 

Qual operário empenhado no estaleiro, Pedro Mafama dedica-se a fundir o espaço das culturas urbanas globalizadas, com a base local em que são erguidas. Por Este Rio Abaixo é um disco da Mouraria e de Alfama, tanto como um disco de música urbana global, capaz de percorrer linguagens que desafiam gente de todos os lugares — e aí não podemos esquecer o importantíssimo trabalho de Pedro da Linha. É música portuguesa global, que cruza os tempos e os géneros: os paus de Trás-os-Montes e os cânticos de trabalho; as guitarras de tanger e a rítmica africana; o auto-tune magrebino, o trap e o kuduro; a kizomba e a música árabe; a taberna, o baile e a casa de fados. É um disco que prova à exaustão que nem sempre é preciso sair de onde se está para se partir em viagem. Que o global e o local não são dimensões irreconciliáveis. Que, como dizia Torga, “o universal é o local sem as paredes”. E também sem os muros, as fronteiras, os artifícios. 

Apesar de poder ter ido mais longe, não temos dúvidas de que quem escuta Pedro Mafama, consciente ou inconscientemente, está também a re-discutir as ideias que temos naturalizadas sobre o que é o nosso país, o nosso bairro, as cidades onde vivemos, a herança cultural de que somos feitos e tudo aquilo que podemos vir a ser, daqui para a frente, se a reconhecermos e abraçarmos. E esse é um feito que poucos conseguem alcançar. Em suma, Por Este Rio Abaixo é um dos grandes discos da música portuguesa contemporânea e que, sem pressões, mas pressionando, projeta Pedro Mafama como um dos mais inventivos e promissores criadores da sua geração. Desejamos-lhe boa viagem. 


pub

Últimos da categoria: Biblioteca

RBTV

Últimos artigos